Entre terça e quarta-feira, pelo menos quatro pessoas entraram na estatística em um intervalo de 24 horas.
RIO - Bruna Lace de Freitas fez questão de comemorar com parentes e amigos o aniversário de 2 anos de sua filha, na última sexta-feira. Tornou-se mãe cedo, e, aos 21, esbanjava felicidade. Mas, naquele dia, estava com uma expressão preocupada. Um tio da jovem revelou o motivo: “Ela sonhou que havia levado um tiro”. Na tarde de anteontem, a premonição invadiu, na forma de uma bala perdida, o apartamento onde mora a família, no Engenho da Rainha. O disparo atingiu o olho esquerdo de Bruna, que morreu pouco tempo depois na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Complexo do Alemão. Desde aquele momento, a criança se mantém agarrada a uma boneca e pouco fala. Quando abre a boca, é para descrever a cena.
— Ela fica repetindo “mamãe caiu, mamãe caiu” e coloca um dedo no olho. A gente não sabe o que fazer. Não deu para impedi-la de ver a mãe ferida. Acho que é um trauma que minha sobrinha carregará para sempre — disse Vilma Carlos Lace, irmã de Bruna, acrescentando que a família se mudou para o apartamento da Rua Pereira Pinto há três meses: antes, morava no Morro do Engenho da Rainha, de onde saiu com o sonho de fugir da violência.
ESTATÍSTICA DURADOURA
O drama da família de Bruna é único, mas não pode ser considerado incomum. Somente este ano, de acordo com a Polícia Civil, 846 pessoas morreram ou ficaram feridas ao serem atingidas por balas perdidas no Estado do Rio, o que dá uma média de quase três vítimas por dia. Foram 72 apenas em outubro, e, em um intervalo de 24 horas, entre terça e quarta-feira passadas, pelo menos outras quatro pessoas entraram na estatística. Uma delas também morreu: a estudante Dayane Brito Soares, de 15 anos, levou um tiro na cabeça em frente à sua casa, no bairro Santa Helena, em Belford Roxo. Até ontem a polícia não sabia em que circunstância foi efetuado o disparo.
Em Olaria, duas pessoas foram baleadas enquanto passavam diante de uma casa que estava sendo assaltada, na Rua Bariri. Ao ouvir gritos de socorro, um vizinho apareceu com uma arma e trocou tiros com uma dupla de ladrões. Um dos criminosos foi ferido. Na Penha, uma mulher foi baleada num braço dentro de um táxi. O veículo percorria a Rua Aimoré quando começou um tiroteio no Parque Proletário.
A ocorrência de vários casos de balas perdidas em um período tão curto coincide com uma escalada da criminalidade no estado. Um exemplo: de janeiro a agosto, o número de roubos a transeuntes chegou a 60.560, já superando os 49.560 casos registrados ao longo de todo 2012, considerado por autoridades e especialistas em segurança o ano de consolidação do programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Em 2008, quando foi instalada a primeira UPP, no Morro Dona Marta, em Botafogo, o Instituto de Segurança Pública registrou 16 mortes por balas perdidas no estado. No ano seguinte, a estatística caiu para oito. Em 2010, houve um novo aumento: 14 casos, seguido de uma redução em 2011, quando ocorreram sete óbitos. Em 2012 e 2013, foram oito e nove mortes, respectivamente.
"SENSAÇÃO DE INSEGURANÇA"
O número de feridos por balas perdidas também era bem menor nos “anos de ouro” das UPPs. Em 2008, foram 219 casos; em 2013, 111 ( que corresponde a uma redução de 49,3%).
Professor do Instituto de Ciências Sociais da Uerj, José Augusto Rodrigues acredita que a crise financeira do estado, somada à saída, este mês, de José Mariano Beltrame da Secretaria de Segurança (ele ficou quase dez anos à frente da pasta), criou a impressão de que não há ninguém responsável pelo combate à violência no Rio. Essa sensação, segundo o acadêmico, é experimentada tanto por vítimas quanto por pessoas ligadas ao mundo do crime:
— O sentimento de insegurança da população é proporcional à confiança dos bandidos na impunidade. Quem está vinculado ao crime organizado acredita que a situação está favorável para a prática de delitos — diz o sociólogo, ressaltando que o medo das pessoas nem sempre está relacionado a uma maior incidência da violência. — Muitas vezes, casos de grande repercussão produzem essa sensação na sociedade em geral.
Ainda de acordo com Rodrigues, o alto número de vítimas de balas perdidas no Estado do Rio indica que há um aumento na quantidade de disparos de armas de fogo. Para ele, isso corresponde a uma percepção, por parte de criminosos, de redução do policiamento ostensivo.
Para Roberto Kant, coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos da UFF, a falta de recurso no estado agrava o problema, mas não é o principal motivo para a escalada no número de balas perdidas:
— Não é apenas a crise financeira. O problema é estrutural. A ocupação (de comunidades) deu certo num determinado território. O armamento pesado foi retirado de algumas áreas e substituído por artefatos leves, porém a instituição militar não tem mais recursos e falta policiamento. Agora, as facções estão voltando. Fonte: http://oglobo.globo.com