Nossa independência no abismo?
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Dos desvios idiomáticos aos problemas enfrentados nas contas públicas, o Brasil corre o risco de perder sua independência
Por Flávio Tavares
O mês de agosto terminou há pouco, mas dele fica aquela rima que virou repetido refrão: “Agosto, mês do desgosto”. E há pretextos (ou até motivos) para isso: agosto foi o mês da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Nove anos depois, aqui, no Brasil, o assassinato do major Rubens Vaz desencadeou uma crise política profunda que culminou, em 24 de agosto de 1954, com o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Em 22 de agosto de 1976, vivíamos ainda sob ditadura quando o ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu num acidente automobilístico na Via Dutra, nunca esclarecido e que, por isso, até hoje levanta suspeitas.
Mas agosto já passou, agora estamos em setembro e, amanhã, dia 7, festejamos 202 anos da proclamação da Independência do Brasil. É o “Dia da Pátria”, rememorando o histórico “grito do Ipiranga”, atualmente comemorado com desfiles militares e outras demonstrações de que somos independentes.
Vivemos hoje, no entanto, uma invasão estrangeira que pode transformar o estilo de vida e, especialmente, o idioma e as diferentes formas de comunicação. Se isso se consumar, perderemos nossa “independência”.
O poeta Fernando Pessoa já escrevia que “minha pátria é a Língua Portuguesa”, atualmente invadida pelo idioma inglês, tal qual no século 19 fora, em parte, invadida pelo francês. Camões, poeta maior de nossa língua, tem um soneto sobre o idioma português que vai às origens da língua derivada do latim vulgar: “Última flor do Lácio, inculta e bela / és a um tempo esplendor e sepultura / ouro nativo que na ganga impura / a bruta mina entre os cascalhos vela”.
Corremos o risco de que a raiz e o cerne de nosso idioma sejam suprimidos ou desapareçam nas formas essenciais (como desapareceu o latim) numa avalanche que cresce quase diariamente.
A mais recente expressão inglesa incorporada ao nosso idioma é fake news, repetida pelos meios de comunicação e adotada até nas escolas, como se em nosso idioma não houvesse o termo “falsa notícia”.
Porém a verdadeira aberração entre nós no Brasil é “mídia” (escrito assim, com “i” acentuado), que, de fato, é o termo latino media. Como em inglês escrevem media, mas pronunciam “mídia”, aqui passamos a escrever e dizer também assim, para significar “meios de comunicação”.
A internet despejou no idioma português uma série de expressões inglesas, desde streaming até outras mais, como on line ou Wi Fi. Não pretendo fazer, aqui, uma espécie de minidicionário de vocábulos ingleses hoje incorporados ao nosso idioma ou de uso corrente no dia a dia. Ou já praticamente intraduzíveis, como spray. Ou simplesmente adotados e de uso corrente, como shopping center e show, que substituíram aquilo que deveríamos chamar de “centro comercial” e “espetáculo”, em castiço português.
Há outros vocábulos ingleses que, pelo uso constante, foram já aportuguesados, tal qual stress (que escrevemos “estresse”) ou team, que escrevemos “time”, antes restrito ao futebol e, agora, generalizado. Na área desportiva os vocábulos ingleses se aportuguesaram quase totalmente, e talvez nos sobre apenas “natação”. Seria ridículo dizer ludopédio em vez de futebol, como sugeria meu professor de Português no ensino fundamental. Entretanto, no México (onde morei por cinco anos) dizem balonpié, traduzindo literalmente o termo inglês football. Aqui, joga-se vôlei e basquete, que antes chamávamos bola ao cesto.
O uso do idioma inglês penetrou até no Poder Judiciário, onde antes usava-se um latinório quase incompreensível. Há poucos dias o culto ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso escreveu fishing expedition, expressão comum nas cortes dos EUA, para aqui significar a “busca de ilícito sem causa provável”.
Não é por isso, entretanto, que somos um país subdesenvolvido, mesmo com dimensões continentais. Tantos são os motivos que é difícil de enumerá-los. Seria infantil e absurdo culpar os desvios idiomáticos pelos problemas atuais ou, até mesmo, pelos vividos ao longo dos anos. Aí está a crise climática indicando que o problema é secular e abrange o planeta inteiro.
Fiquemos, porém, com os problemas e desacertos recentes. Não me refiro aos crimes comuns, como o feminicídio, o roubo ou os incêndios florestais criminosos, cuja fumaça chega até a cidades como São Paulo. Saliento, porém, as responsabilidades dos governantes. Passamos da desastrosa gestão de Jair Bolsonaro ao esperançoso governo de Lula da Silva, mas a máquina governamental continua lenta, parecendo até que nada mudou.
Nessa lentidão, em que a ociosa burocracia se sobrepõe à realidade, em 2023 a área governamental gastou mais de 45% do Produto Interno Bruto (PIB) – em 2022 foram 43,4% do PIB. A dívida líquida da União (externa mais interna) em julho deste ano chegou a R$ 6,962 trilhões, mesmo que tenha caído a 61,9% do PIB.
Também em julho de 2024, o Banco Central acumulava uma dívida de US$ 378,7 bilhões (para evitar dúvidas, repito, dólares). Só isso já basta para indagar se nossa independência não estará à beira do abismo. Fonte: https://www.estadao.com.br
*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
A covardia do Brasil na Venezuela
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A covardia do Brasil na Venezuela
Mesmo ante ordem de prisão do líder da oposição venezuelana, Lula segue incapaz de condenar a ditadura do companheiro Maduro, ofendendo os que bravamente lutam pela democracia
A repressão na Venezuela recrudesce a níveis pavorosos mesmo para os padrões de truculência do chavismo. O regime está em vias de aprovar uma “Lei contra o Fascismo” que na prática lhe dará carta branca para prender quem bem entender. Desde as eleições presidenciais, cujos resultados foram escandalosamente fraudados para dar a vitória ao ditador Nicolás Maduro, quase 30 manifestantes foram mortos e cerca de 2 mil foram detidos, entre eles dezenas de menores de idade. As milícias informais conhecidas como “Coletivos”, a Gestapo chavista, intimidam famílias em suas casas e jornalistas nas redações. O advogado da oposição foi sequestrado.
Agora, o regime ordenou a prisão do candidato da oposição, Edmundo González. Como se sabe, o único “crime” da oposição foi divulgar, graças à insubordinação cívica de funcionários dos colégios eleitorais, fotogramas das atas eleitorais que confirmam, segundo a apuração de vários observadores independentes, sua vitória nas urnas com dois terços dos votos.
Chancelarias de diversos países latino-americanos emitiram notas veementes de repúdio. Já o governo brasileiro continua a fazer cara de paisagem. Em tom prazenteiro, o chanceler paralelo do presidente Lula da Silva, Celso Amorim, disse que “eu sou do tempo da bossa nova – a gente nunca sobe o tom”. Nunca, desde que se trate de tiranos companheiros.
Se o governo, sob a retórica malandra do “pragmatismo”, se desfaz de suas obrigações de denunciar a fraude contra a vontade do povo venezuelano e as violações de seus direitos fundamentais, não é por falta de saliva. Mesmo em questões em que tem pouca influência, como a guerra na Ucrânia ou em Gaza, Lula fala e fala muito, com frequência superlativamente, como quando equiparou as operações militares de Israel ao Holocausto. O Brasil, por sinal, segue sem um embaixador em Israel.
Em 2012, quando o Parlamento do Paraguai destituiu o presidente esquerdista Fernando Lugo, a então presidente Dilma Rousseff vociferou contra uma suposta “ruptura da ordem democrática”, engendrando com os governos esquerdistas da Argentina e do Uruguai o afastamento do Paraguai do Mercosul. Pouco importa que missões internacionais tenham constatado a higidez constitucional do impeachment de Lugo: como se tratava de um companheiro progressista, Dilma deixou de lado a diplomacia “bossa-nova” de Amorim. Para confirmar que a manobra era puramente ideológica, o consórcio esquerdista do Mercosul, sem o inconveniente voto contrário do Paraguai, aprovou a entrada no bloco da – ora vejam – Venezuela chavista.
Em outras palavras, em nome da “defesa da democracia”, o lulopetismo e seus sócios sul-americanos patrocinaram um atentado às instituições do Mercosul, alijando um país em condições de normalidade democrática para favorecer um regime cujo autoritarismo é a principal marca.
A oposição venezuelana tem dado ao mundo um exemplo de heroísmo. Em outras ocasiões ela se fracionou e oscilou entre modos diversos de resistência, de boicote às eleições a tentativas de rebelião armada. Agora, mesmo diante de uma ditadura militar que mantém na coleira o Legislativo, o Judiciário e a mídia, optou pelo enfrentamento nas urnas – e venceu. Mas o governo brasileiro continua a promover a farsa da “neutralidade”, cobrando as atas eleitorais que o chavismo trancou a sete chaves e a oposição mostrou ao mundo.
Já ficou claro que o Brasil tem pouca capacidade de influência num regime manietado por China, Rússia e Cuba. Mas longe de isentá-lo, essa seria mais uma razão para que o seu chefe de Estado denunciasse com todas as letras o atentado contra a democracia e os direitos humanos em curso. Não é só um dever moral, mas constitucional. A Carta Magna brasileira preconiza que as relações exteriores do Brasil se regem, entre outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao terrorismo.
Ditaduras dependem de duas coisas para subsistir: o apoio das Forças Armadas e da população. Maduro, aparentemente, mantém o primeiro, mas o rechaço do povo venezuelano é inequívoco. Democracias genuínas deveriam celebrar e apoiar a resistência desse povo. O Brasil, em nome das amizades de seu presidente, prefere ofendê-lo. Fonte: https://www.estadao.com.br
Começa campanha eleitoral: veja o que pode e o que não pode
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Candidatos podem pedir votos, mas devem ficar atentos para não cometerem crimes eleitorais; veja quais regras os eleitores devem seguir
Período de campanha eleitoral começou nesta sexta-feira, 16 Foto: L. R. Moreira/TSE
Por Gabriel de Sousa
BRASÍLIA - O período oficial da campanha das eleições municipais de 2024 começou nesta sexta-feira, 15. A partir de agora, os candidatos aos cargos de prefeito e vereador nos 5.569 municípios do País podem pedir votos e organizar atos eleitorais.
