Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

 

Você consegue passar por um acidente de trânsito sem desacelerar o carro para dar uma "olhadinha"? Consegue passar reto por uma briga de casal sem se sentir atraído por uma estranha curiosidade? Fica ligado nos detalhes de um acidente aéreo e mergulha nas histórias pessoais das vítimas?

Para o filósofo Thomas Hobbes, esse fenômeno poderia reforçar a teoria de que o homem nasce essencialmente mau e é fundamentalmente egoísta —por isso, depende de um estado autoritário para ditar-lhe normas de convivência.

Existe, porém, uma explicação mais simples do que uma suposta tendência mórbida: fisiologicamente, nosso instinto humano —ou animal— é atraído por infortúnios, tragédias e catástrofes.

Um avião modelo ATR 72-500, da companhia aérea Voepass, que saiu de Cascavel (PR), e seguia para Guarulhos (SP), caiu dentro de um condomínio residencial no município de Vinhedo, interior de São Paulo, deixando 62 mortos - Bruno Santos/Folhapress

Uma inquietação emerge, surge um desejo instintivo de desvendar as complexidades do extraordinário. Uma parte de nós parece ficar inebriada pela ânsia de buscar mais informações e detalhes, o que nos faz vivenciar um sofrimento ao enfrentar a efemeridade da nossa existência, mas com o conforto de não estarmos diretamente afetados.

Eventos como esses nos afastam do mundano, do familiar e da garantia do amanhã. Somos convocados a usar as vestes emocionais dos aflitos (e se fosse comigo?), mergulhar nas nossas profundezas (quem somos nós diante de eventos que desafiam a compreensão?) e confrontar os nossos medos através das histórias dos outros. É, ao mesmo tempo, uma sensação perturbadora causada pela dor dos outros e um alívio por estarmos a salvo.

Cada reviravolta trágica é um chamado para o terreno do desconhecido, um enigma que desafia os limites da nossa compreensão, que chacoalha a sensação de estabilidade que a normalidade nos faz acreditar.

Encontramos mais significado nos acontecimentos negativos do que positivos (não é à toa que se vendem mais notícias ruins do que boas). Na psicologia evolutiva existe a ideia de que "o mal é mais forte do que o bem", porque a nossa sobrevivência histórica depende muito mais da capacidade de reagir a ameaças do que de aproveitar as oportunidades.

Passamos a vida fugindo da única certeza que temos: a nossa finitude. É o único jeito de tornar a vida suportável. Viver com uma consciência incessante no dia a dia da nossa fragilidade e insignificância, seria pesado, triste, insustentável. Por isso, é justamente nos momentos em que somos tocados por infortúnios alheios, que devemos nos fortalecer e reforçar a nossa significância.

Tragédias têm o poder de transformar momentaneamente a atmosfera social, como se déssemos uma pausa aos ressentimentos e às reclamações ranhetas. A desolação comum une as pessoas pela dor, os sons da animosidade diminuem, as pessoas ficam mais gentis, valorizam os abraços e os afetos. É como se precisássemos de tragédias para nos tolerar uns aos outros.

Uma dose secreta de Schadenfreude (prazer que se sente ao ver o infortúnio de outra) faz parte de todos nós, desde os tempos em que nos divertíamos com as puxadas de tapete da dupla Tom e Jerry no desenho animado ou ríamos do amigo que escorregava numa casca de banana.

Há um episódio de "Os Simpsons" em que Ned Flanders, o vizinho irritantemente perfeito de Homer, resolve abrir uma loja. Tomado pelo Schadenfreude, Homer fantasia que o negócio de Ned entra em colapso. Primeiro imagina a loja sem clientes, depois, o vizinho empobrecendo, e depois uma fila de credores batendo na sua porta. Só quando Homer imagina o túmulo de Flanders e seus filhos chorando ao seu redor, que ele se detém. "Longe demais", ele diz. A loja falida era suficiente.

Se conseguirmos moderar essa "alegria dos impotentes", como definiu Nietzsche, e aprender a ter um olhar compassivo, poderemos evoluir com os fatos, bons e ruins, que nos cercam.

Só não vale ficar indiferentes; a indiferença é o maior desperdício da vida. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br