Reportagem revisita famílias em situação vulnerável; falta de dinheiro impõe racionar alimentos
Leonardo VieceliJosué Seixas Franco Adailton Daniela ArcanjoAna Paula Branco
RIO DE JANEIRO, MACEIÓ, SALVADOR e SÃO PAULO
Aida, 63, no Rio de Janeiro, prefere dormir a encarar a mesa vazia na noite do Natal. Elaine, 39, de Salvador, chega ao dia da ceia racionando comida para a família. Rosali, 47, de Maceió, mora em nova casa de madeira, mas a geladeira deverá seguir sem nada neste fim de ano.
A Folha revisitou neste mês pessoas em situação vulnerável em quatro capitais e regiões metropolitanas brasileiras e constatou que a insegurança alimentar ainda afeta a mesa dos lares mais pobrs.
Aida Herminio dos Santos, 63, tem um plano para a noite de Natal: dormir. A moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, afirma que está recebendo o Auxílio Brasil, mas anda com o orçamento apertado, o que impede o preparo de uma ceia para a família na data festiva.
A exemplo de outros tantos brasileiros, ela segue com o bolso pressionado pela inflação.
"O meu Natal vai ser assim: vou passar dormindo. Infelizmente, não tenho condições de montar uma mesa e receber minha família aqui. Esse tempo já se foi", diz Aida, que vive com o companheiro.
Em março deste ano, ela foi entrevistada pela Folha para uma reportagem sobre desemprego de longa duração. À época, estava sem trabalho havia dois anos, desde o início da pandemia.
Após a publicação da reportagem, Aida recebeu doações e conseguiu voltar a cozinhar com botijão de gás, um item que havia sido trocado pelo fogão a lenha em razão da alta de preços.
A moradora da Baixada Fluminense, contudo, continua sem um emprego fixo. O pagamento do Auxílio Brasil –ampliado pelo governo federal em agosto para R$ 600– ajudou nas despesas, mas ela diz que ainda busca doações para o sustento da casa.
Ao longo do ano, Aida também passou a cuidar de dois netos. "Ainda está apertado. Tem dias em que a gente tem o arroz e o feijão, e às vezes não tem a mistura", conta.
Seu desejo é retornar para o mercado de trabalho, mas a idade é considerada um obstáculo adicional para a conquista de uma vaga. "Até arrumaram serviço para mim, mas, com 63 anos, preferem pessoas mais novas."
Antes da pandemia, Aida trabalhava como cuidadora de idosos. Ela gostaria de regressar para uma função nessa área.
"Meu desejo é voltar a trabalhar. É o que me faz sentir bem. Gosto de tudo que for para ajudar", diz.
EM MACEIÓ, TER A GELADEIRA CHEIA PARA A FAMÍLIA É SONHO
Rosali Alexandre de Souza, 47, de Maceió, recebeu a Folha em sua nova casa, feita de madeira após a queda da anterior no período de chuva que atingiu o Nordeste. Livrar-se do aluguel foi a conquista de 2022, embora considere este o seu ano mais sofrido.
Apesar do imóvel próprio, a geladeira continua vazia.
"Não tenho vergonha de dizer que hoje vou comer um arroz, um pouco de feijão e vou fritar uma mortadela para todo mundo. No jantar, cuscuz com leite de caixa. É assim mesmo. Esse foi meu ano mais difícil, que chego e vejo a geladeira vazia praticamente todos os dias", diz ela.
Por causa da filha Yasmin, 18, e da neta Jasmin, 7, a casa foi decorada para o Natal. Na porta, uma mensagem de "Feliz Natal", luminárias e um chapéu, assim como alguns poucos detalhes espalhados nos cômodos, todos feitos de material reciclável.
"De vez em quando, já estamos conseguindo carne e frango, mas não vamos fazer uma ceia daquelas nesse fim de ano. Arroz e alguma coisa que conseguirmos com doação. Era meu costume juntar todo mundo, comer bem, mas é muito difícil. Você vê a geladeira vazia, como foi da outra vez que vieram, e não é uma surpresa. Nem na pandemia era desse jeito", afirma.
A Casa Tuca, que intermediou a visita, levou doações e fez ações sociais para dar mais qualidade ao fim de ano das famílias.
"O que eu quero mesmo é ter a minha casa própria e minha geladeira com condições para ajudar toda a minha família. É o sonho que não abro mão", falou ao fim da visita, já com os olhos marejados.
NATAL SERÁ MAIS UM DIA DE LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
Em Salvador, no início de cada mês, a dispensa na casa da ambulante Elaine Costa Silva, 39, está, na medida do possível, abastecida para alimentar as cinco pessoas que moram no local: ela, as filhas Elaiza, 18, e Evelyn, 13, mais as duas sobrinhas, Mileide, 17, e Ilana, 4.
A partir da terceira semana, é preciso racionar até receber o Auxílio Brasil, única renda fixa da família. Neste mês de Natal, o arrocho promete ser maior, já que não tem sobrado dinheiro para Elaine produzir os materiais de limpeza que costuma vender nas ruas da capital baiana.
