Não se pode modificar décadas de convívio em uma noite, mas existe um fator que pode ser recalculado
Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.
Produtos e bonecos de Papai Noel expostos em loja para o Natal - Eduardo Knapp - 16.dez.23/Folhapress
Para as famílias felizes as datas comemorativas tendem a ser a invejável celebração do seu sucesso. Mas, como dizia Tolstói, as felizes são tão parecidas entre si que sobre elas temos pouco a refletir, afinal, em time bom não se mexe. Já nas infelizes, com suas variadas formas de cultivar o sofrimento, as mesmas datas se tornam a constatação do fracasso das relações com as pessoas que nos são mais significativas. Costumam ser o limão na ferida.
Entre os extremos restam as famílias nas quais as afinidades são poucas e a festa desce como uva passa no meio das comidas: era melhor não ter, mas, sendo inescapável, dá pra engolir rápido ou empurrar para o canto do prato.
E assim segue o Natal como raio-X das relações familiares, fotografia que revela a cada ano o estado desse núcleo que é vendido como feliz, mas vivenciado como corrida de obstáculos. Não se pode modificar décadas de convívio danoso em uma noite, o que torna a azia inevitável, mas existe um fator que pode ser recalculado.
O Natal passou de festa religiosa a um evento totalmente comercial perdendo qualquer alusão à sua origem. Alguma criança ainda lembra que se comemora o nascimento de Jesus? A coisa se resume à figura do Papai Noel, inventada e empurrada goela abaixo pela indústria da Coca-Cola. E desemboca numa troca de presentes que movimenta a economia enquanto endivida a classe média e exclui a proletária. Como já dizia Freud, dinheiro é libido e, portanto, os gastos revelam o grau de investimento no projeto, que pode ser tanto a resposta a um desejo genuíno, quanto ao mais alienado dos gestos.
Para empurrar um consumo irracional na pior época para se gastar —seguida de férias, IPVA, IPTU e a instabilidade de quem não é CLT—, haja propaganda. O apelo emocional nos induz a associar a magia do Natal com as comidas, roupas e presentes, fazendo a roda consumista girar. A aura que a propaganda imprime ao evento só aumenta o abismo entre a cena imaginária idealizada e a família real que se tem que encarar. Aquela que nos últimos 364 dias usou de todos os subterfúgios para não ter que se encontrar.
Pode-se falar do Natal como a festa mais pesada para a maioria das famílias sem ignorar as oriundas de outras religiões, uma vez que a data se desprende de tal forma de sua vocação original que fica quase impossível que judeus, muçulmanos, budistas e outros se livrem do ritual de trocas de mercadorias a que se associou. Mas quanto mais distante das falsas expectativas referidas à data, maior a chance de que seja apenas um jantar em família, mais ou menos agradável, e não uma aula de anatomia afetiva.
Desde a modernidade, a família é um misto de empresa e bunker capaz de tudo para defender os seus em detrimento dos demais, mas também de cortar na carne de quem ameaçá-la de dentro. As relações compulsórias que a família cria e seu fechamento para o mundo criam a lógica que leva a sua derrocada subjetiva. Daí que a chance de se sentir bem nesse empreendimento compulsório carregado de culpas e falsas expectativas é bem reduzida. Quanto mais aberta para o mundo, quanto mais arejada no respeito às singularidades, mais a família se aproxima das amizades eletivas sem laço de sangue. Guardaria o título de família, se ainda quisermos usar esse termo, o grupo que, compartilhando uma história comum —recente ou transgeracional–, se baseasse no reconhecimento e respeito às diferenças, no cuidado mútuo e na abertura para o coletivo.
Jesus, quando perguntado sobre sua família, teria respondido que sua mãe e irmãos são todos os que ouvem a palavra de Deus e a executam. Como a palavra de Deus é assunto de foro íntimo, e não monopólio da pregação das igrejas, prefiro acreditar, em meu benefício, que na família de Jesus até ateus de boa índole seriam bem-vindos.
Bom Natal.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br