É preciso desligar o poder de remunerar a mentira. Canal do mundo sombrio, falar de ‘big tech’ é falar de uma ferida que já é incorrigível

 

Paulo Delgado

O sociólogo Paulo Delgado escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Se um boi pudesse usar as redes sociais, certamente o faria como quadrúpede. Mosca varejeira que faz o indivíduo se render à sua picada e, engolido sem esforço, deixá-la digerir seu mundo. Colecionadoras de fantasma em troca do fastio de efusões, as gigantes digitais são o maior sim que o poder já ousou criar. Com faceta velhaca, faz-se aliado do usuário enquanto absorve todas as coisas de quem obedece mais. Canal da adversidade, quer se ver como fortuna.

A fraude intrínseca das redes sociais é a pretensão de saber o modo de funcionamento do indivíduo e se achar espelho da realidade. Quando, na verdade, criaram um padrão – subgênero-gente-digital – tirado da fragilidade da identidade e das ninharias da personalidade. Amo que cindiu e alienou a pessoa a instâncias externas e com práticas desleais de causar sensação, combinadas com almas intrusivas, ilegais e nocivas, usurpou a grandeza da internet. Os atos contradizem os ares de direito que se deram. Malignidade da sagacidade, como foi fácil fabricar um ser rendido!

Moraes, Dino e Orlando foram direto ao ponto ao dizer que o que é crime na vida real é crime na internet. Estrada pedregosa de conexões táteis, virou sinônimo de monopólios abusivos que violam a soberania do País e dão majestade ao espírito de porco.

Não basta a descrença no sobrenatural e em impulsos sacrílegos. É a lei que bota limite no furor de incontroláveis. O virtual/digital, berço da repetição e túmulo da fala, não pode ser subestimado. Magnatas da instantaneidade, obcecados em dominar o mercado da crença, não imaginavam que o Brasil os confrontaria, como o fez a União Europeia. Loja de brinquedo dos segredos interiores adora a pessoa intencional irrefletida.

O que tais empresas fazem é blefar com a noção de liberdade impondo ao elemento afetivo o paradoxo meio moderno/modo primitivo. Vigilância e dependência do usuário vendidas como liberalismo ordinário.

Como não querem sofrer na própria carne, dizem que apenas dão espaço para a manifestação do outro. Compilam e distorcem biografias e fatos como as galinhas ciscam; imaginam que não é demonstrável o mal que propagam. Crescem em influência vendendo a ideia de que liberdade é escolher seus próprios deuses. Exploram o sentimento humano sem participar de sua formação. Fustigam instituições que ameaçam sua sobrevivência.

Como avançaram esbarrando nos destroços de políticas, culturas e espiritualidades decadentes, impuseram à sociedade a descrença no limite. Canal preferido do indivíduo-gangue, sócio do aliciamento que computador, celular ou qualquer aparelho sem controle o oferece para agir errado e escapar sem culpa.

Reservatórios de segredos de deslumbrado clube de egos instantâneos, apontam o dedo, fotos, vídeos, intimidade, publicidade e pesquisa. Carcereiros dos níveis profundos da vaidade, enfeitiçam pessoas em piqueniques da leviandade de expressão e despotismo espiritual, mais moderna forma de moagem da vida humana.

Quando a vítima da própria esperança ou desespero usa rede social, a estabelece para si como valor. Impregnada, ninguém a convence de que é empurrada, e não atraída pelo destino. Nem percebe que se oferece à dissecação como alma que não sabe se salvar. O ermo habitado do virtual facilita o incitamento; as bobagens que entopem a tela, seu natural. É como cair da vida.

A liberdade sem discernimento predomina nas mídias sociais. No ranking dos conectados, é corriqueiro falar e agir com opinião emprestada e achar que tudo está bem se obtém seguidores. A ação sem sabedoria captura o lado vil da personalidade e pode levar às vias de fato. O freio de arrumação se justifica ao buscar compreensão melhor da convivência humana diante das modernas patologias sociais. Para salvar a internet da manipulação e não deixar que por ela trafegue perversidade, irrefletida ou culpada. Como está, é repositório de um mundo que não se envergonha, de baixa estima coletiva. E, ao abusar da paciência humana, voa acima de sua credulidade para cair das alturas no crime ou na aceitação do mal recreativo.

Aplicar a lei, e buscar manter a superstição dentro de certos limites, ajuda a coibir o antissocial e enfraquecer a convicção de que é normal usar de forma torpe rede online, pela convicção de que a desonestidade virtual não é do mundo real. Recuperar a graça da cultura e não renunciar ao esforço cognitivo é recusar a dar o salto mortal que idolatra os predadores da internet.

Ao contrário do que se pensa, as big techs são o oposto da sociedade aberta, informada e livre. Sua força é dirigir e vigiar o comportamento. O uso de clichês e adaptação (in)consciente a uma forma especial de culto cria o lugar do curioso sem escolha. Ali, o sonho de uma vida racional está em jogo. Inverte o afeto dos assíduos e os faz deitar e rolar no colapso da cultura humanista. Um arsenal de benzedeiro em prontidão, delegado do distrito afetivo de usuários.

Por fora bela viola, por dentro pão bolorento. Não há como melhorar um erro. É preciso desligar o poder de remunerar a mentira. Canal do mundo sombrio, falar de big tech é falar de uma ferida que já é incorrigível.

* SOCIÓLOGO. E-MAIL: Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.. Fonte: https://www.estadao.com.br