Por André Martins

Se a casa é o símbolo máximo da proteção e da propriedade, a rua é uma perigosa terra de ninguém. Quase sempre esses dois ambientes são definidos pelas relações de contraposição. Quase sempre. Porque para um número indefinido de pessoas no Brasil, rua e casa são apenas sinônimos. De acordo com o último censo realizado em 2013 pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), os moradores de rua da capital mineira estão em torno de 1,83 mil indivíduos. O número é variável e nunca exato devido às dificuldades de quantificar uma população que migra constantemente.

Basta um pouco de sensibilidade para perceber, embora de forma imprecisa, as dificuldades dessas pessoas. Driblar necessidades básicas, como comer e se proteger do frio, são desafios para quem tem o céu como teto. Muitas vezes, as drogas são fatores de limitação. Nesse universo, comovem ainda mais os casos de mulheres grávidas que exibem suas barrigas ao vento das ruas como se respondessem apenas por si.
Elizabeth Caetano é assistente social no Hospital Sofia Feldman. Nos oito anos em que ela presta serviços para a instituição surgiram casos marcantes de grávidas moradoras de rua e viciadas em entorpecentes no hospital. Algumas histórias a impactaram de forma definitiva. "Ela tem cerca de 35 anos e foi mãe 11 vezes. Dessas 11 crianças, quatro nasceram no hospital. As duas primeiras foram encaminhadas para acolhimento institucional, e as outras duas saíram com ela. Essas histórias sempre mexem com a gente porque vemos o sofrimento dessas mulheres", revela.

De igual forma, para os profissionais de saúde que frequentemente lidam com casos similares, é praticamente impossível manter-se distante emocionalmente. "É difícil não sentir algo. No Hospital Risoleta Neves, por exemplo, há uma mulher conhecida de todos. Ela é moradora de rua, usuária de drogas e já teve quatro filhos. Alguém da família se dispôs a ficar com um dos filhos. Os outros foram para abrigos", conta a médica obstetra e referência técnica do Comitê de Prevenção de Óbito Materno da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA), Patrícia Magalhães.

Outro que coleciona dramas de roteiros tristes e, às vezes, previsíveis é o policial aposentado Robert William. Ele é diretor da Organização Não Governamental Defesa Social, instituição que trabalha com a abordagem, o acompanhamento e o encaminhamento de usuários de drogas para comunidades terapêuticas e o serviço público de saúde. "Grande parte dessas crianças é composta por ‘filhos do crack' e da droga. Não são frutos de relacionamentos regulares, amorosos. Algumas mulheres se prostituem por uma ‘pedra'", explica. Segundo Robert, cerca de 50 mulheres moradoras de rua que declararam estar grávidas foram abordadas pela equipe multidisciplinar da ONG, que atua na capital mineira e na Grande BH há 11 anos. 

Robert William pondera que o fato de essas mulheres morarem nas ruas não as destitui de sentimentos inerentes à maternidade. "Elas querem sempre o melhor para os filhos, inclusive que eles não se envolvam com drogas. Quando conversamos com essas mulheres, percebemos que elas gostariam de ter uma família, uma casa, um marido,... É um sofrimento muito grande", conta.

A saúde dos bebês filhos de mulheres em situação de rua e envolvidas com o vício em drogas é uma preocupação real. Mas esse não é o único problema. Cerca de 90% dos bebês acolhidos nas 15 unidades da PBH que abrigam crianças de zero a 6 anos são filhos de mães dependentes químicas. Muitas delas moram nas ruas. A informação é da secretária Municipal Adjunta de Assistência Social - Gerência de Abrigamento da PBH, Helizabeth Itaborahy Ferenzini. 

Desde quando essas mulheres começaram a ser identificadas pelas equipes dos consultórios de rua da prefeitura ou dão entrada nos hospitais para o início do pré-natal ou do parto, uma movimentação intensa acontece nas maternidades, no setor de Assistência Social da prefeitura e no Poder Judiciário.

Para evitar que os bebês cresçam em abrigos, as assistentes sociais da PBH trabalham para levantar o histórico dessas mulheres e chegar até as famílias delas. Se não for possível para a mulher poder assumir seus compromissos como mãe, o objetivo é promover a adoção dessas crianças por pessoas próximas. 

