Encontro que desafia estereótipo religioso já teve mais de 3 milhões de visualizações
João Igor, da igreja Tua Graça & Vida, em Arujá (SP) canta com a travesti Fernanda Ganzarolli, que parou para participar da evangelização - @joao_igoroficial no Instagram
Daniel Guanaes
PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, é pastor presbiteriano, psicólogo e líder do movimento Pastores pela Vida (Visão Mundial)
Um encontro inesperado entre um cantor evangélico e uma travesti ganhou destaque nas redes sociais na última semana. Durante uma de suas apresentações de evangelização, João Igor, da igreja Tua Graça & Vida, em Arujá, na grande São Paulo, foi surpreendido por Fernanda Ganzarolli, que passava pela calçada e resolveu participar daquele momento.
João evangeliza nas ruas de Arujá, com seu violão e uma câmera de vídeo para transmitir seu trabalho. Enquanto encorajava as pessoas a pedirem para que Deus falasse com elas, Fernanda se aproximou. Olhando para a câmera do celular, disse: "É isso aí, galerinha. Vamos dar uma força pra quem está começando". E pediu: "Toca uma moda aí!"
A cena rapidamente se espalhou pela internet. O vídeo, que já ultrapassou 3 milhões de visualizações no perfil do cantor, se transformou em um símbolo de empatia — algo cada vez mais difícil de encontrar em tempos de radicalização.
A dinâmica do encontro chamou a minha atenção pelo mútuo respeito e generosidade. Fernanda animou o momento com músicas populares, sem saber que era uma apresentação evangélica. João Igor acolheu o gesto e retribuiu com suas canções de fé.
Quando Fernanda entendeu o contexto, respondeu com o mesmo respeito, participando dos louvores. No final do vídeo, João Igor disse: "que Deus abençoe a nossa amiga", e completou, dizendo que Deus traz os anjos para nos abençoar.
A fala final de João Igor me lembrou de um trecho da Bíblia. Na carta aos Hebreus, há uma recomendação: "Seja constante o amor fraternal. Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos" (Hb 13.1-2).
O texto traz duas palavras cheias de significado: hospitalidade e anjos. Hospitalidade, no original grego, é "philoxenia" —amor ao que nos é estranho, ao que vem de fora. Já "aggelos", traduzida como anjo, significa mensageiro. Em outras palavras, quem acolhe com amor o diferente pode, sem saber, estar ouvindo algo que vem do próprio Deus. Teria sido isso que João e Fernanda experimentaram naquele gesto de hospitalidade?
A maneira como o encontro se deu mostra que as fronteiras entre universos aparentemente distintos podem ser mais tênues e porosas do que muitos imaginam. A mesma sociedade que abriga uma travesti também forma evangelistas de rua. E, muitas vezes, esses mundos não apenas coexistem, mas se entrelaçam dentro das próprias comunidades.
Talvez, aos que não conhecem de perto a realidade do universo evangélico, toda família evangélica se assemelha às representações estereotipadas de um pai, uma mãe e filhos, todos frequentando cultos juntos e seguindo os mesmos valores. Mas, como pastor, meu cotidiano é feito de visitas a casas onde a realidade é bem mais diversa.
É mais comum do que se imagina encontrar um pai pastor e um filho gay ou trans sob o mesmo teto. E nem sempre esses ambientes são espaços de conflito, violência e rejeição. Alguns desses pais reconsideram seus dogmas, como o pastor Bill White e seu filho relataram em fevereiro pelo New York Times. Outros, embora mantenham sua fé e visão doutrinária, continuam amando e protegendo esse filho com dignidade.
O cotidiano da fé nem sempre resolve as tensões, mas pode oferecer lugar para que elas coabitem sem se destruírem.
O encontro casual do João Igor com a Fernanda na rua pode parecer inusitado, mas, para quem vive o chão das igrejas e das casas, ele é a metáfora viva de muitos lares evangélicos: complexos, contraditórios e, ainda assim, profundamente humanos. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br