O primeiro turno das eleições está marcado para o dia 6 de outubro. Em 103 cidades que possuem mais de 200 mil eleitores, há a possibilidade de haver segundo turno no dia 27 de outubro.
Os candidatos e os eleitores devem ficar atentos ao que é permitido fazer no período até o dia do pleito e o que pode ser configurado como crime eleitoral. Os delitos podem ocasionar multas até a cassação do registro de candidatura.
O que pode fazer?
A Justiça Eleitoral permite que os candidatos realizem comícios e carreatas. Os candidatos, porém, não podem utilizar aparelhos de som que ultrapassem 80 decibéis e deverão realizar os atos entre as 8 da manhã e às 22 horas. Também deverá ser respeitada uma distância de 200 metros de hospitais, escolas e sedes de Poderes.
Além de participar do horário eleitoral gratuito na rádio e na televisão, os candidatos podem pagar por anúncios de jornais até a antevéspera do dia do pleito. As propagandas em cadeia nacional vão começar a ser transmitidas no dia 30 de agosto e vão até 3 de outubro.
Nos jornais, os candidatos terão que respeitar o limite de até dez anúncios de propaganda eleitoral por veículo. A Justiça Eleitoral define também que o espaço máximo que os anúncios devem ocupar é de um oitavo de página de jornal padrão e de um quarto de página de revista ou tabloide.
O jornal impresso com o anúncio pode ser reproduzido na internet apenas pelo próprio veículo. É necessário que o valor pago pela campanha esteja visível nas páginas.
É permitido a propaganda em bens particulares desde que não haja algum tipo de pagamento, respeitando a vontade espontânea do dono do patrimônio.
As fachadas de comitês políticos podem ser utilizadas para a propaganda eleitoral. As faixas e cartazes não podem ultrapassar um limite de dois metros quadrados. Os candidatos também podem pedir votos em calçadas, desde que o trânsito de pedestres não seja prejudicado.
De acordo com uma nova resolução do TSE feita para as eleições deste ano, os candidatos podem utilizar a inteligência artificial (IA) para a produção das propagandas. É necessário que as campanhas divulguem de forma “explícita e destacada” o uso da IA para a fabricação do anúncio.
Os eleitores podem fixar nos carros adesivos micro-perfurados. As peças podem ocupar o para-brisa traseiro e outras partes do veículo, mas devem ter a dimensão de até 50x40 centímetros.
No dia das eleições, os eleitores poderão se manifestar, desde que de forma individual e silenciosa, a sua preferência por determinado candidato e partido. Segundo a Justiça Eleitoral, isso pode ser feito a partir de bandeiras, broches, dísticos, adesivos e camisetas.
O que não pode?
As campanhas não podem fixar propaganda eleitoral em muros, árvores e jardins, além de outdoors e fachadas de prédios públicos.
Uma resolução do TSE utilizada durante as eleições de 2022 que proibiu a divulgação de fake news em meios de comunicação, inclusive redes sociais, também será adotada nas eleições deste ano.
As campanhas não podem gastar mais do que o teto de gastos estabelecido pelo TSE para cada município. A lista com os valores foi divulgado no dia 18 de julho. Em São Paulo, que possui o maior eleitorado do País, os partidos poderão gastar até R$ 67.276.114,60 na campanha de prefeito em primeiro turno. Em eventual segundo turno, a quantia permitida é de R$ 26.910.445,80. A candidatura de vereador, por sua vez, tem um limite de R$ 4.773.280,39.
Os candidatos também estão proibidos de aparecer em inaugurações de obras públicas e não poderão distribuir camisas e demais brindes para eleitores.
Segundo nova resolução do TSE, é vedada o uso de “deepfake” em propagandas políticas. O termo denomina uma técnica que consiste na criação de conteúdos produzidos com auxílio de IA. O mecanismo funde, combina, substitui ou sobrepõe áudios e imagens para criar arquivos falsos em que pessoas podem ser colocadas em qualquer situação, dizendo frases nunca ditas ou assumindo atitudes jamais tomadas.
No dia das eleições, os eleitores não vão poder fazer manifestações sonoras e portar qualquer objeto que tenha propaganda de candidato, partido, coligação ou federação. O uso de armas no perímetro de 100 metros dos locais de votação também é proibido.
Por parte dos candidatos, é proibido transportar eleitores e pedir votos em zonas de votação. Também é vedado o uso de alto-falantes e amplificadores de som ou a realização de comícios e carreatas. A distribuição dos “santinhos” também configura crime eleitoral. Fonte: https://www.estadao.com.br
Aprendiz de Fidel
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Como franquia da ditadura cubana, chavismo aprendeu a sufocar os que ousam se lhe opor. Com apoio chinês e russo, Maduro parece querer transformar a Venezuela de vez numa nova Cuba
O ditador Nicolás Maduro decidiu dar uma banana para a comunidade internacional e fechar ainda mais seu regime de opressão, que há 11 anos subjuga os venezuelanos de todas as formas pelas quais um povo pode ser subjugado por seu próprio governante. Suas ações nesse sentido são inequívocas desde aquele farsesco ato de “diplomação” encenado no Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um quintal do Palácio de Miraflores, horas após o pleito. Ali se ouviu a coda da ópera-bufa que apresentou Maduro como um legítimo candidato que teria triunfado sobre os adversários dentro das regras do jogo democrático, e não como o tirano sanguinário que ele é.
Maduro parece determinado a transformar a Venezuela em um Estado pária perante a comunidade das nações democráticas, entre as quais o Brasil. E ele só se movimenta com tamanho desassombro, malgrado todas as consequências políticas e econômicas que podem advir de seu novo golpe contra a soberania popular, porque conta com o imprescindível apoio da China e, a reboque, da Rússia, dois países que, como é notório, tratam as liberdades individuais e os direitos fundamentais dos cidadãos como excentricidades ocidentais.
Enquanto Estados Unidos e União Europeia se uniram para manifestar desconfiança em relação às condições da “vitória” de Maduro, China e Rússia foram rápidas na direção diametralmente oposta. Vieram de Pequim e de Moscou as mais importantes entre as escassas manifestações de apoio ao ditador venezuelano nas horas que se seguiram à proclamação do resultado pelo CNE no domingo passado.
A China de Xi Jinping, que conta com o petróleo da Venezuela para sustentar seu crescimento econômico, saudou Maduro e disse estar “disposta a enriquecer a associação estratégica com o país”. Ato seguinte, a Rússia do delinquente Vladimir Putin, outro capacho de Pequim, felicitou o ditador sul-americano e afirmou acreditar que “a associação estratégica” entre Moscou e Caracas se desenvolverá “em todas as áreas” a partir de agora. Engana-se quem pensa que essa coincidência de expressões empregadas foi mera obra do acaso.
Hoje, a Venezuela está para a China e Rússia como Cuba já esteve para a então União Soviética na década de 1960 – um posto avançado a serviço dos interesses chineses e russos contra os interesses americanos na América Latina. Não é força de expressão: é sabido que o regime chavista há tempos é uma franquia da ditadura cubana, que forneceu a Hugo Chávez e a Nicolás Maduro sua eficientíssima tecnologia de repressão a dissidentes, tanto políticos quanto militares. Maduro, devotado aprendiz de Fidel Castro, pretende se aferrar ao poder assim como o longevo ditador cubano.
Eis o teatro geopolítico que tem autorizado Maduro a não só desafiar, como a humilhar os países da América Latina e do Caribe que ousaram desconfiar de sua fajuta vitória ou guardar, no mínimo, um providencial silêncio nesse momento de crise, como fizeram Brasil e Colômbia, em que pese a hora grave impor uma condenação inequívoca da violência em curso no país vizinho.
No caso do Brasil, em particular, Maduro tem sido especialmente agressivo, tanto do ponto de vista retórico como militar. Recorde-se que, há poucos dias, o ditador recomendou que o presidente Lula da Silva tomasse um “chá de camomila” após o brasileiro se dizer “assustado” diante da ameaça feita pelo ditador companheiro de que haveria um “banho de sangue” na Venezuela caso ele não fosse reeleito. Ademais, Maduro segue inabalável em suas agressões contra a soberania da Guiana, mantendo tropas na região de fronteira com o Brasil.
A bem da verdade, Maduro sabe muito bem com quem está lidando ao se portar com esse misto de petulância e desdém pelo governo brasileiro. Fiel à tradição petista de condescendência com o chavismo, Lula afirmou ontem à noite que “nada tem de grave ou de anormal” na suspeitíssima eleição na Venezuela. De fato, sob a sanha persecutória e a sede de poder de Maduro, normal é ver os cadáveres de quem se opõe ao regime estendidos nas ruas, como já se vê. E isso é apenas o começo. Fonte: https://www.estadao.com.br
É assim que funciona uma ditadura
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Oposição jamais teve a chance de derrotar Nicolás Maduro no voto. Do início ao fim, o ditador fraudou o processo eleitoral e intimidou os venezuelanos para se aferrar ainda mais ao poder
Para surpresa de ninguém, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um simulacro de Justiça Eleitoral na Venezuela que há anos se submete às ordens do Palácio de Miraflores, declarou a vitória de Nicolás Maduro na eleição presidencial de domingo passado. Segundo o órgão chavista, o ditador teria recebido 51,2% dos votos válidos, ante 44,2% dados ao oposicionista Edmundo González Urrutia. Qualquer número poderia ter sido chutado, pois a eleição, evidentemente, foi uma fraude.
Maduro não sobreviveria politicamente se fosse exposto ao ar das liberdades individuais e da soberania da vontade popular. Ciente disso, mais uma vez, o caudilho exerceu seu controle total sobre o Estado e suas instituições na Venezuela. Do início ao fim, o processo eleitoral foi conspurcado. Nesse sentido, a oposição jamais teve a chance real, por mínima que fosse, de derrotar Maduro nas urnas. É assim, afinal, que funciona uma ditadura.
