Cobertura do Jornal Nacional direto de Porto Alegre despolitiza o drama e bajula militares em busca de uma união nacional
William Bonner apresenta o JN de Porto Alegre - Reprodução/Globo
Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.
Grandes tragédias, como a que está ocorrendo no Rio Grande do Sul, têm o poder de mudar a natureza da cobertura jornalística na televisão e transformá-la em um evento cívico.
São momentos raros em que o esforço de informar se confunde com o desejo de ajudar e a compaixão com as vítimas fala mais alto do que a objetividade esperada do jornalismo.
Coberturas desse tipo também têm o efeito de reforçar a imagem dos canais de TV como solidários com quem está sofrendo com a tragédia, além de angariar audiência, que é uma motivação permanente do negócio.
Lançada em junho de 1965, a Globo considera que a cobertura extensa e dedicada que fez das enchentes que atingiram o Rio em janeiro de 1966 foi fundamental para o seu posicionamento no mercado de televisão.
"Com a cobertura da enchente, a Globo, que desde a estreia apresentava baixos índices de audiência, conquistou o Rio de Janeiro. Ao se transformar na voz que lutava pela recuperação da cidade, a emissora ganhou de vez a simpatia da população carioca, conseguindo um espaço até então dividido pela TV Tupi, a TV Rio e a TV Excelsior", diz o site da emissora.
Esse caso é uma espécie de mito fundador da Globo e explica por que, nesta semana, a emissora se penitenciou em público por demorar a investir pesadamente na cobertura das enchentes no Rio Grande do Sul. Na segunda-feira, o apresentador William Bonner, vestindo uma camiseta preta, em vez do tradicional terno, apresentou o Jornal Nacional de Porto Alegre.
Suas primeiras palavras foram de justificativa. "A partir de hoje, o desastre que os brasileiros viram se avolumando desde a semana passada no Rio Grande do Sul passa a ser apresentado pelo JN aqui, onde os fatos estão se desenrolando. Porque, ao contrário de outras tragédias climáticas que já testemunhamos, essa, ao longo dos dias, foi piorando, em vez de melhorar", disse Bonner.
Ainda no domingo, segundo informações que obtive, o jornalismo da emissora já estava se mobilizando para incrementar a cobertura, mas o espectador não viu esse esforço. O que se assistiu foi uma edição do Fantástico engessada, dominada pela cobertura festiva do show de Madonna, num tom incômodo para quem esperava um olhar mais aprofundado sobre o que ocorria no Sul.
A cobertura da emissora carioca nestes últimos dias tem dado ênfase aos gestos individuais de solidariedade, que sempre produzem forte apelo emocional, e transmitido um olhar bajulador para o papel de forças militares no salvamento de vítimas.
Em nome de algo maior, que é o fator humano da tragédia, a Globo está deixando praticamente submerso o aspecto político dos fatos. A culpa não é só da chuva. Há responsabilidades em muitos níveis pelo que está acontecendo, e apontá-las é papel importante do trabalho jornalístico.
A despolitização do drama parece ter como objetivo colocar a cobertura numa posição de "trabalho de união nacional", o que soa artificial e injusto.
Record, Band e SBT, ainda que com menos recursos, também estão com dedicação total de seus departamentos de jornalismo ao drama no Rio Grande do Sul.
Do que eu fui capaz de assistir nestes últimos dias, lamento a exploração sensacionalista que o programa policial Tá na Hora, do SBT, fez de um caso isolado de autuação de caminhões que traziam doações de Santa Catarina.
Todas as emissoras investiram recursos e deslocaram jornalistas experientes para o centro dos acontecimentos. Alguém poderá dizer que não fizeram mais do que a obrigação. Verdade. Mas, neste momento de crise do setor, reafirmam a importância da TV aberta no país. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br