A liturgia do 28.º Domingo do Tempo Comum convida-nos a refletir sobre as escolhas que fazemos. Exorta-nos a não nos conformarmos com valores perecíveis, que “sabem a pouco” e não saciam a nossa fome de vida; encoraja-nos a abraçarmos os valores eternos, aqueles valores que nos trazem alegria e paz e que dão significado pleno à nossa existência.

Na primeira leitura, um “sábio” de Israel exalta a “sabedoria”, dom de Deus. A partir da sua própria experiência, esse sábio convida-nos a fazer da “sabedoria” a nossa aposta fundamental. Ela é, mais do que qualquer outro valor (o poder, a riqueza, a saúde, a beleza), a base perfeita para construir uma vida com sentido.

No Evangelho um homem de boa vontade questiona Jesus sobre o caminho que leva à vida eterna. Jesus desenha-lhe o mapa desse caminho. Convida aquele homem a despojar-se dos bens materiais que o aprisionam, a abrir o coração à solidariedade e à partilha, a percorrer o caminho do amor que se dá totalmente, a tornar-se discípulo e a integrar a comunidade do Reino. A indicação de Jesus continua válida, no séc. XXI, para quem estiver interessado em encher de significado a sua vida.

A segunda leitura convida-nos a escutar e a acolher a Palavra de Deus que nos chega através de Jesus. Essa Palavra é viva, eficaz, atuante. Uma vez acolhida no coração do homem, transforma-o, renova-o, ajuda-o a discernir o bem e o mal e a fazer as opções corretas, indica-lhe o caminho certo para chegar à vida plena e definitiva.

 

EVANGELHO – Marcos 10,17-30

 

CONTEXTO

Jesus está a caminhar com os discípulos através da Judeia e da Transjordânia, em direção a Jerusalém. Contudo, o caminho que fazem não é apenas geográfico; é, sobretudo, um caminho espiritual, durante o qual Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. Pretende-se que, à medida que vão avançando nesse caminho com Jesus, os discípulos deixem para trás os seus interesses egoístas e interiorizem cada vez mais a lógica do Reino. Só no final desse caminho serão verdadeiros discípulos de Jesus e estarão preparados para serem arautos do Reino de Deus.

O Evangelho deste vigésimo oitavo domingo comum narra o encontro de Jesus com um homem rico que está interessado em conhecer a maneira de alcançar a vida eterna. Esse encontro dá a Jesus a oportunidade para avisar os discípulos acerca da incompatibilidade entre o Reino e o apego às riquezas.

Na perspetiva dos teólogos de Israel, as riquezas são uma bênção de Deus (cf. Dt 28,3-8); mas a catequese tradicional também está consciente de que colocar a confiança e a esperança nos bens materiais envenena o coração do homem, torna-o orgulhoso e autossuficiente e afasta-o de Deus e das suas propostas (cf. Sl 49,7-8; 62,11). Jesus vai retomar a catequese tradicional, mas desta vez na perspectiva do Reino de Deus.

 

INTERPELAÇÕES

Aquele homem que vai ter com Jesus na estrada para Jerusalém, tem urgência em descobrir a reposta para uma questão que é, talvez, a mais decisiva que enfrentamos: que havemos de fazer e como devemos viver para alcançar a vida eterna, uma vida plena, verdadeira e com sentido? Trata-se de uma questão que nos inquieta a todos e que certamente já pusemos muitas vezes a nós próprios, com estas ou com outras palavras semelhantes. Já encontramos a resposta para esta questão? Qual é? Muitos dos nossos contemporâneos, mergulhados na cultura do “ter”, limitam-se a “navegar à vista”, sem horizontes amplos, procurando rodear-se de bem-estar e segurança, apostando tudo nas coisas fúteis e efémeras, apenas preocupados em satisfazer necessidades periféricas… Onde nos leva uma opção deste tipo? Ela é capaz de preencher o vazio existencial que tantas vezes toma conta da nossa vida?

Marcos diz-nos que Jesus tem uma resposta definitiva para a questão colocada por aquele homem inquieto. Para Jesus, viver “com sentido” passa, naturalmente, por respeitar a dignidade e os direitos dos irmãos e irmãs (“não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe”); mas, mais que tudo, aproxima-se da vida eterna quem se liberta da escravidão dos bens, está disponível para partilhar tudo o que tem com os irmãos que caminham ao seu lado, aceita tornar-se discípulo e seguir Jesus no caminho do amor que se dá até às últimas consequências. Afinal, alcança a vida eterna quem vive menos para si e mais para os outros; e afasta-se da vida eterna quem vive mais para si próprio e menos para os outros. Nas estranhas contas de Deus, menos dá mais, e mais dá menos. Estamos disponíveis para alinhar nesta paradoxal matemática de Deus e para nos despojarmos de nós próprios a fim de alcançarmos a vida eterna?

