‘Não ardia o nosso coração, enquanto nos falava pelo caminho e explicava as Escrituras?’ Francisco falou ao nosso coração
Por Nicolau da Rocha Cavalcanti
São Lucas narra uma das cenas mais bonitas da Bíblia. Dois discípulos de Jesus iam a pé de Jerusalém a Emaús. “Enquanto iam conversando e discorrendo entre si, o mesmo Jesus aproximou-se e caminhava com eles. Mas os seus olhos estavam como que vendados e não o reconheceram. Perguntou-lhes, então: ‘De que estais falando pelo caminho, e por que estais tristes?’”. Eles, então, explicaram o que havia ocorrido: Jesus – “profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo” – tinha sido crucificado e, apesar de alguns boatos sobre sua ressurreição, ninguém ainda o vira. Este era o motivo da sua tristeza: aquele que pensavam ser o Messias estava morto. Aquela história, que parecia tão bonita, tinha chegado ao fim.
Jesus, então, os advertiu: “‘Ó gente sem inteligência! Como sois tardos de coração para crerdes em tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas para, assim, entrar em sua glória?‘. E, começando por Moisés, percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras”.
O fim da cena é conhecido. “Aproximaram-se da aldeia para onde iam e ele fez como se quisesse passar adiante. Mas eles forçaram-no a parar: ‘Fica conosco, já é tarde e declina o dia’. Entrou então com eles. Aconteceu que, estando sentado à mesa, ele tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e serviu-lho. Então, se lhes abriram os olhos e o reconheceram... mas ele desapareceu. Disseram, então, um para o outro: ‘Não ardia o nosso coração, enquanto ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?’”.
Penso que todos, crentes e não crentes, podemos dizer algo semelhante a respeito dos 12 anos de pontificado do papa Francisco: “Não ardia o nosso coração, enquanto ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?”. Francisco falou ao coração de todos nós. De diversas maneiras e em diferentes tons, mas sempre ao coração. Viveu o que Jesus ensinara: “Vós sois o sal da terra. Vós sois a luz do mundo”.
Francisco foi popular, mas nunca populista. Não teve medo de dizer verdades contrárias à opinião pública. Sua pregação foi sempre a das bem-aventuranças, que é exigente e oposta tanto a uma visão materialista da vida como à indiferença com o mundo e com os outros, tão presentes nos dias de hoje. “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”. Não são essas as palavras fundamentais do pontificado de Francisco? Paz, pobreza, caridade, mansidão, justiça, misericórdia.
O papa falava dos pobres como os “prediletos de Deus”. É o oposto da cultura do sucesso e da cultura da indiferença. Como olhamos os pobres à nossa volta?
Com razão, muito se diz que Francisco foi um reformador, que buscou promover reformas na Igreja Católica. O papa argentino queria deixar mais visível, transparecendo na organização e na ação, que a Igreja é um projeto de serviço, e não de poder. Afinal, Jesus “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate por muitos”. Mas a reforma de Francisco não tinha relação com atividades meramente externas, com “reformas estruturais desprovidas de Evangelho”. Sobre estas, disse na Encíclica Dilexit nos: “O resultado é, muitas vezes, um cristianismo que esqueceu a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoa-a-pessoa, a cativante beleza de Cristo, a gratidão emocionante pela amizade que Ele oferece e pelo sentido último que dá à vida”.
Francisco foi um homem do diálogo e do encontro, mas porque era, antes, uma pessoa do silêncio e da oração. Cultivava a vida interior. Em 2021, em entrevista ao Estadão, o biógrafo do papa Austen Ivereigh, questionado sobre a pandemia e o pontificado de Francisco, disse: “A Igreja mudou durante a crise, que acelerou o que já era claro: que a fé já não se transmite pela lei, pela cultura, pela instituição e pela família, mas pelo testemunho e pela experiência. Entender essa mudança é a chave do pontificado”.
Francisco transmitiu-nos sua experiência de Deus, seu testemunho pessoal de Deus. E, por isso, foi tão genuíno, próximo, acolhedor, sincero, humano. Com falhas, certamente. Não poucas vezes precisou esclarecer o que havia dito. Mas Francisco – e aqui está o mistério – não foi apenas Jorge Mario Bergoglio. Muito mais do que expressão de uma personalidade cativante ou de uma liderança excepcional, o pontificado que se encerrou há dois dias evidencia o mistério da Igreja, em sua dimensão humana e também divina. Evidenciou que Deus não é uma ideia, menos ainda uma ideologia. Deus é Amor. Fonte: https://www.estadao.com.br