Prêmio americano a ‘Ainda Estou Aqui’ mostra que, em tempos de elogio à truculência na política, o tema do filme – os efeitos do autoritarismo sobre uma família comum – é universal

 

Já conquistamos cinco Copas do Mundo, mas nunca tivemos um Prêmio Nobel e até anteontem jamais havíamos levado um Oscar. De certa forma, isso nos resumia: um país bom de bola, mas ruim do resto. Não mais: o Brasil finalmente entrou para o time dos laureados com o principal prêmio do cinema mundial, ganhando como melhor filme de língua não inglesa com a produção Ainda Estou Aqui.

Isso não significa, é claro, que de uma hora para outra o cinema brasileiro tenha se tornado uma potência capaz de ombrear com a indústria de países com muito mais tradição nessa arte. No entanto, o prêmio para Ainda Estou Aqui aponta o amadurecimento dos artistas e profissionais brasileiros nesta arte que comove e diverte o mundo há mais de um século. É muito provável que essa vitória atraia mais curiosidade no exterior sobre o cinema brasileiro e acalente os sonhos dos jovens diretores daqui.

Dito isso, mesmo que não tivesse sido o primeiro filme brasileiro a conquistar um Oscar, Ainda Estou Aqui tem um significado extraordinário para o País, como poucas obras de arte tiveram em nossa história. À medida que o filme passou a ganhar visibilidade, críticas positivas e prêmios no exterior, instalou-se no País um sentimento que só costumamos ver em época de Copas do Mundo.

Quando a atriz espanhola Penélope Cruz anunciou o Oscar para o longa dirigido por Walter Salles, o Brasil explodiu em celebração. Tanto entusiasmo não é exagero. Como destacou Fernanda Torres, atriz principal do filme, o fato de uma produção falada em português ter recebido três indicações ao Oscar – melhor filme, melhor atriz e melhor filme estrangeiro – já era um feito.

Ancorado na atuação impecável de Fernanda Torres, agora um talento internacionalmente reconhecido, o filme conseguiu, com sutileza e sobriedade, retratar como o regime militar brasileiro afetou a vida de inúmeras famílias. Com isso, a produção transformou um tema local em algo universal, especialmente diante do avanço global de uma ideologia que faz elogio da truculência e do autoritarismo, inclusive nos Estados Unidos. Se alguém quer saber o que acontece às pessoas comuns quando liberdades básicas são sacrificadas no altar do autoritarismo, é só ver no que se transformou a família de Eunice Paiva, a personagem central de Ainda Estou Aqui, graças à ditadura.

Assim, apresentar o estrago que o período de trevas provocou na vida de famílias brasileiras ao mundo e a uma geração mais jovem de brasileiros, para quem a ditadura militar só está nos livros de História, é o principal dos muitos méritos de Ainda Estou Aqui.

À época em que foi covardemente retirado de casa para nunca mais voltar, o ex-deputado federal Rubens Paiva nem político era mais. Ocupava-se apenas de seu trabalho e de sua família. Mas, para o governo militar, Paiva era um subversivo perigoso porque mantinha contato com brasileiros forçados ao exílio.

Por esse motivo, em 1971 Paiva foi detido, torturado e assassinado nos porões da ditadura, deixando sozinhos, e por muito tempo sem respostas, sua mulher, Eunice Paiva, e seus filhos.

Tornada viúva por ação direta e criminosa do Estado brasileiro de então, a mãe de cinco filhos teve de se reinventar como chefe de família e profissional. Mesmo com tantas responsabilidades, ela jamais se conformou e dedicou parte significativa de sua vida a fazer com que o Estado brasileiro reconhecesse que matou Rubens Paiva, o que só ocorreu em 1996.

Ainda Estou Aqui, sucesso de público e crítica no Brasil, só não agradou aqueles que, sob a liderança de Jair Bolsonaro, ainda nutrem nostalgia do regime militar. “Eu não tenho tempo de ver filme”, declarou o ex-presidente, que, recorde-se, cuspiu num busto de Rubens Paiva que estava sendo inaugurado na Câmara, em 2014, diante da atônita família do ex-deputado.

Ao decidir narrar a história dos Paiva na atual conjuntura, portanto, o diretor Walter Salles foi particularmente corajoso, sobretudo porque deu visibilidade à aguerrida Eunice, que lutou para preservar sua família e perseverou em busca de justiça. Só isso já é digno de aplausos. Nem precisava de Oscar. Fonte: https://www.estadao.com.br