O grande mérito de Urrutia e María Corina Machado – hoje a principal líder da oposição ao chavismo, a mulher que teria enfrentado Maduro caso não tivesse sido cassada pelo regime sob a falsa alegação de corrupção – foi ter reafirmado para o povo venezuelano e para o mundo, tal como uma anticandidatura, que a assim chamada “democracia” na Venezuela é uma farsa. “Todas as regras foram violadas”, afirmou Urrutia ainda na noite de domingo. Maduro não demorou para se autoproclamar oficialmente o vencedor, em clara demonstração de desdém com as preocupações da comunidade internacional.
A fim de não correr o menor risco de ser defenestrado do poder pela força das urnas, o que teria acontecido não fosse o recurso à fraude, Maduro cometeu uma pletora de arbitrariedades ao longo dos últimos meses, a começar pela cassação sumária de todas as candidaturas que, em dado momento da campanha eleitoral, cresceram como uma ameaça real a seus interesses.
Diversos oposicionistas foram presos – e os que não foram sofreram a brutal intimidação do regime antes, durante e depois do pleito. No dia da eleição, as temidas Milícias Bolivarianas, conhecidas como “Coletivos”, circularam em suas motos pelas seções eleitorais de Caracas armadas até os dentes, mostrando aos eleitores até onde ia, de fato, sua liberdade de escolha. Cerca de 4,5 milhões de venezuelanos exilados e aptos a votar no exterior foram impedidos por Maduro de exercer seus direitos políticos.
Jamais se tratou de uma eleição justa na Venezuela, em que pese a demonstração de união das forças de oposição ao regime ter representado a melhor chance de derrotar o chavismo nos últimos 25 anos. A rigor, Maduro se proclamou vitorioso em uma eleição na qual foi derrotado.
Não surpreende que o CNE tenha resistido a fornecer as atas de votação das seções eleitorais à oposição e aos escassos observadores internacionais presentes na Venezuela. Esses documentos, que poderiam atestar que Urrutia foi o grande vencedor das urnas, talvez jamais vejam a luz do dia.
Por meio de nota, o governo brasileiro saudou o “caráter pacífico da jornada eleitoral” na Venezuela, de resto um teatro para iludir incautos de que a reeleição de Maduro teria transcorrido dentro da mais absoluta normalidade democrática. Mas ao menos cobrou a publicação das atas de votação, gesto classificado pelo Itamaraty como “um passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito”. Já é alguma coisa, sobretudo em se tratando do governo de Lula da Silva, aquele para quem há “excesso de democracia” na Venezuela chavista. Fonte: https://www.estadao.com.br
Venezuela expulsa diplomatas de sete países latino-americanos após eleição
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Decisão afeta representantes de governos que questionaram resultado oficial do pleito, vencido por Nicolás Maduro
O chanceler da Venezuela, Yvan Gil. - Marcos Salgado - 29.jun.24/Xinhua
Brasília
O chanceler da Venezuela, Yván Gil, publicou um comunicado nesta segunda-feira (29) no qual determina que os governos de Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai devem retirar seus representantes diplomáticos do território de seu país.
No texto, Gil afirma que esses governos estão subordinados aos Estados Unidos e realizaram ações e declarações de ingerência em assuntos internos de Caracas.
Na mesma nota, a chancelaria venezuelana afirma que o regime do ditador Nicolás Maduro vai retirar todos os seus diplomatas das respectivas missões em que atuam nesses países.
"A República Bolivariana da Venezuela expressa seu mais firme repúdio diante das ações de ingerência e declarações de um grupo de governos de direita, subordinados a Washington e comprometidos abertamente com os mais sórdidos postulados ideológicos do fascismo internacional, tratando de reeditar o fracassado e derrotado Grupo de Lima, que pretendem desconhecer os resultados eleitorais", lê-se no comunicado. O Grupo de Lima foi formado por países que se uniram para pressionar o regime de Nicolás Maduro.
"O governo bolivariano enfrentará todas as ações que atentem contra o clima de paz e a convivência que exigiram tantos esforços do povo venezuelano, razão pela qual somos contrários a todos os pronunciamentos de ingerência e de assédio com os quais, de forma reiterada, tentam desconhecer a vontade do povo venezuelano."
Os países citados por Gil são críticos a Maduro e questionaram os resultados oficiais divulgados pelo CNE (Conselho Nacional Eleitoral). Javier Milei, presidente da Argentina, chamou Maduro de ditador e afirmou que a oposição teve uma vitória acachapante. Já Luis Lacalle Pou, líder do Uruguai, afirmou que o processo eleitoral venezuelano é alvo de manipulação.
Parte desses governos articulou ainda uma reunião na OEA (Organização dos Estados Americanos), convocada para esta quarta-feira (31), para discutir o pleito na Venezuela, que eles descrevem como um motivo de profunda preocupação.
A articulação na OEA, liderada pelo Equador, visa a uma declaração conjunta dos governos de Paraguai, Argentina, Costa Rica, Guatemala, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai. Numa mensagem publicada nas redes sociais, esses governos afirmaram estar profundamente preocupados e exigiram a revisão completa dos resultados na Venezuela com a presença de observadores eleitorais independentes.
Na madrugada desta segunda, o CNE —controlado pelo chavismo— anunciou que o ditador Nicolás Maduro havia vencido as eleições de domingo. A divulgação foi rapidamente contestada pela oposição e por um grupo de líderes regionais.
Horas depois, Maduro foi proclamado presidente eleito para um terceiro mandato pelo CNE. "É irreversível", disse o líder do regime em Caracas.
O governo Lula (PT), que tem laços históricos com o chavismo, defendeu que o CNE divulgue as informações das mesas de votação. Em uma nota, o Itamaraty não parabenizou Maduro e pediu a publicação de "dados desagregados por mesa de votação".
Ainda de acordo com o Itamaraty, tal medida representaria um "passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito". No mesmo comunicado, a pasta saudou o "caráter pacífico da jornada eleitoral" e disse acompanhar com atenção o processo de apuração.
"[O governo] reafirma ainda o princípio fundamental da soberania popular, a ser observado por meio da verificação imparcial dos resultados", diz.
Enviado do Planalto para acompanhar a votação, o assessor para assuntos internacionais de Lula, Celso Amorim, esteve nesta manhã em reunião com os observadores eleitorais do Carter Center.
Depois, tinha reunião marcada com o painel de especialistas ligados à ONU (Organização das Nações Unidas). Os especialistas da ONU não têm mandato para manifestar juízo público sobre a condução das eleições. Eles devem produzir um relatório confidencial sobre aspectos gerais do processo eleitoral.
Amorim disse nesta segunda que nem o regime nem a oposição comprovaram suas afirmações de vitória. "A gente tem que ter uma verdade verificada. É uma norma de desarmamento básica: confie e verifique", disse à Folha. "O resultado só pode ser verificado quando o resultado das várias mesas [de votação] for divulgado. Não basta dar um número geral." Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
#tamojunto Biden
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Quantas vezes a gente insistiu em algo que era uma roubada? Todo mundo avisando e a gente ali, teimando. Desistir teria sido muito melhor
Por Leo Aversa
Domingo de tarde, Biden deitadão naquele sofá bege do Salão Oval. O jornal na barriga, a TV ligada, o telefone — vermelho — tocando sem parar. Do outro lado, assessores querendo discutir a guerra da Ucrânia, a questão dos imigrantes, o apagão cibernético na semana passada. Só treta, confusão e briga de cachorro grande. Ele ali, de saco cheio, olhar no teto, lembrando da torta de maçã que a avó fazia, sonhando com as férias na Disney na companhia dos netos. Enquanto espera a música do Fantástico para ir dormir, se pergunta: por que não consigo ficar aqui tranquilo, de boas? De supetão — não tão supetão assim, que a lombar não aguenta mais —, ele levanta e solta o grito primal do homem contemporâneo: “Que se foda, tô fora!”
Não quero tirar o emprego de escritores de autoajuda, nem desapontar admiradores de influencers existenciais e seguidores de coachs metafísicos, mas a persistência é uma qualidade sobrevalorizada. A toda hora, em todo lugar, tem um profeta do óbvio mandando a gente persistir, insistir, seguir em frente a qualquer preço. É bom, até faz bem, mas não vamos exagerar: desistir — na hora certa — é a grande arte.
Um monte de gente persiste, persiste, persiste e mesmo assim não chega onde queria. Pelo contrário, acaba pior que começou. Por teimosia, não percebe que até estava avançando, mas na direção contrária. Tipo ter que ir para Niterói, pegar a Brasil para o outro lado e acabar em Bangu. Acontece muito.
São pessoas a quem sobra vontade e determinação, mas falta GPS. Também existem os que insistem no que nunca vai dar certo e os que persistem em algo que, sim, funciona, mas não para eles.
Não quero fazer uma ode ao pessimismo, mas uma dose de régua e compasso e uma pitada de “melhor não” podem nos poupar de grandes decepções.
Dizem que o sucesso é 99% de suor e 1% de talento. Mais certo, impossível. Mas vamos ser sinceros, leitor: existem pessoas — maravilhosas — que nem esse 1% têm. Aí, complica. O sonho de uma jornada heroica rumo ao topo da montanha vira um patético tombo na escada na direção do porão. Não era melhor ter largado o osso lá no começo?
Nem deveria falar sobre a importância da desistência na vida afetiva. É até covardia. Construir uma relação, ir colocando tijolinho em cima de tijolinho, é algo lindo, deve ser um objetivo tão desejado como celebrado. Mas... Vamos ser sinceros: é uma em cem, né? Sobre as outras 99, meu caro leitor, descobrimos depois — estropiados — que era melhor ter pulado fora antes. Quantas vezes a gente insistiu em algo que era obviamente uma roubada? Todo mundo avisando e a gente ali, teimando. Desistir teria sido muito melhor do que descer a ladeira sem freio e bater de frente com um caminhão.
Nem acho que Biden estava tão mal assim, entrar num debate com um lunático mitômano é uma luta inglória para qualquer um, você tem que contestar um sujeito que acredita mesmo nas mentiras que diz. Igual a jogar xadrez com pombo. Vale a pena? Para quem tem tempo, disposição e um futuro pela frente, sim.
Só que tem uma hora na vida em que você percebe que o tempo é curto e que o que você quer mesmo é ler o jornal de domingo tranquilo, de boas, deitado no sofá.
