Dom Messias dos Reis Silveira
Bispo de Teófilo Otoni (MG)
Todas as vezes que um padre se auto extermina muitos comentários são feitos. Quase sempre se procura um culpado. O encontro de um culpado parece que conforta e se parece com a atitude de Pilatos de lavar as mãos e não se comprometer. Quem é o culpado? O Bispo? Os superiores? O presbitério? O Sacerdote? A família? A Igreja? O sistema? Os questionamentos seguem quase sempre sem respostas geradoras de vida. Os fatos vão se repetindo.
Raramente se fala de um modo de viver que leva à morte ou à vida. É preciso ao longo da vida encontrar o jeito de viver que esteja em sintonia com a alegria vocacional. Um modo de viver que faz o coração arder e os pés se colocarem a caminho (cf. Lc 24,32-33). Esse modo de viver não se constrói de uma hora para outra.
Um modo de viver que não esteja em sintonia com o Projeto vocacional gera crises, culpabilizações, reclamações e arrefecimento do ardor do coração. Tudo parece estar errado e isso não gera vínculo dos vinhateiros com a vinha e principalmente com seu proprietário. Muitas vezes prepara-se para proteger dos perigos externos, mas esquece-se dos inimigos internos. Fervilham-se no interior muitos males, pois é de dentro do coração que eles vem (cf. Mt 15,19).
Recentemente o Papa Francisco, falando aos Bispos do Regional Leste 2 da CNBB na Visita Ad Limina, disse que não é possível formar presbíteros da mesma forma que se formava há 30 anos. Não é possível formar bem, se não permitir aos seminaristas mostrarem seus corações fragilizados, suas marcas da história e suas inseguranças. Como limpar o interior se não se pode abrir, por medo de punição, ou temor das portas se fecharem? O mesmo vale para os sacerdotes, os quais escondem suas dificuldades por medo de punição, ou rejeição. John Powell em seu livro “Por Que Tenho Medo de Lhe Dizer Quem Sou?” diz que, ao revelar a alguém o seu interior, o ouvinte pode não gostar e rejeitar a pessoa. A rejeição é sempre um sentimento que impede crescimento. É necessário um processo que gere confiança.
Atrás de um sacerdote ou de um agente religioso está um ser humano com todas as vicissitudes, mazelas e virtudes da “natureza” humana. O modo de estar no mundo depende dos condicionamentos e das estruturas originárias em que cada um edificou a sua forma de existir para si mesmo e para os outros. Ainda que a graça de Deus atue na fragilidade de uma pessoa, a ação de Deus vai sempre supor o conjunto estrutural humano que carrega este dom. E quando há um processo de adoecimento estrutural humano-psíquico-afetivo-social e ético, o arcabouço religioso não se sustenta (“a graça supõe a natureza”) e fica comprometida a liberdade verdadeira no seguimento ao projeto de Cristo na aposta vocacional. Não se trata, portanto de ausência de Deus, ou distanciamento dele.
Um modo de viver sacerdotal sem vínculo com o presbitério, sem comunhão, sem cuidado da saúde física, emocional, relacional e espiritual conduz para a morte. E isto tem se tornado o grande desafio para a nossa missão de Bispos Pastores enquanto cuidadores do rebanho, desde a formação inicial até a permanente. Gerar confiança e ajudar a curar os corações é um caminho que não se pode dar por descontado. Necessário também é evitar aquilo que precisa ser escondido.
Kant (citado pelo filósofo brasileiro Mário Cortella em uma de suas palestras em seu canal no Youtube, 20/02/2020), refletindo sobre ética e integridade, não querendo abolir a privacidade interior de ninguém, disse que tudo o que não se puder contar aos outros não se deve fazer. Porque daí começa ambiguidade da vida dupla (aquela com a qual eu me apresento a todos e aquela oposta e contraditória que só eu sei que vivo). Nosso eu, quando escondido, adoece fugindo do real. As satisfações criadas pelo imaginário distanciam-se da realidade, colocam a pessoa no mundo irreal e vão matando aos poucos.