A história do homem rico, que coloca o seu amor ao dinheiro à frente do seguimento de Jesus alerta-nos para a impossibilidade de conjugar a pertença à comunidade do Reino com o amor aos bens deste mundo. Quando a “doença do dinheiro” toma conta de nós, encerra-nos no nosso próprio mundo, leva-nos a ignorar os nossos irmãos e as suas necessidades, endurece o nosso coração, faz com que sejamos corrompidos pela cobiça, torna-nos aliados da injustiça e da exploração, faz-nos ceder à corrupção e à desonestidade… É, portanto, incompatível com o seguimento de Jesus. Podemos levar vidas religiosamente corretas, participar nos atos litúrgicos mais relevantes, ter até o nosso lugar de destaque na comunidade paroquial; mas, se o nosso coração vive obcecado com os bens deste mundo e fechado ao amor, à partilha, à solidariedade, não podemos fazer parte da comunidade do Reino (“é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”). Como é a nossa relação com os bens materiais? Qual o lugar que os bens materiais ocupam na nossa vida?

O “império do dinheiro” é um império iníquo, que tem deixado feridas insaráveis na vida dos homens e do planeta. Nos “países de bem-estar”, situados maioritariamente a norte do nosso mundo, tudo está submetido a mecanismos económicos que atuam de forma cega e impessoal e que todos os dias deixam nas bermas da da sociedade um cortejo de vítimas; a “economia de mercado” sacrifica a dignidade das pessoas ao lucro e exclui os mais vulneráveis da mesa da vida; o reforço da competitividade atira irremediavelmente os menos preparados para a pobreza e a marginalidade; a exploração egoísta dos recursos naturais destrói esta casa comum que Deus preparou para todos os seus filhos e filhas… Podemos conformar-nos com um mundo assim? A Igreja poderá ser fiel a Jesus sem se pronunciar contra este “império do dinheiro” (o sistema económico neoliberal) que deixa marcas tão desastrosas no nosso mundo? E cada um de nós, pessoalmente, o que poderá fazer para que o mundo e a história dos homens sejam construídos noutros moldes?

A expressão “vida eterna” não define apenas essa outra vida que encontraremos no céu, quando terminarmos o nosso caminho na terra. Ela refere-se também à qualidade da nossa vida aqui e agora, à excelência da vida que construímos cada dia neste caminho marcado pela finitude e pela debilidade da nossa condição humana. Uma vida vivida ao estilo de Jesus oferece-nos, já aqui na terra, a possibilidade de nos libertarmos da escravidão das coisas, de vivermos o nosso dia a dia com o coração repleto de alegria e de paz; uma vida marcada pela solidariedade, pela partilha, pelo serviço aos irmãos oferece-nos, já aqui na terra, a possibilidade de nos sentirmos plenamente realizados, “cúmplices” de Deus na criação de um mundo novo… Assim talvez faça mais sentido abraçarmos sem hesitações a proposta de Jesus: ela dirige-se já ao nosso “hoje” e garante-nos, desde já, uma vida com sentido, uma vida que vale a pena viver. Temos consciência disto?

Jesus avisa aos discípulos que o “caminho do Reino” é um caminho contra a corrente, que gerará inevitavelmente o ódio do mundo e que se traduzirá em perseguições e incompreensões. É uma realidade que conhecemos bem… Quantas vezes as nossas opções cristãs são criticadas, incompreendidas, apresentadas como realidades incompreensíveis e ultrapassadas por aqueles que representam a ideologia dominante, que fazem a opinião pública, que definem o socialmente correto… Quem optou pelo seguimento de Jesus sabe, no entanto, que a perseguição e a incompreensão são realidades inevitáveis, que não podem desviar-nos do Reino de Deus e da sua justiça. Mantemo-nos fiéis ao caminho de Jesus, sem medo dos rótulos que nos colocam, das críticas que nos fazem, das perseguições que nos movem?

*Leia a reflexão na íntegra. Clique no link ao lado- EVANGELHO DO DIA.