Olhar com atenção para essas mulheres é uma missão necessária e implementar políticas de acolhimento a elas, uma obrigação.

 

Andrea Freire, O Estado de S.Paulo

Uma simples lembrança referente à sua tortuosa jornada do Sudão do Sul a Uganda faz Dominica, 30 anos, ir ao choro. Quanto mais ela se recorda dos desafios e das mazelas da guerra em seu país de origem e dos desafios que agora enfrenta como refugiada, mais as suas lágrimas proliferam, em abundância.

Dominica tinha apenas 25 anos quando fugiu da nação mais jovem do mundo, em 2016, buscando segurança e oportunidades econômicas para si e seus quatro filhos, com idades não superiores a cinco anos. Como muitas outras mães solteiras refugiadas, Dominica deixou sua terra natal na esteira da agitação política que levou o Sudão do Sul a uma extensa guerra com seu vizinho Sudão.

A história de Dominica é somente uma entre milhões que existem no mundo todo de mulheres refugiadas que se veem sem escapatória quando guerras e outras tragédias – naturais ou humanas – atingem seus países. O que aconteceu no Sudão do Sul foi visto na Síria, observado no Iêmen e, agora, é testemunhado quase em tempo real na Ucrânia. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), já são 14 milhões de ucranianos que precisaram deixar sua casa em razão do conflito que se instalou no país – o segundo maior da Europa em extensão territorial.

O problema das guerras atinge, claro, todos os que nelas estão envolvidos, independentemente de sexo, religião, classe econômica ou faixa etária. Você pode imaginar que estar próximo de um hospital infantil lhe trará mais segurança, mas vimos na guerra na Ucrânia que não é bem assim; crianças também são vítimas de bombardeios. Ser um bilionário pode gerar um sentimento de conforto e proteção, mas em poucos dias seus bens podem ser congelados e tudo o que você tinha pode virar pó.

Mas, ainda que guerras façam todos sofrer, há aqueles que sofrem mais. Entre estes estão as mulheres. Segundo a ONU, dos cerca de 19,6 milhões de refugiados e 244 milhões de migrantes que existem no mundo, quase metade é mulher.

Em algumas sociedades, mulheres e meninas enfrentam discriminação e violência todos os dias, simplesmente por causa de seu gênero. Atividades comuns como passear na rua, coletar água ou voltar da escola podem colocá-las em risco de estupro ou abuso, o que apenas se intensifica durante conflitos e tragédias.

Dados da Fundação Observatório de Pesquisa (FOP), um think tank global com sede na Índia, mostram que na guerra entre Bangladesh e Paquistão, por exemplo, de 200 mil a 400 mil mulheres foram sistematicamente abusadas sexualmente. O número é assustador, mas não para por aí: na guerra civil de Serra Leoa, nos anos 1990, foram cerca de 60 mil. Na Libéria, 40 mil; cerca de 60 mil na antiga Iugoslávia e algo entre 100 mil e 250 mil no genocídio de Ruanda.

Mulheres vítimas do estupro como arma de guerra carregam complicações físicas e mentais para o resto de sua vida. A FOP, inclusive, destaca um relatório da Anistia Internacional segundo o qual muitas se queixam de traumas no corpo, como sangramentos contínuos, dores, imobilidade e fístula. Muitas testam positivo para infecções sexualmente transmissíveis após serem violentadas. Além disso, privação do sono, ansiedade e sofrimento emocional são comuns entre sobreviventes – e também entre familiares que testemunharam a violência.

Para muitas dessas vítimas, a superação é difícil. A começar pela falta de acesso a sistemas de apoio psicológico e emocional – que, quando existe, é limitado e graças aos esforços de entidades de ajuda humanitária. Para piorar, essas mulheres precisam continuar com sua vida e cuidar de seus filhos, uma vez que seus maridos ou foram lutar na guerra ou foram mortos nela. E tudo isso precisa ser feito, no caso das refugiadas, numa terra estranha e sem uma rede de proteção familiar e financeira.

É por isso que a assistência a migrantes e refugiados é uma empreitada que demanda esforços em múltiplas frentes. Temos visto isso aqui, no Brasil, onde um conjunto de parceiros públicos e privados tem se unido para acolher os venezuelanos que chegam ao País, muitas vezes após caminharem por centenas de quilômetros, deixando para trás tudo o que um dia já tiveram, incluindo bens pessoais, amigos, famílias e sonhos.

No caso específico das mulheres, elas comumente chegam aqui com o desafio adicional de precisarem ser, agora, as provedoras financeiras de suas famílias. Para elas, aprender um ofício e ter uma escola onde seus filhos possam estudar enquanto trabalham é tão essencial quanto arroz, feijão e um copo d’água.

Ter a vida rompida abruptamente é um golpe para qualquer pessoa e, quando acontece na casa dos milhões, como vemos atualmente no mundo, é um problema humanitário de responsabilidade de todos. Olhar com mais atenção para as refugiadas é uma missão necessária e implementar políticas públicas de acolhimento a elas, uma obrigação. Num ano eleitoral, quando mais uma vez a sociedade irá discutir como posicionar o Brasil e o país que queremos, não devemos escapar desse debate.

*GERENTE DE PROGRAMAS DA ONG VISÃO MUNDIAL Fonte: https://opiniao.estadao.com.br