Ler continuação de 'Menino do Pijama Listrado' me ajudou a entender erros de escrever sobre Holocausto

 

Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

 

Cena do filme "O Menino do Pijama Listrado" (2008), dirigido por Mark Herman - Divulgação

 

Semanas atrás publiquei na Folha uma resenha de "Por Lugares Devastados", o mais novo livro de John Boyne, o mesmo autor de "O Menino do Pijama Listrado", obra que, apesar do sucesso, é reconhecidamente precária em seu tratamento a questões relacionadas ao Holocausto.

Uma das principais queixas dirigidas ao "Menino do Pijama Listrado" é a de que o romance voltado para o público infantojuvenil apresentaria uma visão distorcida da história e, principalmente, do que acontecia nos campos de concentração, sendo, portanto, inadequado para fins educativos.

Outra crítica recorrente é a de que a trama do livro geraria entre os leitores certa dificuldade em operar uma distinção entre vítimas e algozes, colaborando, deste modo, para a possibilidade da perpetuação de estereótipos antissemitas.

"Por Lugares Devastados" é uma continuação de "O Menino do Pijama Listrado" e, como eu tento mostrar na minha resenha, acaba reproduzindo alguns dos mesmos problemas do seu antecessor, mostrando-se, inclusive, incapaz de propor qualquer reflexão mais cuidadosa a respeito de temas como a culpa e a responsabilidade.

No entanto, o meu texto desta semana não é exatamente sobre os livros de John Boyne, nem sobre como o autor costuma lidar com o Holocausto, e, sim, sobre a dificuldade que senti ao escrever a respeito de uma obra sobre a qual não tenho uma opinião positiva.

Há quem diga que não existe nada mais fácil e prazeroso do que falar mal do que não gostamos, como se estivéssemos em um grupo de amigos ridicularizando um estranho com o simples propósito de fazer troça, mas a verdade é que a atividade crítica deve ser exercida com redobrada seriedade, tomando cuidado para que não seja confundida com o escárnio, pois quem julga uma obra literária ou qualquer outra expressão cultural pode até não gostar do que leu ou do que teve acesso, mas tem a obrigação de apresentar as suas ressalvas de modo claro e razoavelmente consciente.

Em "Crepúsculo dos Ídolos", o filósofo alemão Friedrich Nietzsche traz uma imagem da qual gosto bastante e que talvez nos ajude a entender o quão delicado é o trabalho do crítico, mesmo nas ocasiões em que ele precisa escrever sobre aquilo que não lhe agrada:

"Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas —que deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvido— para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se...".

Esse martelo ao qual Nietzsche se refere não é aquele que normalmente utilizamos para arrebentar paredes, mas, sim, a ferramenta empregada pelos músicos para afinar os seus respectivos instrumentos. Quem pretende escrever algo sobre o que não gosta deve fazer uso de uma metáfora semelhante a fim de se tornar capaz de apreender as nuances de um texto e de perceber quando algo não soa bem.

É justamente por isso que não é fácil escrever sobre algo de que não gostamos, pois o primeiro impulso é achar que, por não conseguirmos apreciar uma obra, não precisaríamos prestar atenção aos seus detalhes. No entanto, se teimamos em manter essa postura, corremos o risco de julgarmos a obra mal e apressadamente.

Talvez seja por isso que algumas pessoas evitam escrever sobre os livros de que não gostam, mas se todos nós fizermos isso, acabaremos prejudicando o desenvolvimento da crítica e, consequentemente, a formação do leitor.

Isto é assim porque a principal tarefa do crítico não é simplesmente a de emitir uma opinião, mas a de nos ensinar a ler melhor e mais diligentemente, prestando atenção aos detalhes que causam desconforto em um texto, nos habilitando a emitir uma opinião própria sobre os livros que chegam até nós.

Apesar de ser uma tarefa difícil, ao escrever sobre os livros de que não gostamos aprendemos a identificar alguma qualidade, por mais distorcida que seja, em algo que normalmente não chamaria a nossa atenção —e isso, consequentemente, nos ajuda a ter uma visão mais abrangente da nossa cultura, nos permitindo refletir sobre alguns de seus aspectos mais problemáticos, como vem a ser o caso do tratamento recreativo que Boyne aparenta dar ao Holocausto em seus textos.

Assim, não fosse o convite para escrever a resenha de "Por Lugares Devastados", eu jamais teria lido o livro. E sem essa experiência, eu também não teria sido capaz de vislumbrar e comentar a respeito das deficiências que autores célebres, como o próprio John Boyne, apresentam ao tentar escrever sobre um dos eventos mais terríveis do século 20. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br