Brasileiros abandonados no sertão
Agruras da população sem água sugerem que milhões de reais para a construção de poços aplacaram outro tipo de sede
“A falta de água não é mais um problema para o povo do nosso Nordeste”, costuma jactar-se o presidente Jair Bolsonaro em lives, tuítes e discursos de campanha. A realidade, no entanto, é outra. No sertão do Piauí, por exemplo, em pleno século 21, cidadãos ainda precisam caminhar quilômetros em busca de água para beber, cozinhar e tomar banho – e nem sempre a encontram em condições próprias para o consumo.
Uma reportagem do Estadão visitou os municípios de Oeiras, Mata Fria e Alagoinha, no interior do Piauí, e encontrou um deserto de obras para abertura de poços inacabadas, muitas delas abandonadas definitivamente. Em cidades que foram contempladas pela “força-tarefa das águas”, anunciada com pompa por Bolsonaro há cerca de dois anos, hoje há poços furados, porém lacrados ou desprovidos de equipamentos adequados para captação e transporte da água para localidades mais altas e distantes.
As condições de vida dos piauienses deveriam ser melhores. O Piauí é o Estado do ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), prócer do Centrão e tido como uma espécie de chefe de governo de facto do País, tamanha a sua ascendência sobre o presidente da República. Ademais, Ciro Nogueira é “padrinho” da atual diretoria da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Muitos contratos da União com as empresas responsáveis por levar água ao sertão nordestino foram firmados por meio da Codevasf.
Mesmo como senador licenciado, Ciro Nogueira também foi responsável direto pela destinação de milhões de reais em emendas do “orçamento secreto” para aquelas localidades. Empresas dirigidas por amigos do ministro da Casa Civil foram agraciadas com recursos oriundos de emendas parlamentares. Onde foi parar tanto dinheiro público? Decerto essa dinheirama aplacou outro tipo de sede, haja vista o padecimento das pessoas que deveriam ter sido beneficiadas por esses investimentos no interior do Piauí.
Jair Bolsonaro jamais deu a devida atenção às aflições dos brasileiros mais carentes. Basta ver que todas as políticas públicas de seu governo que, supostamente, seriam voltadas aos desvalidos revelam falhas de planejamento e execução. Não raro, tornam-se focos de corrupção.
Isso ocorre porque, em geral, essas ações não são pensadas tendo como norte as necessidades dos cidadãos que dependem do Estado para ter condições mínimas para uma vida digna. São concebidas na medida dos interesses eleitorais do presidente da República e seus sócios, entre os quais Ciro Nogueira. Estão submetidas, portanto, à lógica de uma campanha eleitoral ininterrupta, quando, à luz do interesse público, deveriam ser pensadas a longo prazo.
A falta de espírito público, foco e planejamento do governo federal, para dizer o mínimo, custa muito caro ao erário. Mas é particularmente cruel por frustrar as expectativas de muitos brasileiros que há décadas convivem com os mesmos problemas. É gente sofrida que só é lembrada a cada ciclo eleitoral, como se fossem cidadãos de segunda classe. Fonte: https://opiniao.estadao.com.br