Muitas vezes, o processo de identificação da família começa nas próprias instituições de saúde. "Nós procuramos a família. Se ela alega que vai ajudar a cuidar, a gente faz os encaminhamentos adequados", revela Elizabeth Caetano. A mãe também é orientada a entender que acompanhar o crescimento do filho passa pela necessidade de abandonar o vício.
Mas, em alguns casos, a identificação dos familiares é uma tarefa difícil. O destino mais certo para essas crianças são os centros de acolhimento. "Quando essas famílias não são identificadas, a mulher vive em situação de rua e com histórico de uso de drogas, a gente não pode ser irresponsável e entregar esse bebê para a mãe. Aí a gente faz o encaminhamento para a Vara da Infância", arremata Elizabeth.

 

Direito de quem?

Desde o ano passado, a Promotoria da Infância e da Juventude de Belo Horizonte vem sendo alvo de críticas por parte da prefeitura, de legisladores e de organizações sociais. O órgão exige das maternidades e dos profissionais de saúde a comunicação sobre os nascimentos de bebês filhos de mulheres viciadas em drogas. Para os promotores, a medida é necessária por causa da falta de políticas públicas voltadas para essas mulheres e seus filhos.

Em maio, deputados da Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais se reuniram com o Procurador-Geral de Justiça Carlos André Mariani Bittencourt para debater as recomendações da Promotoria. "A recomendação do Ministério Público determina que a mãe que usou drogas perca imediatamente a guarda do bebê. Só que foram relatados vários casos de abuso na retirada de crianças das mães", aponta o deputado João Leite (PSDB/MG). Para o parlamentar, o método adotado pela SMSA, de acompanhamento da mãe e do bebê para que o direito do contato seja preservado, é o mais adequado. Na opinião do deputado, o direito que a criança tem de permanecer com a família extensa deve ser priorizado.

E as recomendações do MP se refletiram nas ruas. É o que revela Arnor Trindade, crítico da decisão do MP e referência da Coordenação de Saúde Mental da SMSA. Para o especialista, a possibilidade da retirada das crianças das mães tem coagido muitas a revelarem que estão grávidas. Trindade entende que apartar os bebês de suas mães é uma prática que deve ser revista. "O Estatuto da Criança e do Adolescente diz, em seu primeiro item, que a criança tem o direito de permanecer com a família. Mas o Ministério Público dá primazia ao trecho que diz que a criança deve crescer em ambiente longe de usuários de entorpecentes. Às vezes, é possível que a mãe se recupere e que a criança fique sob guarda da família extensa", entende. Ainda segundo Trindade, a aplicabilidade da medida, que vale para todas as mães usuárias de droga e não apenas para as moradoras de rua, tem se dado de maneira seletiva. "Usuárias de droga que têm seus filhos no (Hospital) Mater Dei estão permanecendo com as crianças normalmente. Então é algo que deve ser avaliado", alerta.

O Ministério Público prioriza a proteção e o bem-estar das crianças, como explica o promotor de Justiça da Infância e da Adolescência, Celso Penna Fernandes Júnior. Para ele, a Promotoria é obrigada a preservar a integridade dos bebês em abrigos de acolhimento até que a prefeitura possa desenvolver o trabalho investigativo e determinar judicialmente o destino da criança. Na visão do promotor, o encaminhamento para a família substituta só deve ser feito quando todas as possibilidades de inserção da criança na família extensa sejam esgotadas.

Além de determinar a comunicação sobre os casos desse tipo de nascimento, a Promotoria exigiu que o município crie abrigos para o acolhimento de mães e de bebês. Para Celso, é fundamental que haja uma política pública efetiva de acompanhamento e um trabalho prévio para que a mãe possa, em perfeitas condições, receber a criança. "Não adianta criar um programa que atenda por um mês e achar que isso vai resolver o problema", adverte. "É uma irresponsabilidade deixar que essa criança seja usada visando a recuperação da mãe".

Celso sai em defesa da Promotoria, acusada de perseguição a pobres e à comunidade negra. Ele critica também o andamento das reuniões para o debate do assunto na esfera pública. "Fiquei sabendo que levaram mulheres que tiveram seus filhos retirados delas em reuniões na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa. Acho que essas pessoas não sabem e não querem saber concretamente o que aconteceu ao longo do processo que envolveu essas mães. Elas tiveram direito à defesa, o direito de recorrer, foram para o Tribunal e ficou decidido que elas não deveriam ficar com as crianças. O trabalho é todo documentado; tudo está no papel; tudo foi investigado. É muito fácil falar genericamente de perseguição sem ter o conhecimento do processo", aponta.

De acordo com Helizabeth, a maioria dos bebês filhos de mães dependentes químicas de Belo Horizonte tem apresentado parecer conclusivo para a colocação em famílias substitutas. O acompanhamento pós-acolhimento é feito pelo Sistema Único de Assistência Social do município. Fonte: http://www.voxobjetiva.com.br