Até parece que, a cada geração, o homem precisa experimentar novamente os horrores já vividos pelas gerações passadas
Vivemos tempos contraditórios. De um lado, faz-se um enorme esforço para pôr fim às guerras. De outro, surpreendentes reviravoltas nas atitudes entre os verdadeiros gestores da guerra não escondem interesses de expansão e domínio sobre outros povos e promovem uma nova corrida armamentista. A Europa, sentindo-se ameaçada, está fazendo um verdadeiro chamado às armas, como não havia acontecido desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Aonde vai levar tudo isso? Como explicar que, tão depressa, as lições aprendidas a duras penas com o triste legado das guerras devastadoras dos séculos passados, com sofrimento, sangue e destruição, tenham sido esquecidas? Até parece que a cada geração o homem precisa experimentar novamente os horrores já vividos pelas gerações passadas. O que pode mudar essa lógica, por certo, não necessária? O que fazer para recordar as juras e propósitos de tantos grandes e pequenos representantes dos povos, que proclamaram: nunca mais a guerra! Nunca mais, todo este sofrimento e destruição, nunca mais!
Atualmente, os cristãos celebram a Quaresma, com 40 dias de preparação para a Páscoa cristã. É um período de tomada de consciência sobre os propósitos e os rumos da vida pessoal e comunitária. Orientados pelas palavras do Evangelho, eles são chamados à conversão das intenções e das ações, de maneira que a fé e a religiosidade não sejam desmentidas por uma vida incoerente com os propósitos religiosos. A Quaresma é um período de penitência para a conversão sincera a Deus, para celebrar dignamente a Páscoa. Algo semelhante ocorre em outras religiões, que têm seus períodos penitenciais e os chamados à vida coerente com a fé, antes das grandes festas.
Esse chamado à conversão passa necessariamente pela “conversão ao próximo”, pois não se pode amar a Deus, a quem não se vê, sem também amar o próximo, que também é filho de Deus (ver 1 João). Para os cristãos, amor a Deus e amor ao próximo andam inseparáveis. O amor ao próximo perpassa toda a convivência humana e social, desde as relações pessoais às relações econômicas, políticas e culturais. Não se reduzem aos exercícios piedosos de uma esmola ou de um prato de comida, que também são necessários. A verdade é que, nas relações sociais, o amor ao próximo, muitas vezes, cede lugar a uma competição impiedosa, à prepotência e aos preconceitos, que aviltam o próximo, quando não ao ódio e à violência para destruir o próximo, visto como concorrente ou uma ameaça.
Quanto se faz necessária uma verdadeira Quaresma, a prescindir da religião ou não religião que cada um professa? Afinal, nenhuma religião incentiva o ódio e a violência, ou o aniquilamento do próximo. E quem não tem religião, com certeza, também não se sente dispensado do amor ao próximo. Nestes primeiros dias da Quaresma cristã, lê-se na Liturgia um texto do profeta Isaías, antigo e sempre muito atual (ver Isaías 58,1-9). O profeta dirige-se ao povo, que se queixa porque Deus não liga para seus jejuns e penitências nem responde às suas preces. E por que Deus não se comove diante dessas ações de religiosidade?
O profeta responde: “É porque, ao mesmo tempo que jejuais, fazeis litígios, brigas e agressões impiedosas. Acaso é esse o jejum que Deus aprecia? Não é, antes, quebrar as cadeias injustas, desligar o jugo e tornar livres os detidos e romper toda opressão? Não é repartir o pão com o faminto, acolher em casa os pobres e peregrinos, vestir quem está sem roupa e não desprezar o próximo?” (ver 58,6-7). E o profeta conclui: “Se assim fizeres, poderás invocar o Senhor e ele te atenderá imediatamente” (ver 58,8-9).
Não é preciso fazer muito esforço para perceber a atualidade dessas palavras: mesmo fazendo apelos pela paz e até fazendo jejuns e preces, continua-se a propagar o ódio e os preconceitos, que ferem e matam. E se continua a fabricar armas e a promover a poderosa economia do armamentismo. Pretende-se até ter Deus de um lado ou de outro nas guerras absurdas entre os filhos de Deus! Enquanto isso, o preço desta corrida é pago por milhões de pessoas com ferimentos, destruição, migração, miséria, fome e morte. Não seria hora de pensar um pouco mais no absurdo das guerras, quer entre países, quer entre as pessoas e os grupos?
No domingo passado, dia 2 de março, o papa Francisco, do quarto em que está internado no Hospital Agostino Gemelli, em Roma, saudou os peregrinos na Praça de São Pedro e concluiu sua breve mensagem com esta observação: “Daqui, a guerra parece ainda mais absurda”. Lutando para superar sua enfermidade, o papa vê a guerra e a violência a partir da percepção dos pequenos e vulneráveis, que também são as vítimas dos conflitos. Enquanto existe uma humanidade que luta penosamente pela sobrevivência, existe outra humanidade tramando guerras, destruição e sofrimento, movidos por ambições de poder, vaidades e vantagens econômicas. Realmente, que absurdo! Fonte: www.estadao.com.br