Caso ‘Duarte Agostinho’ pode produzir um efeito cascata em que sejam exigidas dos Estados ações eficazes para a proteção dos direitos das futuras gerações

 

Por Lucas Carlos Lima

Na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), um coro de países reconheceu que as mudanças climáticas são “o maior desafio de nosso tempo”. Não faltam evidências científicas ou empíricas para provar que estão corretos. O problema real reside nas tentativas de resposta eficaz a esse desafio. Certamente, o tema será objeto de pauta no G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo), cuja reunião ocorrerá no Brasil em 2024.

Nesse sentido, parece particularmente alvissareira a iniciativa de seis jovens portugueses que decidiram processar Portugal e 32 Estados na Corte Europeia de Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo.

No dia 27 de setembro, em audiência perante a Corte, os jovens expuseram suas razões jurídicas para demonstrar que seus direitos como futuras gerações, protegidos pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, estão sob ameaça em razão das mudanças climáticas. O propósito dos jovens é claro: alertar os Estados acusados sobre a insuficiência de suas medidas para reduzir as emissões de carbono e mitigar os efeitos da catástrofe climática. Segundo os peticionários, mais deve ser feito – e com razão.

Já em 1992 a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento anunciava em seu princípio 7 a noção jurídica de equidade intergeracional: o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de tal forma que responda equitativamente às necessidades de desenvolvimento e ambientais das gerações presente e futuras. O caso Duarte Agostinho e outros vs Portugal e 32 outros Estados parece buscar concretizar esse princípio na medida em que são as gerações futuras a encampar a causa jurídica em relação às ações atualmente conduzidas pelos governos e sua exiguidade diante da envergadura do desafio que buscam combater.

Intitulado pela professora Laurence Burgorgue-Larsen, da Faculdade de Direito da Sorbonne, como um potencial “big-bang climático”, o caso pode alterar as percepções da litigância climática por meio da proteção de direitos humanos, na medida em que pode reconhecer importantes obrigações internacionais. Existe uma chance real de reconhecer o dever de proteção de direitos fundamentais em razão da degradação do meio ambiente em virtude de alterações no sistema do clima.

Levar casos envolvendo as obrigações climáticas dos Estados perante tribunais não é uma tática inédita. Desde o célebre caso Urgenda vs Países Baixos, de 2019, no qual a Suprema Corte Neerlandesa reconheceu que o Estado não estava fazendo o suficiente para atingir suas metas de contenção das mudanças do clima, a assim chamada litigância climática expandiu-se pelo mundo e alcançou diferentes sistemas jurídicos. Inclusive, o Brasil teve sua contribuição com a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o Fundo Clima na ADPF 708, que reconheceu a omissão do Executivo na adequada distribuição dos valores voltados às ações climáticas.

Contudo, o caso Duarte Agostinho é particularmente promissor porque demonstra o potencial contencioso da Corte Europeia para decidir sobre questões climáticas. Em termos simples, pode-se afirmar que, em virtude das obrigações que Estados assumiram internacionalmente de proteger direitos humanos (como a vida, a privacidade e a saúde), existe um dever de realizar ações eficazes para diminuir as emissões de carbono e responder aos efeitos da crise climática que se alastram nos países. Em Portugal, em particular, são lugubremente célebres os incêndios que se propalam durante o verão no país ibérico.

O que pode surgir de uma eventual condenação, após naturalmente um amplo processo e contraditório, é um efeito cascata em que sejam exigidas dos Estados ações eficazes para a proteção dos direitos das futuras gerações. Dessa primeira condenação, uma pronúncia da Corte Europeia pode se irradiar e dialogar com as cortes supremas de todos os Estados europeus e influenciar até mesmo outros sistemas similares – como o Interamericano e o Africano. Além disso, as pronúncias mais amplas da Corte poderão oferecer sustentáculo a futuros casos similares em que indivíduos empregam a via judicial para obter dos governos uma maior ação na proteção do meio ambiente (como, por exemplo, na diminuição do desflorestamento) e, por consequência, do clima.

É verdade que o mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) descreve um cenário tragicamente desanimador sobre a possibilidade de diminuição da temperatura da Terra em relação às emissões de gases de efeito estufa. É, também, verdade que uma pronúncia de uma corte internacional levará algum tempo para gerar efeitos reais no interior dos Estados. Contudo, este caso – somado a outras iniciativas, como as opiniões consultivas perante a Corte Interamericana, a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Internacional do Direito do Mar sobre o mesmo tema – pode ser uma sedimentação real de um movimento maior, que liga a necessidade de proteger direitos fundamentais protegidos nas Constituições do mundo à crise do sistema climático global. A depender do resultado, ganham o meio ambiente, o sistema climático e as futuras gerações.

*PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL NA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, É ORGANIZADOR DO COMENTÁRIO BRASILEIRO À DECLARAÇÃO DO RIO SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO