Mesmo declarado inocente por dois diferentes júris, Kevin Spacey ainda corre risco

 

Miguel de Almeida

Editor e diretor de cinema

As duas absolvições de Kevin Spacey — pela Justiça americana, em 2022, e agora pela britânica — poderiam significar um antes e um depois na guerra identitária. Ao menos na fratricida dilapidação de biografias e carreiras. Inocentado em mais de uma dezena de acusações de crimes sexuais, inclusive estupro, a tragédia do ator se soma ao de outros personagens, como Woody Allen e Johnny Depp, também abatidos por denúncias jamais comprovadas.

Mesmo declarado inocente por dois diferentes júris, Kevin Spacey ainda corre o risco de seguir o script vivido por seus companheiros de profissão e infortúnio, qual seja, a Justiça terrena absolve, mas o tribunal das redes sociais, e seus lobbies respectivos, martelam uma condenação sumária. Allen, embora nem sequer haja sofrido um processo formal, pela inconsistência das provas, padece ainda em conseguir financiamento para suas obras, além de sofrer o cerceamento na exibição de seus filmes em alguns países. Depp, outro inocentado, continua marcado como alguém que agredia a ex-mulher, apesar de o júri condená-la a indenizá-lo pelas falsas acusações.

A torcida, nos três casos, era de punição extrema aos artistas. Pode-se falar numa espécie de oximoro — a tal inocência indesejada; quando, por um desejo sanguinário, mas infelizmente demasiado humano, se deseja a bancarrota da celebridade, sua total aniquilação. A condenação deles, aos olhos desta expedição punitiva, seria exemplar e didática — mesmo os gênios merecem o castigo por seus erros. Como houve aposta no cavalo errado, o tribunal virtual joga fora a criança junto com a bacia e a água: a Justiça errou.

A guerra identitária pauta não apenas a área cultural, numa autofagia dramática que mistura dinheiro e inveja, como ajudou a eleger dois ex-presidentes. Trump e Bolsonaro — que hoje alternam seus dias ora em depor na justiça, ora em conversar com seus advogados, ora em voltar à delegacia — trouxeram ao palco eleitoral o embate de questões de gênero e raça como ferramenta de clivagem e de incentivo a preconceitos.

Por oportunismo e ignorância, levaram ao discurso político ingredientes retirados da indigência intelectual e emocional, ainda não superados pelo lento processo civilizatório. Ao lidarem com preconceitos de raça e gênero, os dois ex-presidentes mobilizam eleitores por meio da irracionalidade e do despudor. Em lugar de agregar em torno de propostas, procuram clivar a sociedade pelos preconceitos. Na História, o ódio sempre resultou em boas votações; a construção de inimigos é uma velha estratégia, capaz de esconder a complexidade dos problemas.

Mesmo que Bolsonaro hoje caminhe para o ostracismo, restando a ele frequentar almoço de batizado, seu legado de atraso ainda é um — digamos — ativo podre. Haja vista parte do eleitorado acreditar que o Brasil se encontra à beira de se tornar um país comunista.

À esquerda, o discurso político identitário também não deixa de mobilizar preconceitos. Permanece como a venda de terreno na Lua, escudado em boas intenções. O ataque de Jean Wyllys sobre Eduardo Leite integra o figurino. Bastou o governador gaúcho declarar que manteria as escolas cívico-militares no Rio Grande do Sul para ser tachado de homofóbico pelo ex-deputado pelo Rio de Janeiro. Lendo as entrelinhas, Wyllys o chamava de heterossexual enrustido. Ai, ai.

Em seu estilo robocop de intervenção política, Wyllys procurou pintar Eduardo Leite como um gay de direita. Até aí nenhuma novidade. Leite teve a coragem de se declarar homossexual e é notoriamente um político de centro-direita. Mas, ao juntar as duas definições, Jean Wyllys quis negar o óbvio — não é todo gay que necessariamente é de esquerda. Não, meu bem, isso não funciona assim. É mais fácil o vascaíno ter um segundo time do coração do que a identificação política determinar opção sexual. O que Jean Wyllys diria sobre J. Edgar Hoover, o ultradireitista diretor do FBI?

A guerra identitária, ora à esquerda, ora à direita, é um cobertor bastante curto. Eduardo Leite não se elegeu governador gaúcho duas vezes por ser gay; ao contrário de Wyllys, cuja bandeira é a sexualidade. Bolsonaro e Trump perderam suas reeleições — vale lembrar: mesmo tendo a máquina na mão —, embora mantivessem na mira os ataques de gênero e de raça — além da misoginia histérica. Também o público se viu derrotado ao não ter as espetaculares atuações de Kevin Spacey e as deliciosas obras de Woody Allen a cada nova estação. Choremos por isso.

O ostracismo de Bolsonaro, a derrota do ultradireitista Vox na Espanha e a absolvição de Spacey talvez indiquem mais poesia e menos ódio. (Ao menos por algumas horas.). Fonte: https://oglobo.globo.com