A expressão mais autêntica da democracia está na plena consciência dos fundamentos da liberdade, e não no irracional domínio de desejos passageiros

 

Por Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr.

Numa democracia autêntica, o cidadão não pode ter medo de falar o que pensa nem de criticar titulares de poder. Ciente da relevância fundamental do livre mercado das ideias, o constituinte de 1988 consagrou que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5.º, IV). Ou seja, o ideal democrático se realiza sem máscaras ou disfarces, sendo garantido às pessoas o direito de exporem suas ideias à luz do sol, com face exposta e voz ao timbre. Realçando a centralidade da liberdade de expressão na República, a Constituição, após proteger a inviolabilidade de consciência (art. 5.º, VI), foi categórica ao afirmar que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística” (art. 220, §2.º, Constituição de 1988). Repita-se: “Toda e qualquer censura”, por mais sublime, celestial ou suprema que seja.

Naturalmente, o legislador constitucional não desconhecia as sinuosidades da natureza humana e sua inerente possibilidade de excessos verbais. Partindo do princípio de que inexiste liberdade sem responsabilidade, a própria Constituição garantiu o direito de resposta proporcional ao agravo, a indenização por dano material, moral ou à imagem e, por fim, nos casos mais extremos, o manejo de responsabilização penal por crimes contra a honra, respeitados o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Logo, somos livres para falar o que pensamos, mas não liberados para agredir e ofender aqueles de quem discordamos, que odiamos ou desprezamos. Na democracia constitucional, as discórdias, ódios e desprezos exigem um nível de urbanidade retórica e respeito civilizatório. Afinal, a destruição pelas palavras é o primeiro sintoma do bacilo autoritário.

Ora, é indubitável que vivemos tempos de estupidez histriônica. E o mais grave é que algumas respostas institucionais também têm sido estúpidas, distanciando-se do equilíbrio e da ponderação que a justa medida aconselha. Em tempo, a consciência histórica ensina que é melhor não brincar com certos riscos nem acenar para determinados instintos bestiais. Sabidamente, dois erros não fazem um acerto e não será trocando ofensas – ostensivas ou veladas – que resolveremos os problemas nacionais. Sem cortinas, precisamos de altura institucional. Precisamos de seriedade de procedimentos. Precisamos de respeito e cordialidade. Precisamos de decência. Precisamos de honra. Precisamos de firme e inegociável compromisso com o bem do Brasil e dos brasileiros.

O fato é que não será rebaixando as instituições que elevaremos a República. O tumulto reinante está a gerar preocupante estafa social com a mediocridade em curso. As pessoas exigem melhores atitudes, pois a dignidade democrática repudia práticas mesquinhas. Sim, algumas questões estão transbordando fronteiras intransponíveis; alguns limites estão sendo testados, colocando balizas fundamentais do Estado de Direito em xeque. A prudência clama por reflexão. Decididamente, não basta exaltar a Constituição e realizar as piores injustiças. Na alta expressão de Gustavo Zagrebelsky, “nenhuma política está de acordo com a justiça se a persecução do seu objetivo comporta o preço da injustiça, o mal causado a inocentes”.

Os desafios da contemporaneidade, em especial as lógicas e dinâmicas da sociedade em rede, impõem pensamento crítico e abertura sistêmica à inovação, mas também exigem sabedoria para conservarmos valores universais que guiaram o avançar da civilização. Nesse sentido, a garantia da liberdade de expressão é pressuposto necessário para o desenvolvimento válido da dialética política tão essencial ao sucesso da experiência democrática. Assim, entre teses e antíteses, a democracia entrega a justa síntese do possível, e não perfeições absolutas.

Em página constitucional clássica, a inteligência superior de Louis Brandeis pontuou que os Founding Fathers “acreditavam que a liberdade de pensar como você quiser e de falar como você pensar são meios indispensáveis para a descoberta e disseminação da verdade política” e “sabiam que a ordem não pode ser assegurada pelo medo de punição por sua infração; que é perigoso desencorajar o pensamento, a esperança e a imaginação; que o medo gera repressão; que a repressão gera ódio; que o ódio ameaça o governo estável”, vindo a concluir que “é função da palavra libertar o homem das amarras dos medos irracionais”. Portanto, o medo a excessos da livre expressão não autoriza censura nem opressão do pensamento, pois só cala à força quem tem a temer.

Aliás, se temos medo de falar o que pensamos, é porque já não temos mais a liberdade de sermos o que somos. Em outras palavras, a expressão mais autêntica da democracia está na plena consciência dos fundamentos da liberdade, e não no irracional domínio de desejos passageiros. Aqui chegando, com visão no horizonte da Nação, cumpre indagar: será que somos livres ou meros escravos das circunstâncias?

*ADVOGADO, É CONSELHEIRO DO INSTITUTO MILLENIUM. Fonte: https://www.estadao.com.br