Eles que lutem. Fonte: https://oglobo.globo.com
Cacá Diegues: e Deus com isso?
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Donald Trump — Foto: SCOTT OLSON / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP
Trump atribuiu ao todo-poderoso o milagre de ter sido salvo do atentado. Mas deus deve ter outras coisas para fazer
Por Cacá Diegues
Desde sábado da semana passada só se fala no atentado sofrido por Donald Trump. Nada pode justificar tamanha violência contra uma pessoa. Não se trata disso. Mas nós, por aqui, vimos algo parecido nas eleições de 2018. Com uma grande diferença. Quando Jair levou uma facada na campanha ainda tínhamos uma total indefinição do resultado das nossas eleições. A vítima, então, pode contar com um fato que justificaria sua ausência em todo e qualquer debate em que poderiam ser discutidos os planos de cada um para o nosso país: poderia ficar em casa, como ficou utilizando-se unicamente das mídias sociais, onde falava sozinho.
Foi justamente em um debate que a fragilidade da saúde de Joe Biden ficou escancarada “via satélite” para o mundo todo. Trump já aparecia com vantagem sobre Biden e depois disso disparou na preferência dos eleitores americanos, enquanto o presidente dividiu até mesmo seus companheiros do Partido Democrata. Quer dizer, Trump sofreu um atentado a sua vida mesmo já estando à frente da corrida presidencial, diferentemente do que ocorreu por aqui.
Mas um, como o outro, atribuíram a Deus o milagre de terem saído salvos dos respectivos atentados. Quando pessoas que almejam o poder atribuem a Ele uma intervenção por estarem vivos, temos que ficar atentos. Se o Todo-Poderoso os unge com tamanho privilégio, quem somos nós para discutir com Ele? E como Deus pode estar tão atento com homens tão poderosos e, ao mesmo tempo, estar tão distraído com as vítimas de balas perdidas diárias que testemunhamos em nossas favelas, ou com os absurdos que vemos acontecer seja na Ucrânia, seja em Gaza, ou em quaisquer outras barbaridades que os homens cometem contra outros homens? Deus não tem a nada a ver com isso. Se Ele existe mesmo deve ter outras coisas para fazer.
Espero que os Estados Unidos, pelo seu inegável protagonismo, achem um caminho para evitar que o nosso planeta se afunde ainda mais nessa rota suicida que alguns tentam nos impor. O mundo precisa mesmo de mais fraternidade, mais cordialidade, mais solidariedade. Menos muros, menos preconceitos, menos ódio com o diferente de nós. O entendimento de que ou daremos certo juntos ou não teremos saída. E aí, Deus, pode sim resolver mandar um meteoro para acabar com tudo mesmo para começar de novo porque não demos certo. Melhor resolver aqui mesmo, entre nós, humanos. Fonte: https://oglobo.globo.com
Entropia americana
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Atentado contra Trump representa uma dramática escalada da violência política que tem marcado os EUA desde que o ex-presidente incitou a invasão do Capitólio no 6 de Janeiro
O terrível atentado contra a vida de Donald Trump, ocorrido no sábado passado durante um comício do republicano na cidade de Butler, na Pensilvânia, representa uma dramática escalada da violência política que tem marcado os EUA nos últimos anos. Nesse sentido, o crime de que Trump foi vítima há de ser vigorosamente condenado. Contudo, não se pode dizer que era imprevisível em um contexto no qual o recurso à força das armas tem sido estimulado pelo próprio ex-presidente como meio de afirmação política desde o fatídico dia 6 de janeiro de 2021.
Sim, Trump sofreu uma tentativa de homicídio. Por milagre não morreu, como atestaram as imagens que correram o mundo. Porém, não se pode perder de vista, sob o risco de faltar com a verdade histórica, que o ex-presidente é o grande responsável por essa radicalização da política americana desde que chegou à Casa Branca, em 2017. Depois de ter sido derrotado em sua tentativa de reeleição, Trump incitou a invasão do Capitólio por uma horda de apoiadores radicais que, fortemente armados e em seu nome, tentaram subverter o legítimo resultado das urnas em 2020.
Aqueles liberticidas que tomaram de assalto o prédio símbolo da democracia nos EUA sempre foram tratados por Trump como “patriotas”, não como os criminosos que são. E foi a eles que Trump se dirigiu logo após ser atingido, ainda no palanque. “Lutem! Lutem!”, bradou o ex-presidente, de punho cerrado e com sangue correndo pelo rosto. O cálculo político estava feito. A imagem que decerto marcará sua campanha eleitoral daqui para a frente estava registrada – uma declaração de guerra a uma parte do povo americano. E justo no momento em que os EUA clamam por gestos de pacificação de seus líderes.
O impacto dessa primeira reação de Trump não pode ser subestimado, não só nos rumos da campanha eleitoral, ainda desconhecidos, mas sobretudo no convívio social. Quando um líder político popular como ele toma uma violência sofrida como meio para galvanizar e radicalizar sua base, o resultado não há de ser outro senão a erosão da confiança dos cidadãos entre si e destes nas instituições democráticas.
Esse roteiro foi traçado por Trump logo após o tiro que o atingiu de raspão. A utilização daquela violência como sua principal bandeira de campanha a partir de agora – substrato para toda sorte de teorias da conspiração – reflete a disposição do candidato republicano de manipular as emoções do eleitorado para fins políticos. A ela se somarão as reiteradas mentiras que Trump dissemina sobre o processo eleitoral e a imparcialidade do sistema de Justiça dos EUA, um discurso que tem levado muitos americanos a empunhar armas para se contrapor a instituições que acreditam estar corrompidas.
A resposta de Trump ao ataque que ele sofreu não deveria ser a escalada de sua retórica inflamável e divisiva, mas um apelo ao diálogo como forma de resgate da tradição política da maior democracia das Américas. A despeito da violência praticada contra presidentes e candidatos à presidência que, lamentavelmente, marcaram o passado dos EUA, o país só se tornou a potência que é porque, ao longo de quase dois séculos e meio de história, a união dos americanos em torno de objetivos comuns foi muito mais marcante do que suas eventuais divergências.
Ao invés de capitalizar politicamente o atentado, como fez, Trump deveria fazer de seu renascimento uma oportunidade para refletir sobre o impacto de suas ações e palavras sobre o comportamento dos cidadãos que ele pretende liderar mais uma vez. Afinal, um líder genuíno busca a união, não a discórdia. Ademais, a democracia americana, farol para o chamado mundo livre, não guarda espaço para que a violência se torne um método aceitável de participação no processo político.
Mas é ocioso esperar que Trump reavalie um comportamento nefasto que, em última análise, foi exatamente o que lhe garantiu o maior triunfo de sua vida. Resta aos eleitores americanos refletir e evitar que prevaleça a sede de vingança e o atentado se torne o prenúncio de uma tragédia ainda maior. Fonte: https://www.estadao.com.br
A direita democrática precisa negar Bolsonaro
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A direita democrática precisa negar Bolsonaro
Evento da extrema direita no Brasil mostra a força de um movimento que reafirma caráter autoritário ao jurar lealdade absoluta não à lei ou aos valores republicanos, e sim a Bolsonaro
A Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC Brasil), realizada no fim de semana passado em Santa Catarina, exibiu tudo aquilo que se espera de uma versão tropical da cúpula da extrema direita global: ofensas a figuras da esquerda e a jornalistas, denúncias sobre a suposta perseguição judicial enfrentada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e defesa da liberdade de expressão para desacreditar o “sistema”. O mais relevante, contudo, é a confirmação da liderança inconteste de Bolsonaro. Apesar da inelegibilidade, Bolsonaro continua a ser a maior força política e, portanto, o maior cabo eleitoral dos extremistas da direita.
Aos bolsonaristas importa menos a condenação por irregularidades cometidas em 2022 e mais sua capacidade de mobilizar aliados e atrair eleitores. Como Lula da Silva em 2018 – à época preso pela Lava Jato e impedido de concorrer –, chega-se a apostar na candidatura de Bolsonaro já em 2026, ainda que esteja proibido até 2030, como forma de puxar a corda em favor das hostes extremistas. Pelo que se viu na CPAC, essa extrema direita está preparada para fazer barulho, tentar gerar instabilidade institucional ou ganhar as eleições. Ou as três coisas somadas.
Reconhecida a musculatura política do ex-presidente, é o momento de separar o joio do trigo: há Bolsonaro e o bolsonarismo, num lado, e há a direita democrática, no outro. São água e óleo. O bolsonarismo é a mais perfeita tradução de um extremismo destrutivo, só capaz de prosperar num ambiente de conflagração permanente e de negação dos padrões civilizados de convivência entre interesses sociais divergentes. A direita tradicional é democrática, sustenta-se nas ideias liberais e republicanas e sabe respeitar as instituições e as regras da democracia. Os extremistas bolsonaristas só querem delinquir sem serem incomodados. As reais forças de direita, porém, rejeitam o vale-tudo, a intolerância e o golpismo.
Não são apenas nuances, e sim visões radicalmente opostas sobre o exercício da política. Separá-las ajuda cidadãos e eleitores a escapar da armadilha fabricada pela esquerda. Para esta, sobretudo para o lulopetismo, “extrema direita” cumpre hoje o papel que a expressão “neoliberalismo” cumpria anos atrás, isto é, a possibilidade de rotular tudo o que a esquerda considera ruim – da austeridade fiscal à segurança pública, do conservadorismo nos costumes ao populismo de direita. Reconhecer tais diferenças é útil quando se observam Bolsonaro e seu orgulho liberticida, que joga aos tubarões quem ousa ao mesmo tempo reivindicar o apoio dos seus devotos e respeitar instituições e adversários.
Eis aí a enorme missão a ser cumprida por outros nomes da direita brasileira, como os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), e do Paraná, Ratinho Júnior (PSD) – os três principais candidatos a herdar o capital político de Bolsonaro. É esse o desafio especialmente imposto ao governador de São Paulo, o favorito: decidir se deseja apresentar-se como uma liderança da direita – democrática, liberal e republicana, insista-se – ou se quer se juntar aos delinquentes. É um dilema similar ao do Partido Republicano nos Estados Unidos. Em tese, um partido existe para diluir ambições pessoais e valorizar causas. Hoje, os republicanos só têm uma causa: a que Donald Trump definir. O presidente do partido de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, disse o mesmo sobre Bolsonaro e o PL. Nada mais antidemocrático.