Por um lado, ilumina-se o papel da Formação Sacerdotal e Religiosa como lugar da percepção dos indícios do adoecimento da pessoa, cujas manifestações já se anunciam nos jogos e artimanhas psicológicas de defesa e escondimento. A Formação precisa assumir, em parceria com os profissionais da área e outras instituições da saúde mental, a tarefa curadora de ressignificação das experiências existenciais, possíveis causas das depressões escondidas, pois, se jogadas para debaixo do tapete, está aberto o caminho para que, uma vez fora das paredes protetoras da Instituição, o futuro sacerdote ou religioso se perca sozinho no embate com o mundo real que é cruel e acaba por expor as fragilidades de um indivíduo.
Por outro lado, no cuidado da saúde relacional é preciso criar relações que edificam. Nunca se deve iniciar um relacionamento que não pode ser revelado aos outros. Relações mal direcionadas podem matar, sejam elas com pessoas, com as coisas, com os bens materiais, com o poder, com as ilusões imaginárias e até consigo mesmo.
Um sacerdote não terá boa saúde vocacional se deixar-se ser atraído por situações de pessoas maldosas que usam as redes sociais ou outros meios para viciar, extorquir, difamar e desconstruir um projeto vocacional que foi construído ao longo de muitos anos. Esses predadores estão especialmente escondidos nas redes sociais escolhendo vítimas e esperando a hora certa para as atacar. Muitas vezes quando se percebe já se caiu na armadilha. Nestas situações a impossibilidade de pagar o exigido, a dor e a vergonha aparecem e aumenta o risco de querer se esconder ainda mais, até mesmo eliminando a vida.
O problema do suicídio vem de longa data. O suicídio é a culminância de um processo de adoecimento que vai tornando a vida um peso intransponível para a pessoa que lida com suas dificuldades, esmagada pela impossibilidade de sair do sofrimento. Não é uma escolha racional livre e descontaminada. É a única forma viável dentro da lógica de um coração adoecido para abortar o sofrimento e, quem sabe, ser feliz, ainda que depois da morte.
Talvez não consigamos resolver o problema do suicídio de uma vez para sempre como gostaríamos, mas é preciso melhorar a baixa imunidade especialmente dos líderes espirituais e o remédio para essa melhoria é criar relações sadias consigo mesmo, com o presbitério, com a família, com as pessoas, com a Igreja e com Deus, através de um bom enfrentamento das próprias limitações e ilusionismos de falsas seguranças ainda no período da formação, o que deveria ser o papel da dimensão humano-afetiva da formação presbiteral e religiosa. Além do mais é preciso sair da mesquinhez que aprisiona e não deixa o sacerdócio crescer. Nossas pragas diárias, como as do Egito, são um grito para que deixemos nosso sacerdócio ir para servirmos ao Senhor. Moisés falava ao Faraó para deixar o povo ir. É preciso libertar-se das escravidões e deixar o sacerdócio ir, pois o caminho é longo. É preciso tomar consciência que se está escravo. Escravidão tem cura. Assim, livres e radiantes, será sempre prazeroso viver a vocação até mesmo no sofrimento por causa do Evangelho. Os riscos e problemas continuarão a existir, mas haverá um sentido para a vida que conduzirá para o crescimento. Todos serão beneficiados com essa luz que se acenderá.
A leveza da Cruz é encontrada no amor. Cristo encontrou a leveza de seu sofrimento confiando no Pai e na alegria da redenção. Ver a humanidade toda redimida lhe trouxe grande alegria. Podemos dizer que Ele viveu a alegria da Cruz. Encarnação e Redenção são mistérios que nos permitem equilibrar e desequilibrar entre passado e futuro. Dar passos é sempre correr o risco de se equilibrar e se desequilibrar. É seguir com os corações ardendo no presente enquanto se faz e ama o caminho que leva para o amanhã, mesmo que seja um caminho com muitas surpresas e obstáculos. Fonte: https://www.cnbb.org.br