Arie G. Kallenberg
São muito poucos os textos dos primeiros autores Carmelitas que estabeleceram uma relação clara com a Ressurreição. Existe um texto notável escrito entre 1317 e 1345/1352 por John Baconthorpe, Laus Religionis Carmelitanae 48, pouco depois de 1312, o ano em que o Ordinário de Siberto de Beka foi prescrito para toda a Ordem. O capítulo 2 de Laus Religionis Carmelitanae aborda o modo como os Carmelitas mostram nos seus hábitos a graça da Ressurreição 49. Escreve Baconthorpe:
"Quando Cristo foi glorificado, o esplendor da sua divindade sobrepôs-se à sombra da sua humanidade – visto que a sua face resplandecia gloriosamente como o sol e as suas vestes eram brancas como a neve - como se durante algum tempo e de forma mística, envolvesse com carícias as vestes e as capas dos Carmelitas, mostrando a gloria da sua Ressurreição. Nessa mesma transfiguração apareceu o Pai dos Carmelitas, Elias, juntamente com Moisés. como testemunha da Lei, prefigurando misticamente a gloria e o esplendor da graça [da Ressurreição]" 50.
Ao estudar mais profundamente o significado das duas cores (cinza e branco) dos mantos dos Carmelitas, no qual o branco simboliza o tempo de Graça e a união a Maria, conclui o capítulo com as seguintes palavras: "Então o apóstolo diz: 'Saiamos das trevas e lutemos com as armas de luz'. Desta forma, passamos do tempo da Graça para a glória da Ressurreição eterna" 51. Também no terceiro capítulo que trata o "Elogio do traje da Ordem dos irmãos Carmelitas" Baconthorpe estabelece uma relação entre o manto dos Carmelitas e a Ressurreição: "era então certo que os Carmelitas, que representavam tempos antigos com as suas roupas, deveriam agora mostrar a futura glória imaculada dos crentes de uma forma respeitável com os seus esplêndidos mantos. Isto acontece então no tempo de Graça". 52 Ele refere-se aqui ao facto de que o antigo manto de duas cores ter sido mudado para branco. Na sua opinião, esta mudança aconteceu graças à intervenção divina para que desse modo os Carmelitas pudessem "mostrar claramente aos crentes a paz eterna e a glória da Ressurreição" 53. De seguida diz que está a falar de uma ligação direta à liturgia dos Carmelitas que mais do que os outros celebram a Ressurreição do Senhor: "e particularmente estes irmãos celebram nas suas igrejas a liturgia da Ressurreição do Senhor, de um modo mais especial do que todos os outros” 54. Este testemunho de John Baconthorpe pode ser considerado extraordinário por causa da relação explícita que estabelece entre a Ressurreição e a primeira liturgia Carmelita. Segundo os seus textos é óbvio que a liturgia da Ressurreição não é mera recordação de um acontecimento histórico, mas antes uma realidade dinâmica que passou da liturgia até ao âmago do pensamento e da vida espiritual dos Carmelitas medievais. Apesar de, até hoje, nenhum dos estudos de outros textos espirituais medievais ter produzido pontos de contato entre os elementos referidos, ainda assim estou convencido que ao longo dos séculos a influência da liturgia da Ressurreição, consciente ou inconscientemente, deixou a sua marca na maneira de pensar e de agir dos Carmelitas, uma vez que tinha de ser celebrada em todos os seus mosteiros desde o início do século XIV até ao século XVI. Num estudo recente sobre a Regra dos Carmelitas, Kees Waaijman55 abordou o tema da Ressurreição, não diretamente em termos da liturgia, mas dentro do contexto da Regra.
Seguem-se algumas afirmações da sua obra. A primeira citação refere-se ao capítulo décimo da Regra, capítulo que trata do oratório e da prática da união.
"Os antigos monges do deserto celebravam a Eucaristia uma vez por semana. No século XIII era diferente. A maioria das comunidades religiosas juntava-se todos os dias para a Eucaristia. A reunião diária dá uma estrutura rítmica à vida. O facto de se juntarem diariamente, de manhã cedo, ao crepúsculo, dá ao dia um ritmo básico. O nascer do sol que conquista a noite deve ter sido intuitivamente entendido como sinal do Ressuscitado” 56
O encontro dos irmãos tinha uma dimensão litúrgica. O facto de virem todos juntos para a Eucaristia quase lembra a Ressurreição:
"A Eucaristia, afinal de contas, começa onde nós permitimos que o Senhor nos una num só. Ele convida-nos a escutar a sua palavra para que ela nos toque, forme o desejo no nosso coração e nos faça procurar a sua presença. Ele convida-nos a tornar o seu corpo e sangue, para nos lembrarmos d'Ele e nos identificarmos com Ele, para que entremos na sua morte e sejamos encontrados pelo próprio Deus.