Os R$ 600 do benefício vão só para alimentação. Caso estivesse com as vendas em dia, ela diz, a família teria um adicional que oscila em até R$ 200 a mais na renda. "O dinheiro é, basicamente, para comprar comida. Depois de muita pesquisa, porque está tudo muito caro."
Apesar das dificuldades cotidianas, Elaine prefere continuar com as vendas incertas a ter um trabalho como empregada doméstica. "Como não tenho estudo, sempre trabalhava em casa de família, mas era muita humilhação."
Silva não precisa usar o auxílio em despesas com moradia, a exemplo do aluguel, pois vive com a família em um barraco de madeira no bairro de Vista Alegre, no subúrbio da capital baiana.
Por outro lado, o gás de cozinha, cujo botijão de 13 kg em Salvador custa a partir de R$ 120, consome quase 25% da renda da casa. "Quando acaba o gás, se a gente não tiver dinheiro, precisamos cozinhar com lenha", afirma.
O fornecimento de água vem de uma tubulação a partir de um imóvel de uma vizinha, que cobra R$ 50 mensais dos moradores da ocupação. Já a energia elétrica é clandestina.
A estrutura do barraco levantado à base de madeira compensada fica parcialmente comprometida a cada chuva, conta. Para que não apodreçam, forra as paredes com pedaços de lona plástica.
Silva nem cogita preparar algo especial para passar a noite de Natal com a família. "Para a gente, será como um dia comum como qualquer outro, de luta pela sobrevivência. Nada planejado."
Ela também diz não ter motivos para comemorar, desde que o filho Yan Barros foi assassinado aos 19 anos, em abril de 2021. O jovem foi encontrado morto após suspeita de furtar carne em um supermercado em Salvador.
"A última vez que celebramos o Natal, que decoramos a casa, foi em 2020, quando meu filho estava vivo", diz. "Depois que fizeram aquela barbaridade com ele, que era a alegria da casa, fim de ano aqui é só tristeza", afirma.
CHESTER VAI VOLTAR À MESA EM CEIA DE HELIÓPOLIS
Neste ano, o chester vai voltar para a mesa de Natal de Priscilla Ribeiro, 42, moradora de Heliópolis, maior favela de São Paulo. A situação da dona de casa melhorou em relação ao último ano, quando a celebração passou como "um dia normal".
Desempregada desde o final de 2020, Priscilla viu a sua renda se reduzir ao valor do Auxílio Brasil ao longo desses dois anos. Eventuais aumentos se devem a vendas informais, na sua própria casa, de açaí e picolé.
Priscilla tem sete filhos, e o orçamento precisa sustentar cinco deles. Em alguns momentos, a conta não fechou.
Quando foi entrevistada pela Folha, em abril de 2021, havia trocado a carne que acompanhava o prato de arroz com feijão por ovo e salsicha. Hoje, o alimento voltou, mas só duas vezes por mês.
"Do meio do ano para cá, o preço das misturas deu uma caidinha", afirma. A queda nos preços também fez o frango voltar para o prato três vezes na semana e a compra do mês ser possível de novo. Cerca de R$ 400 mensais vão para o mercado.
"Na pandemia era de picado. Eu comprava só o que faltava", diz.
Apesar da leve recuperação financeira, a família ainda passa por dificuldades. A falta de dinheiro fez uma conta de água, por exemplo, ficar atrasada por mais de um ano. Só no final de 2022 a dívida foi regularizada.
Salsicha e congelados de frango ainda entram no cardápio quando as contas apertam, e o pernil de Natal, que Priscilla queria para a noite de festa, vai ficar para o ano que vem.
MORADORA DE OCUPAÇÃO DIZ QUE ESTÁ SEM REMÉDIO
Entrevistada pela Folha em 2021, Samantha Silva, 34, continua a morar em uma ocupação e afirma que as dificuldades econômicas persistem. A família, por exemplo, usa lenha para economizar no gás de cozinha.
"Ainda estamos passando aperto, principalmente com a chuva que teve esses dias. Tive que usar o fogão e gastar gás. Mas temos que dar graças a Deus por termos um teto. Tenho recebido o Auxílio Brasil, é o que está me ajudando."
Há seis anos fora do mercado de trabalho para cuidar da família, ela tem dificuldade para conseguir um emprego, mesmo se inscrevendo em cursos gratuitos de recolocação profissional. "Estou procurando qualquer emprego, para poder cuidar e alimentar as minhas filhas, de 16 anos e 10 anos. Quero dar educação e moradia digna para elas", afirma Samantha.
Neste ano, ela conta que enfrenta mais um problema: a dificuldade para retomar o tratamento de lúpus. "Quando meu marido perdeu o emprego, tivemos que entregar a casa e, desde então, estamos na ocupação e me tiraram do postinho. Tive que ir atrás de todos os documentos para levar para outro posto e terei que iniciar tudo do zero, passar com hematologista, dermato de novo. Estou sem remédio, o corticóide e a dose de cloroquina."
Embora relatando muito cansaço e desânimo por causa das manchas e dores do lúpus, Samantha tem fé em 2023. "Se Deus quiser, ano que vem vai ser um ano de vitórias." Fonte: https://www1.folha.uol.com.br