A epidemia de ódios entre grupos não fica só no que se vê como antagônico a suas ideias. A maior vítima é quem odeia

 

Por Nelson Motta — Rio de Janeiro

A epidemia de ódios coletivos e entre grupos e facções, do ódio minando e destruindo relações de amor, de amizade e de família, não fica só no ódio irracional e incontrolável pelo que vê como antagônico a suas ideias e valores. Claro, a maior vítima do ódio é quem odeia, porque os odiados às vezes sequer sabem que são odiados. Ser odiado por pessoas desprezíveis vale como elogio.

Ouvi dizer muitas vezes que o ódio é o reverso do amor, que onde há um há outro, que são indissociáveis. É verdade, mas o reverso do amor, para mim, são o desprezo e o esquecimento. Se ainda há ódio, rancor, ressentimento, ainda há amor, todo retorcido, mas há. Mas o desprezo é a ausência de todo amor, e até de compaixão. Vale desde a relação afetiva à amistosa e à política.

Viver em um ambiente de ódios difusos, e difundidos, públicos, devia ser cuidado pelo Ministério da Saúde Mental, porque esse ódio venenoso é levado para dentro das famílias, dos amigos, das relações amorosas, onde encontra outros motivos, velhos ressentimentos, rancores secretos, invejas enrustidas, para ser despertado e se manifestar. A resposta ao ódio não é o ódio nem o amor: é a rejeição absoluta.

Um aspecto muito interessante do ódio foi desenvolvido por Freud como o “ódio ao benfeitor”. Alguém que é ajudado por alguém em um momento de infelicidade e abandono, que odeia o benfeitor porque ele será sempre testemunha de sua incapacidade e seu fracasso — que motivou a ajuda. Se sentirá sempre devedor, mesmo que não cobrado, se sentirá inferiorizado, invejando o sucesso do benfeitor, e acaba explodindo. É muito humano e comum, em diversos níveis, tanto quanto a gratidão verdadeira, porque ninguém finge nem mente gratidão, um sentimento ainda mais nobre do que o amor, porque sem suas imperfeições.

É bonita a gratidão. Porque é sempre a resposta a um ato de amor. Obrigado é a palavra que mais falo, ao menor pretexto, um vício. Eu agradeço sempre, a Deus, aos santos e orixás, às forças da natureza, meio na fé e meio como um exercício de humildade, para me conscientizar de que tudo aquilo que te encanta e embeleza e justifica a vida não é só uma conquista sua, não é seu merecimento, mesmo porque essas forças poderosas e desconhecidas não fazem julgamentos e favorecimentos. Embora gente rasa, e pretensiosa, se acredite na lista dos “queridos preferenciais” do mistério e do desconhecido, por seus méritos humanos... e vive agradecendo rsrs.

E para finalizar, trecho de uma letra de samba-canção lupiciniano, in progress, com Tim Bernardes, que escrevi inspirado por essas reflexões:

“O reverso do amor.”

“Engana-se muito quem pensa

que o ódio é o avesso do amor,

os dois estão juntos na gente,

como o bem e o mal, o prazer e a dor,

o reverso do verso, o inverso do afeto,

não é ódio nem raiva ou rancor,

é o desprezo e o esquecimento,

é a indiferença e o silêncio sem cor”.

Fonte: https://oglobo.globo.com