A Eucaristia radicaliza o ato de sair de nós próprios: não somos nós quem vimos: mas somos conduzidos, conduzidos para a vastidão do Mundo para a profundeza da Morte para sermos encontrados, para sermos reunidos, para sermos unidos.
Esta é a perspectiva mística do facto de se reunir para a celebração da Eucaristia. Este movimento místico está lindamente representado através das palavras ‘de manhã cedo’, palavras que evocam a marcha silenciosa de Maria Madalena até ao túmulo: 'No primeiro dia da semana, ainda era escuro, Maria de Mágdala foi ao túmulo de manhã cedo...' (João 20:1). De manhã cedo os Carmelitas reúnem-se no oratório, e ninguém ocupa o centro. Como a noiva do Cântico dos Cânticos, também eles, enquanto ainda é noite, procuram Aquele a quem as suas almas amam.
À procura do amor através da escuridão da noite segue-se a experiência da Páscoa na escuta da voz suave: 'Miriam', o teu querido nome pronunciado por aquele que é amado pela tua alma. Segue-se a resposta não menos terna: 'Rabbouni'. Esta é a Páscoa do amor, a profundidade mística da Eucaristia. Aqui esta o coração do Carmelo". 57
No seu comentário sobre capítulo da Regra que trata o capítulo semanal, Kees Waaijman continua as suas reflexões sobre o Domingo, como o dia da celebração da Ressurreição:
"Identidade e reciprocidade soam mais profundamente quando colocadas no contexto do amor do Ressuscitado. A Eucaristia no dia da Ressurreição, a referência ao amor de Maria Madalena, a reunião dos apóstolos no primeiro dia da semana e o aparecimento no meio deles d'Aquele que ressuscitou - tudo isto centraliza o capítulo no contexto do amor d'Aquele que ressuscitou e se entregou na sua Palavra, no seu Corpo e Sangue…”58.
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46 Kallenberg, Fontes. 292.
47 Idem, op. cit., 56.
48 Adrianus Staring, Medieval Carmelite Heritage. Roma, Institutum Carmelitanum 1989, 176-177.
49Adrianus Staring, Medieval Carmelite Heritage. 249: Capitulum II, Quod Carmelitae ostendunt in habitu gratiam resurrectionis.
50 Adrianus Staring, Medieval Carmelite Heritage, 249: “Cum etiam ipse Christus transfiguratus est, super umbram humanitatis suae claritas apparuit deitatis, quia resplenduit facies eius sicut sol, et vestimenta eius facta sunt alba sicut nix, ac si mystice habitum Carmelitarum et cappam pro tempore, quasi super umbram <humanitatis> gloriam resurrectionis praemonstrando, baiularet. In ipsaque transfiguratione pater Carmelitarum Elias cum Moyse apparuit velut Legis testes, et gloriam ac splendorem gratiae mystice praefigurantes".
51 Adrianus Staring, Medieval Carmelite Heritage, 251: Unde apostolus: "Abiiciamus opera tenebrarum et induamur arma lucis". Et sic de tempore Gratiae pervenitur ad gloriam resurrectionis perpetuae.
54 Adrianus Staring, Medieval Carmelite Heritage, 251: Et ipsi quidem fratres officium resurrectionis Dominicae in ecclesia ceteris specialius exercent.
55 Kees Waaijman. De mystieke ruimte van de Karmel. Een uitleg van de Karmelregel. Kok Kampen-Carmelitana Gent. 1995. 230 pp.
56 Kees Waaijman. De mystieke ruimte van de Karmel, 100.
52 Adrianus Staring, Medieval Carmelite Heritage, 251: Dignum igitur fuit ut Carmelitae, qui tempora priora cum indumenti speculo monstrabant, ordinatim futuram resurrectionis gloriam fidelium, non habentem maculam, cum cappa splendida praesentarent. Unde sub tempore Gratiae.
53 Adrianus Staring, Medieval Carmelite Heritage, 251: ut sic pacem aeternam et resurrectionis gloriam...palam ostenderent fidelibus