Se não quiser ser vista como parte do gangsterismo disfarçado de movimento político chamado “bolsonarismo”, a direita precisa negar Bolsonaro. É uma equação eleitoralmente difícil, mas ou é isto ou então é mergulhar no abismo moral e político que o bolsonarismo representa. Para tanto, a direita democrática pode e deve galvanizar o espírito do antipetismo ou do desencanto de quem está farto dos rumos tomados pelo lulopetismo e sua promessa não cumprida de pacificar o Brasil. Mas, antes de mirar o PT, convém se descontaminar do que há de mais antidemocrático e incivilizado que este país produziu em sua história. Fonte: https://www.estadao.com.br
A lição que Roma antiga poderia dar a Joe Biden
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Todo mundo se agarra como pode a qualquer fiapo de poder que seus dedos consigam alcançar
Economista, mestre em filosofia pela USP.
Foi duro assistir ao debate americano. Primeiro, pelo show de mentiras e demagogia de Trump. Segundo, e mais importante, pela agonia de ver Biden falar, torcendo a cada pergunta para que ele concluísse suas frases ao menos de forma inteligível. Nem sempre conseguiu. Trocava nomes, esquecia palavras, perdia o fio da meada.
Uma pesquisa da CBS News/YouGov publicada no domingo mostra que 72% dos eleitores creem que Biden não tem a saúde mental e cognitiva necessária para servir como presidente. Antes do debate, eram 65%. Os sinais estão claros. Ele perde para Trump em todas as pesquisas. Precisa virar o jogo: aparecer mais, gerar fatos positivos, surpreender o eleitorado. Qual a chance de consegui-lo? Entrevistas e aparições públicas realçam apenas sua fragilidade física e mental.
Biden cumpriu sua missão ao vencer um presidente que ameaçava a democracia em 2020 e ainda entrega números razoáveis. Crescimento médio do PIB de 3,5% ao ano; desemprego de 2024 a 4%. A inflação, alta até 2022, caiu e deve ficar em torno 3% este ano. Ele poderia declarar que cumpriu sua missão e que abrirá espaço para alguém mais jovem e dinâmico. Ao fazê-lo, coroaria sua carreira com um ato final de desprendimento.
No século 5 a.C, Lúcio Quíncio Cincinato, patrício romano já idoso e que levava uma vida modesta, aceitou relutante o cargo de ditador num momento de necessidade nacional. Venceu a guerra que ameaçava a existência de Roma em meros 16 dias e imediatamente abriu mão do poder absoluto e da glória advinda do cargo, voltando à humilde lavoura que cultivava com as próprias mãos. Foi duplamente louvado. Não sabemos se a história real foi assim, mas sabemos que esse era o nível de desprendimento do poder admirado numa República antiga.
Na República atual, todo mundo se agarra como pode a qualquer fiapo de poder que seus dedos consigam alcançar e só solta quando arrancado à força; o país que se dane. Um caso similar foi o da juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg. Já tinha um mandato de décadas com votos importantes para o lado progressista. Com mais de 80 anos, poderia ter se aposentado ainda no governo Obama e permitido que ele escolhesse sua sucessora. Não o fez. Faleceu em 2020, dando a Trump a oportunidade de aumentar a proporção de conservadores na Corte, que está hoje em 6 a 3.
Vozes de democratas na imprensa clamam para que a esposa, a família, os correligionários de Biden o convençam a desistir. Mas a real responsabilidade deveria ser do próprio Biden. Se fosse apenas sua trajetória política que estivesse em jogo, daria para entender o apego à miragem da reeleição. Mas é a própria República e a ordem mundial que ela (mal e mal) sustenta que podem sucumbir, então a recusa em largar o osso ganha ares de um egoísmo doentio.
Doentio e irracional, dado que Biden provavelmente perderá. Além de prejudicar o país, perderá a chance de fechar sua carreira com um ato admirável de magnanimidade para acabar de forma melancólica, derrotado e humilhado, tendo entregue de bandeja a eleição mais crucial da história recente.
Isso importa inclusive para nós, brasileiros, porque a eleição de Trump terá impacto no mundo todo. E também porque, por aqui, presidentes e ex-presidentes têm uma dificuldade quase patológica de deixar o poder e preparar sucessores.
Seja como for, provavelmente já é tarde. Trump seguirá favorito independente de quem se oponha. A opção entre a certeza do fracasso e a possibilidade da virada, no entanto, não devia ser tão difícil. Não dá para esperar de um presidente o desprendimento de um Cincinato; só o bastante para não empurrar o país do precipício. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
O debate político não é refém do fundamentalismo
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O projeto que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio mostrou o descolamento entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa
Por desinformação, preconceito ou má-fé, uma parte considerável do mundo não evangélico observa, com desconfiança e temor, a notável ascensão das igrejas evangélicas brasileiras. Muitos também confundem a população evangélica e seus representantes e líderes religiosos, como se fossem um só corpo e uma só mente – algo monolítico, uma base ao mesmo tempo genérica e uniforme, composta por pastores e parlamentares populares, influentes e barulhentos, e uma população fiel, obediente e facilmente manipulável. O debate sobre o Projeto de Lei (PL) 1904, que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio, demonstrou que não é bem assim: não somente há muito mais diversidade nos grupos evangélicos do que sugere o senso comum, como há um descolamento razoável entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa.
Na semana em que a Frente Parlamentar Evangélica – liderada pelo autor do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), sob a bênção do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) – trabalhava pela urgência da tramitação, nas ruas e nas redes sociais grupos evangélicos se mobilizaram para contê-lo. Sem liderança puxando o trio, mulheres de todos os credos foram às ruas protestar; sem compromisso com a bancada parlamentar, mulheres cristãs de diversas matrizes religiosas lançaram um manifesto e organizaram um ato em Brasília. A confirmação do descolamento veio com os números trazidos pelo Datafolha: 57% dos evangélicos do País são contrários ao PL, número que é ainda maior entre os católicos (68%). Em outras palavras, engana-se quem percebe o perfil religioso e conservador do brasileiro como fundamentalista. Mais: fundamentalistas são minoria – e se concentram nas hostes extremistas no Congresso. Segundo o Datafolha, 66% da população rejeita o projeto.
Ainda que parlamentares prometam voltar à carga quando o clima esfriar, as pressões obrigaram o recuo no que pareceu uma tentativa da extrema direita de emparedar o governo. Triunfaram no início: o presidente Lula da Silva ficou em silêncio até as manifestações de rua e as primeiras pesquisas dando conta da derrota do PL nas redes sociais. Lula chamou de “insanidade” a tentativa do projeto, mas só o fez quando se sentiu à vontade diante do racha aparente no mundo evangélico.
O presidente lidera uma esquerda que costuma enxergar evangélicos como outro Brasil, outra gente. A confusão mais comum associa evangélicos à extrema direita, o que ajuda a ampliar o preconceito contra a população religiosa. Com a emergência do bolsonarismo, pastores influentes passaram a atuar também na produção e reprodução de notícias falsas e pânicos morais, assim como na ameaça direta dentro de espaços religiosos. São dois mundos distintos, mas que se entrelaçam, pois a ação de um contamina e reforça o preconceito sobre o outro.
Ocorre que evangélicos são muito mais do que isso. Pesquisadores do Instituto de Estudos da Religião (Iser) vêm mostrando que suas aspirações passam tanto pelas crenças quanto por elementos reais do cotidiano. Estudos informam que a maioria evangélica é hoje feminina e de baixa renda e tem muita clareza sobre o que melhora ou piora suas condições de vida. “São pessoas que se movem por necessidades práticas e não apenas por fake news que viram trending topics nos grupos de WhatsApp da Igreja”, escreveu a pesquisadora Ana Carolina Evangelista em artigo publicado no UOL.
Dilemas reais das mulheres evangélicas envolvem a família, a segurança e a situação econômica, categorias que estruturam a vida de boa parte dos brasileiros, ultrapassam o moralismo explorado pela extrema direita e confundem a cabeça do lulopetismo. A resistência ao PL é parte desses dilemas. Se moral e ideologicamente são contra a legalização do aborto, veem o estupro como crime inaceitável, portanto é ultrajante para muitas evangélicas a ideia de que a mulher, já vítima do estuprador, seja condenada à prisão. Esse componente crítico só é impensável para quem enxerga obediência absoluta ao estereótipo do crente fundamentalista. E para lideranças parlamentares que, cada vez mais fisiológicas, olham para cima – neste caso, não para o Céu, e sim para os seus projetos de poder. Fonte: https://www.estadao.com.br
A política da aversão
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Pesquisa revela que o ódio se tornou um dos grandes motivadores para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias. Nessa ambição de eliminar o contraditório, todos perecerão
É lamentável constatar que o ódio tenha se tornado uma grande motivação para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias no País. Uma pesquisa conduzida por cientistas políticos da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade de São Paulo (USP), publicada pelo Estadão no dia 1.º passado, revelou que, entre os filiados a partidos políticos no Brasil, cerca de 70%, nada menos, consideram que a aversão e o ódio a seus adversários políticos, em algum grau, foram fatores relevantes para sua decisão de ingressar numa determinada legenda.
O resultado da pesquisa – de abrangência nacional, realizada com filiados e dirigentes de 32 partidos nos anos de 2020, 2022 e 2023 – partiu de uma arguta curiosidade de seus autores. Eles pretendiam compreender por que, afinal, o número de filiações vem crescendo no País à medida que também cresce um sentimento de descrença em relação não só à política, mas aos políticos em geral. “Descobrimos que o ódio e a rejeição do adversário motivam não só a filiação, mas também são fatores que tornam os filiados ainda mais engajados”, disse ao Estadão o pesquisador Pedro Paulo de Assis, da USP.
Do total de respondentes, 36% disseram que se tornam “altamente engajados” nas atividades de seu partido quando se veem diante da possibilidade de vitória da legenda que mais rejeitam e odeiam. Os pesquisadores classificaram esse comportamento como “engajamento pelo ódio”, que vem à frente de comportamentos políticos tidos como tradicionais, como, por exemplo, a ação motivada pelo desejo de influenciar o processo decisório interno das legendas (32%). Ao menos por enquanto, o “engajamento pelo ódio” só fica atrás do empenho dos filiados pelo triunfo eleitoral de suas próprias siglas (41%).
Isso só acontece porque, há um bom tempo, se estimula no Brasil, mas não só, uma nefasta transfiguração da política. De meio civilizado para a concertação de interesses sociais divergentes, a política passou a ser tratada como uma guerra existencial. Ou, dito de outra forma, um processo de vinculação emocional entre membros de uma tribo, para não dizer seita, que passam a enxergar sua sobrevivência – seja no debate público, seja nas vias de acesso às esferas institucionais de poder – a partir da eliminação política e moral, quando não física, de seus adversários.
Nessa disputa de vida ou morte, os que não comungam das mesmas ideias, aspirações e valores são tratados como inimigos a serem abatidos num campo de batalha. Hoje, felizmente, essa guerra campal é travada no campo simbólico. Sabe-se lá até quando. Ora, isso não é outra coisa senão o fim da política – e, consequentemente, da própria democracia representativa tal como a conhecemos, como o pacto social materializado na Constituição de 1988. Não há, evidentemente, como isso possa dar em bom lugar.
Qualquer sociedade civilizada abraça e encoraja as divergências entre os cidadãos, não as repele, muito menos as desestimula. A política, nesse sentido, exerce um papel central na vida nacional, pois, malgrado a miríade de dissensões que há entre eles, os indivíduos se reconhecem como concidadãos e, nessa condição, buscam alcançar objetivos minimamente comuns. Os partidos sempre foram vistos como os principais organizadores desses interesses em negociação. Agora, ao que parece, tornaram-se grandes usinas de um ódio que, no limite, pode levar à sua extinção como um dos principais mediadores do debate público.
Eis uma grande armadilha. No curtíssimo prazo, essa ação política movida a bile pode até favorecer as legendas por fomentar a filiação partidária, gerar engajamento e, consequentemente, contribuir para um eventual aumento de bancadas federais – o que está diretamente relacionado com o tamanho do quinhão do Orçamento público que os partidos vão receber. Adiante, porém, esse estado de guerra existencial não tem outro destino a não ser o ocaso da política desenvolvida e, a reboque, do valor dos próprios partidos. Fonte: https://www.estadao.com.br
Anistia inaceitável
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Anistia inaceitável
No cenário de desordem institucional, está em curso um plano para reabilitar Bolsonaro com vista a 2026. Ou as instituições democráticas recobram o prumo, ou o golpismo prospera
Está em curso um plano de reabilitação de Jair Bolsonaro para permitir que ele concorra à Presidência em 2026. Fossem estes tempos normais, esse cenário seria um devaneio dos apoiadores mais fervorosos do ex-presidente. Mas estes não são tempos normais, não do ponto de vista institucional. E o bolsonarismo, como se sabe, vampiriza sua força da atimia das instituições – seja pela tibieza, falta de espírito público ou desvios de comportamento de alguns de seus membros.
O Congresso só faz aumentar seu poder, pela via do controle do Orçamento, sem a devida responsabilização pelas escolhas que faz. Some-se a isso a fragmentação partidária e estão dados os reveses inauditos ao chamado presidencialismo de coalizão. O presidente Lula da Silva, por sua vez, parece alheio à realidade do País. Governa como se tivesse sido eleito por folgada maioria de ditos “progressistas”, fechado que está em seus interesses mais imediatos e na fracassada agenda do PT. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) tem agido com denodo para macular sua imagem perante a opinião pública – e não só entre bolsonaristas. Não raro, ministros têm se comportado como se fossem maiores do que a própria Corte, minando a legitimidade que não apenas é o esteio do Poder Judiciário, mas do próprio Estado Democrático de Direito.
É nesse contexto de desordem institucional que se tem tratado, à luz do dia, de algumas medidas que têm por fim anistiar o maior vândalo político que esta República democrática conheceu nos últimos 35 anos, o “mito” inspirador de uma tentativa de golpe de Estado. Nada menos. Das duas, uma: ou as instituições democráticas recobram o prumo ou o golpismo prospera.
Há poucos dias, a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, Caroline de Toni (PL-SC), designou o colega Rodrigo Valadares (União-SE) como relator de um projeto de lei que concede anistia aos golpistas do 8 de Janeiro. Como ambos são bolsonaristas de quatro costados, não é difícil imaginar como serão os trabalhos na CCJ e o relatório final. É igualmente cristalino o fato de que ninguém se importa com a desdita dos liberticidas que tomaram Brasília de assalto naquele dia infame. Fossem mais honestos os patrocinadores desse descabido projeto de lei, dar-lhe-iam o nome de “emenda Bolsonaro”, pois é de livrá-lo da Justiça e reabilitá-lo eleitoralmente que se trata.
Em outra manobra claramente oportunista, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), resolveu desengavetar um projeto de lei de 2016 que proíbe a homologação judicial de acordos de colaboração premiada firmados por colaboradores presos, além de punir quem divulgar o conteúdo das delações – uma óbvia criminalização do jornalismo profissional. São dois os objetivos de Lira com essa manobra. Primeiro, cortejar o PL, partido de Bolsonaro. Com uma bancada de 95 deputados, a sigla é crucial para a pretensão do presidente da Casa de fazer seu sucessor. No limite, o projeto – de autoria do ex-deputado petista Wadih Damous (RJ) – pode anular a delação do tenente-coronel Mauro César Cid contra o ex-chefe. Além disso, Lira sacou de seu baú de maldades mais um instrumento para fustigar Lula, que agora não tem mais qualquer interesse nesse projeto, a fim de manter o governo em rédea curta. Não à toa, Bolsonaro declarou publicamente que apoiará “o nome do Lira” à presidência da Câmara em fevereiro de 2025.
A anistia se tornou a maior obsessão de Bolsonaro depois das fracassadas tentativas, legais e ilegais, de se manter no poder. Esse arranjo intolerável, entretanto, interessa apenas e tão somente ao ex-presidente e a seu grupo político, em particular sua família.
Não é do interesse nacional perdoar os golpistas – nenhum deles. É absolutamente inaceitável tolerar qualquer indulgência com intolerantes que tentaram cassar as liberdades democráticas neste país. A punição exemplar de todos os golpistas é a melhor defesa da democracia, se não a única, contra os seus inimigos. Para estes, é preciso deixar claro que a conta de sua ousadia é pesada. Só isso poderá evitar que a barbaridade se repita. Fonte: https://www.estadao.com.br
'PEC das Praias' pode beneficiar senadores que têm imóveis em área de marinha
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Nove dos 81 parlamentares têm propriedade nessas condições, mas maioria nega desconforto em votar a proposta
Plenário do Senado Federal - Pedro Ladeira-16.abr.2024/Folhapress
Lucas Marchesini, Idiana Tomazelli, Ranier Bragon
BRASÍLIA
Nove dos 81 senadores que vão deliberar sobre a chamada "PEC das Praias" têm em seu nome propriedades que ficam em área de marinha, de acordo com dados públicos da Secretaria do Patrimônio da União (que faz parte do Ministério da Gestão e Inovação) e da Justiça Eleitoral.
São eles Alessandro Vieira (MDB-SE), Ciro Nogueira (PP-PI), Esperidião Amin (PP-SC), Fernando Dueire (MDB-PE), Jader Barbalho (MDB-PA), Laércio Oliveira (PP-SE), Marcos do Val (Podemos-ES), Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) e Renan Calheiros (MDB-AL).
Procurados pela Folha, cinco disseram não ver impedimento em analisar a proposta e os outros quatro não se manifestaram.
O levantamento levou em conta imóveis no nome do parlamentar ou de empresas da sua propriedade.
Os terrenos de marinha são áreas à beira-mar que ocupam uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofrem a influência das marés. Elas foram medidas a partir da posição da maré cheia do ano de 1831. Ou seja, em cidades litorâneas, são áreas que ficam atrás da faixa de areia.
A propriedade desses imóveis é compartilhada com a União, que cobra uma taxa de foro pelo uso e ocupação do terreno. Em caso de transferência para outra pessoa, é preciso pagar outra taxa, o laudêmio.
A PEC facilita a transferência dos bens em áreas urbanas da União para estados e municípios ou para proprietários privados, em texto criticado por técnicos e especialistas por criar insegurança jurídica, permitir a privatização de áreas do litoral brasileiro e abrir brechas para grilagem.
A medida é considerada por técnicos como de alto risco. O texto prevê a cessão onerosa das áreas, ou seja, os ocupantes serão obrigados a comprar a parcela da União no terreno de marinha.
Na prática, porém, a PEC não prevê sanções ou condutas em caso de não pagamento —em outras palavras, o governo pode levar um calote sem ter meios para cobrar os valores devidos.
Já em 2022, técnicos viam potencial de a medida se transformar na maior transferência de patrimônio público para o setor privado na história do país.
O texto tem como relator o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que encampou a defesa da proposta e emitiu parecer favorável ao texto aprovado pela Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022.
Seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi em seu governo um entusiasta de mudanças em regras para criar uma espécie de "Cancún brasileira" na região de Angra dos Reis (RJ) —região onde se situam diversas áreas de marinha potencialmente alcançadas pela PEC.
Entre os possíveis beneficiários diretos da PEC, os senadores Esperidião Amin e Oriovisto Guimarães se declararam favoráveis ao texto. Amin diz que é preciso, porém, haver aperfeiçoamento.
Oriovisto é o responsável por um imóvel de 2.982,89 m² de área total em Guaratuba, no Paraná, segundo os dados da Secretaria de Patrimônio da União. Procurado, ele disse que se trata de uma casa de veraneio e que a PEC não terá "reflexo significativo" em seu caso.
"Hoje pago uma taxa anual para a SPU e pago IPTU par a a prefeitura. Se a PEC passar, vou examinar se vale a pena pagar um valor para a SPU para me livrar da taxa anual, ou se deixo como está hoje. São milhares de casas na mesma situação. Importante salientar que, em qualquer hipótese, não haverá alteração no uso do terreno", disse.
Marcos do Val e Laércio Oliveira não manifestaram qual posição vão adotar na análise do tema, embora o segundo tenha votado a favor da proposta quando ela foi aprovada pela Câmara e ele era deputado.
"Vou acompanhar novas discussões que tragam segurança à população, porque a PEC está gerando interpretações equivocadas e imprecisas", Disse Laércio.
Já Fernando Dueire se disse contrário à medida.
Todos os parlamentares que se pronunciaram negam desconforto em votar uma matéria que pode beneficiá-los.
Por meio de sua assessoria, Marcos do Val disse que se sentir impedido de analisar e votar a proposta por ter um imóvel em área de marinha "seria o mesmo que um senador da área do esporte se considerar impedido de analisar uma questão nesse assunto". Seu imóvel fica em Vitória (ES).
Não responderam às perguntas da Folha Renan Calheiros, Jader Barbalho, Ciro Nogueira e Alessandro Vieira.
Para o senador Flávio Bolsonaro, o projeto dará mais segurança jurídica aos atuais ocupantes das áreas, aumentará a arrecadação federal e atenderá necessidades de municípios com grandes áreas litorâneas.
Na época da aprovação do texto da Câmara, em fevereiro de 2022 —durante a gestão Bolsonaro, portanto—, a SPU já alertava para os efeitos deletérios da PEC sobre o patrimônio da União, uma vez que o valor das áreas envolvidas poderia chegar a R$ 1 trilhão.
O prejuízo, porém, pode ser ainda maior. A partir de dados do Censo Demográfico de 2022, a Secretaria do Patrimônio da União estima que 2,9 milhões de imóveis estejam em terrenos de marinha, mas apenas 565,3 mil deles estão cadastrados.
Os beneficiários tendem a ser pessoas de alta renda, que ocupam terrenos à beira-mar.
Ambientalistas apontam riscos para a diversidade ecológica, caso prospere a cessão onerosa dessas áreas. O governo federal ainda aponta que a demarcação e administração desses terrenos são fundamentais para garantir a gestão adequada dos bens da União.
O governo federal afirma que o Brasil tem cerca de 48 mil quilômetros lineares em terrenos de marinha, considerando reentrâncias em estados como Pará e Maranhão. Deste total, aproximadamente 15 mil quilômetros lineares estão demarcados. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
Falar em anistia é estender tapete vermelho para golpistas terminarem o serviço
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Ideia de passar borracha na conspiração de Bolsonaro vaga pelo Congresso com simpatia do centrão
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).
BRASÍLIA
Foi uma ação entre amigos. A presidente da comissão mais importante da Câmara procurou Jair Bolsonaro para discutir um projeto de anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023. Caroline de Toni (PL) escolheu um aliado do ex-presidente como relator e prometeu incluir a proposta em pauta.
Até as paredes do Congresso sabem que a ideia de anistiar os presos de 8 de janeiro seria a inauguração de uma farra que incluiria o próprio Bolsonaro. A presidente da CCJ tentou disfarçar e disse que o ex-presidente não pediu para ser incluído na proposta. "Olha a altivez do nosso presidente Bolsonaro em não visar o seu próprio interesse", exagerou.
O plano de livrar o ex-presidente da prisão e talvez anular sua inelegibilidade é uma trama conduzida à luz do dia. A ideia é começar pelos "injustiçados do dia 8 de janeiro" para fingir que Bolsonaro nunca preparou um golpe de Estado, nunca pediu ajuda de militares de alta patente e nunca recebeu apoio de parlamentares que, hoje, tentam blindá-lo.
A pressa e a criatividade desses agentes sugerem que o ex-presidente não está disposto a esperar um julgamento. Em outra frente, a Câmara pôs em pauta uma proposta que invalida delações feitas por réus presos. Não por acaso, a PF está prestes a indiciar Bolsonaro em inquéritos turbinados por depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid.
A ideia de passar uma borracha nos crimes do ex-presidente só vaga pelos corredores do Congresso porque tem a simpatia do centrão —numa mistura de corporativismo e gratidão pelas benesses extraídas do governo passado. Algumas propostas têm apoio de cardeais de partidos da base de Lula e ressoam na Esplanada dos Ministérios.
O argumento mais vendido nessa feira é uma necessidade de pacificação do país. Como não se pode atribuir aos parlamentares nenhuma ingenuidade, o mais provável é que tenham sido tomados pelo cinismo. Falar em anistia é estender um tapete vermelho para que os golpistas voltem e terminem o serviço. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
O espírito da PM de Tarcísio
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Ao submeter a segurança da população à ideia de que policiais não devem ser ‘vigiados’, governador ignora um princípio básico da cidadania e flerta com a banda truculenta da força estatal
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) não poderia ter deixado mais claro que sua antipatia pela instalação de câmeras no fardamento da Polícia Militar (PM) de São Paulo parte de uma incompreensão primordial dessa bem-sucedida política de segurança. Na quarta-feira passada, durante o ato de assinatura do contrato do Trem Intercidades, em Campinas, Tarcísio afirmou que quer “uma população segura, e não um policial vigiado”, como se estivesse tratando de noções antitéticas. Na verdade, eis o erro fundamental, uma coisa e outra são conexas.
Mais bem dito: para o governador do Estado, como pode ser facilmente depreendido de sua fala cristalina, tão mais seguros estarão os cidadãos paulistas quanto menos houver fiscalização da atividade policial. Ora, o olhar vigilante da sociedade sobre todo e qualquer servidor investido do múnus público é um princípio básico da cidadania. É desse tipo de vigilância, afinal, que se está tratando, e não de um escrutínio da força estatal por quem não tem legitimidade para exercê-lo – como os criminosos, por óbvio.
Ademais, a devida fiscalização dos agentes treinados e armados pelo Estado para exercer o monopólio da violência em seu nome, seja por meio das corregedorias das corporações, seja pelo Ministério Público e, por fim, pelo Poder Judiciário, é um atributo comezinho de qualquer governo inspirado por princípios democráticos e orientado genuinamente por valores universais, como o respeito aos direitos humanos.
A violência praticada por policiais no exercício de suas atribuições é um meio legítimo de imposição da ordem pública desde que circunscrita às balizas das leis e da Constituição. Nesse sentido, as câmeras corporais, como já está sobejamente demonstrado, não apenas protegem os cidadãos – inclusive os criminosos – do emprego de força abusiva por agentes do Estado, como serve de robusto meio de prova para proteção jurídica dos próprios policiais.
Portanto, ao submeter a segurança da população paulista à ideia segundo a qual os policiais não devem ser “vigiados”, Tarcísio ignora um princípio elementar da cidadania e, como se isso não bastasse, ainda flerta com a banda truculenta das forças sob seu comando. Como parece razoável supor para qualquer cidadão sensato, só quem tem a ganhar com o fim do programa de câmeras na PM ou com o enfraquecimento dessa política pública de resultados comprovadamente satisfatórios são os maus policiais, que preferem operar nas sombras, ao abrigo de qualquer investigação de suas ações em serviço.
Como é notório, desde o início do governo de Tarcísio de Freitas houve uma perceptível deterioração do espírito, digamos assim, orientador da PM. Por muitos anos conhecida como a mais bem preparada e equipada força policial do País, contribuindo, ao lado da Polícia Civil, para a redução progressiva dos indicadores de violência no Estado, a PM se notabilizou nos últimos dois anos por uma inflexão, vale dizer, pelo aumento das mortes causadas por intervenção policial e da truculência de suas intervenções.
Aí estão, entre outros exemplos estarrecedores, os casos de repressão violenta aos protestos de estudantes na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – contra a aprovação do projeto de lei que instituiu as escolas cívico-militares – e na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, durante a posse do novo procurador-geral de Justiça do Estado. Um policial chegou a rir enquanto batia nos jovens. São práticas inaceitáveis para um governo que se diz democrático.
A seguir por esse mau caminho, Tarcísio levará a população a sentir medo sempre que vir uma patrulha policial. O combate ao crime não implica, necessariamente, força bruta, por mais que isso excite eleitores explorados em seu justo sentimento de impotência diante de casos de violência. O bom combate deriva do aprimoramento técnico contínuo das polícias, da difusão de noções de cidadania, da repressão aos maus policiais e da valorização dos que atuam dentro da lei. Não é pedir muito. Fonte: https://www.estadao.com.br
Diretas Já: lembrar para avançar
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Recuperar a memória pode promover reencontro do Brasil com a democracia
No maior comício das Diretas Já, mais de 1 milhão de pessoas se reuniram no Vale do Anhangabaú em 16 de abril de 1984 - Renato dos Anjos/Folhapress - Folhapress
Patricia Vanzolini e Leonardo Sica
Respectivamente, presidente e vice-presidente da OAB-SP
Abril de 1984 ficou marcado pelas grandes manifestações políticas de rua. No dia 10, milhares de pessoas ocuparam a Candelária, no Rio de Janeiro, com a mensagem "Eu quero votar para presidente". Há exatos 40 anos, no dia 16, em São Paulo, ocorreu o histórico comício do Vale do Anhangabaú, ato final das Diretas Já, movimento cívico que mudou o Brasil.
A emenda do voto direto foi rejeitada pelo Congresso Nacional, dias depois, mas a mobilização teve resultados expressivos: demarcou o fim da ditadura e abriu portas para a Constituição de 1988 e para as eleições diretas em 1989. Foi o primeiro grande encontro da nossa República com a democracia.
O impacto do movimento foi resultado de uma firme estratégia de articulação e coesão da sociedade civil, reunida sob o Comitê Suprapartidário, formado por partidos políticos, centrais sindicais, entidades, artistas, estudantes etc. Por escolha de todos esses atores, o comitê foi presidido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), comandada pelo saudoso Mário Sérgio Duarte Garcia. Numa sociedade dividida, desconfiada e traumatizada pelo regime autoritário, era necessária uma voz imparcial, apartidária e de moderação para coordenar as Diretas Já. A OAB foi, naquela quadra da vida nacional, o centro de entendimento que o país necessitava.
A pressão pelo voto direto se desdobrou no pacto político que firmou o Estado democrático de Direito como nosso modo de vida nas décadas seguintes. Agora, 40 anos depois, nos deparamos com dúvidas quanto ao futuro da democracia representativa. Arroubos extremistas desafiam democracias mundo afora. Autocratas conseguem se impor com apoio no voto popular e avançam sobre as instituições. Estudiosos vêm dissecando o que chamam de crise ou recessão democrática.
No Brasil, a polarização político-afetiva, o tribalismo que fragmenta a sociedade e campanhas de desinformação confrontam nossa democracia que, embora jovem, resiste com vigor.
Esse cenário impõe que nossas instituições se conectem com as novas demandas que pressionam as democracias: emergência digital, diversidade, desigualdade e ausência de perspectivas de progresso e bem-estar. E, para a OAB, por coerência, é imperioso superar a resistência ao voto direto para escolher seu presidente nacional e, assim, se recolocar como ator relevante do jogo democrático.
Recuperar a memória das Diretas Já é útil para promover um novo encontro do Brasil com a democracia.
O passado é a conexão entre o presente e o futuro e, enquanto não desenvolvemos outras tecnologias, é a melhor chave de leitura para compreender o presente e imaginar o futuro.
Há 40 anos, direita, esquerda, progressistas, conservadores e liberais se uniram sem preocupação com rótulos, sem barreiras ideológicas de uns contra os outros. Não tínhamos uma Constituição fundamentada na cidadania, no poder do povo e no pluralismo político, com garantias como liberdade de expressão, de reunião, de imprensa. Repressão e violência política eram realidades e, mesmo assim, foi possível convergir sob uma agenda coletiva.
Mesmo assim, foi possível.
Se foi naquele cenário, é hora de trocar polarização por aproximação, colocar mais luz naquilo que nos une como cidadãos e reconhecer que, como tais, nossas afinidades importam mais que nossas divergências.
É possível aprimorar nossas instituições na direção de uma democracia universal. Há necessidades consensuais que devem ser priorizadas, e nossa história recente mostra que, quando agimos sob um sinal comum, somos mais felizes nessa empreitada. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
Salvo-conduto para atos antidemocráticos
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Anistiar os crimes do 8 de Janeiro significará esquecê-los. E o Brasil não pode esquecer quem conspirou contra seu regime democrático
Assistimos diariamente aos avanços da investigação sobre o movimento antidemocrático de janeiro de 2023, conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes e declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 572. Constitucionais, portanto, tanto a Portaria 69/2019, do gabinete da presidência do STF, que indicou Moraes como relator do inquérito, quanto o artigo 43 do Regimento Interno do STF. Tais dispositivos serviram de suporte para o chamado inquérito das milícias digitais, destinado a investigar o incitamento ao fechamento da Suprema Corte, as ameaças de morte ou de prisão de seus membros e a apregoada desobediência a decisões judiciais.
Antes de prosseguir, cabe salientar meu entendimento de que o Regimento Interno do STF não é norma apta a estabelecer competência criminal, e é urgente que o Congresso Nacional se esforce para criar emenda constitucional neste sentido, mecanismos de enfrentamento aos ataques à Corte. Também entendo que as penas aplicadas aos baderneiros do 8 de Janeiro são extremamente pesadas, com a inadequada aplicação do concurso de crimes, associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Condutas, aliás, muito graves. Obviamente, numa democracia, devemos respeito às decisões do Judiciário, que devem ser obedecidas, e essas ponderações têm um sentido exclusivamente reflexivo.
Pois bem. Nos últimos meses surge no Congresso Nacional, com alguma força, o Projeto de Lei (PL) n.º 5.064, destinado a anistiar os participantes do 8 de Janeiro, quando os prédios dos Três Poderes em Brasília foram invadidos e depredados. Tal projeto concede perdão aos acusados e condenados pelos crimes definidos nos artigos 359-L e 359-M do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal, em razão das manifestações que aconteceram na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Mas seria possível anistiar alguém por atentados ao Estado Democrático de Direito? A Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu, em alguns julgados, que as autoanistias criminais são nulas (caso Barrios Altos vs Peru, por exemplo), e é impossível que responsáveis pelo cometimento de crimes contra a população civil possam isentar-se a si mesmos, com legislações criadas por órgãos legiferantes sem representatividade e subordinados aos repressores. Porém esse é um quadro diferente. Aqui, pretende-se anistiar um grupo de pessoas, civis e militares, envolvidas com tramoias, conspiração, fechamentos de estradas, acampamentos golpistas, ataques ao sistema eleitoral e destruição de bens públicos. Uma tentativa de ruptura institucional, complexa e com movimentos dos mais diversos. Malsucedida, ainda bem, por motivos que no futuro saberemos.
O projeto é de autoria de representantes legítimos do povo, eleitos, ironicamente, pelas urnas eletrônicas apontadas como fraudulentas pelos grupos que invadiram os prédios em Brasília naquele 8 de janeiro. É um diferencial em relação à anistia do regime militar, sancionada pelo general João Batista Figueiredo em agosto de 1979, que perdoou torturadores e violadores de direitos humanos. O PL em andamento ataca o trânsito em julgado de algumas decisões, proferidas pela última instância do Poder Judiciário, o que já é grave, posto que chancela a afronta ao artigo 2.º da Constituição, núcleo da separação dos Poderes. Mas é difícil de entender a concessão de anistia para quem, justamente, atacou as instituições e o sistema eleitoral, chamando-o de fraudulento sem provas, ocupando um espaço perigoso, extremista e antidemocrático.
Tal perdão representa um grande retrocesso, do ponto de vista do retorno à democracia desde os anos 80, num Brasil repleto de histórias de golpes e autoritarismo. E aos que não foram julgados ainda, financiadores, mandantes e altas autoridades da República, não seria necessário sequer aguardar o julgamento, autêntica anistia preventiva, estimulando os futuros golpistas de plantão, que receberiam simbolicamente um salvo-conduto inapropriado.
Críticas ao sistema judiciário são saudáveis, bem-vindas e necessárias, mas destoam dos pedidos de intervenção militar bradados em frente aos quartéis ou das facadas num quadro de Di Cavalcanti.
Existem caminhos legítimos para criticar o sistema, e não são esses. Se a palavra anistia deriva do latim amnestia, que significa esquecimento, não pode o Brasil esquecer quem conspirou contra seu regime democrático. Já fizemos isso uma vez e, agora, quando se completam 60 anos do último golpe militar, não cabe repetir tal esquecimento. Anistiar estes crimes significará esquecê-los. Sob pena de a ameaça do regime militar, de triste e repugnante lembrança, nunca nos abandonar e de o golpe de 1964 continuar sendo comemorado. Muitas vezes, explicitamente.
*DOUTOR EM DIREITO, PROCURADOR REGIONAL DA REPÚBLICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF), É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS (RS) Fonte: https://www.estadao.com.br
Liberdade intransitiva
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O País precisa conter o golpismo e se faz urgente a regulação das redes, mas nenhuma dessas tarefas pode prescindir da maior proteção contra autoritarismos: a liberdade de expressão
Está na Constituição, em seu artigo 5.º, inciso IV, parágrafo IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Quando a Constituição foi promulgada, em 1988, poucas coisas pareceram mais festejadas do que esse artigo – o mesmo segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e com garantia do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Estabeleceu-se ali também o veto a qualquer forma de censura e se definiram limites a esse direito fundamental: em situações de violação da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem de outras pessoas. Em casos de calúnia, difamação e injúria, foi assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente do abuso da liberdade de expressão. Ou seja, a Constituição define, sem conjunções adversativas, o que é o pilar da democracia e aponta seus limites com precisão.
É espantoso, no entanto, que a limpidez da lei e de seus princípios fundadores pareça hoje insuficiente no Brasil. Mesmo com tamanha clareza, o debate sobre liberdade de expressão foi levado ao paroxismo pela ausência de regulação das plataformas digitais, pela conjugação entre ativismo e arbitrariedade do Supremo Tribunal Federal (STF) e pela instrumentalização muitas vezes criminosas das redes sociais – uma tríade de tensões agravada com as ameaças à democracia que culminaram no vandalismo golpista de 8 de janeiro de 2023, com o ambiente democrático intoxicado pela polarização e com a junção entre as diatribes de liberticidas extremistas e a tirania de quem se enxerga acima da lei e das instituições, como se viu na recente polêmica envolvendo o empresário Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.
O País precisa fortalecer seus diques de contenção de novas aventuras golpistas, e se faz urgente a regulação das redes sociais – uma regulação que seja capaz de construir um ambiente digital mais seguro e confiável, permitir o avanço na proteção dos direitos e da liberdade e responsabilizar as plataformas digitais pelo conteúdo de terceiros que publicam. Nenhuma dessas tarefas inadiáveis, contudo, pode prescindir daquela que é a maior proteção da sociedade contra autoritarismos: a liberdade de expressão. É o que determina a fronteira entre regimes democráticos e autoritários ou o que define o princípio por meio do qual se pode frear o silenciamento de opiniões contrárias, seja pela censura estatal, seja pela “tirania da maioria”, segundo a clássica definição de um dos pais do liberalismo, o britânico John Stuart Mill. Se há ditaduras que toleram a liberdade econômica e governos autocráticos que mantêm o verniz democrático por meio das eleições, nenhum regime antiliberal tolera a liberdade de expressão.
O paradoxo é ver a mãe de todas as liberdades tisnada pela marotagem ideológica de nosso tempo. De um lado, certos personagens que se aliam em sua defesa e parecem, para muitos, o próprio avesso do princípio – de Elon Musk a Jair Bolsonaro, passando por Donald Trump, não são poucos os extremistas que se aproveitam do mundo aparentemente sem lei das plataformas digitais para irresponsavelmente difundir desinformação, arruinar o debate público e mobilizar exércitos de militantes à custa do medo e da deslegitimação das instituições. De outro lado, sob o pretexto de resguardar a democracia, adotam-se o arbítrio, a invenção de tipos penais e a criminalização do próprio exercício das liberdades individuais. O resultado é o mesmo: o enfraquecimento das liberdades e a desmoralização das instituições.
O Brasil pode inspirar-se em caminhos distintos adotados mundo afora para regular as plataformas digitais – uma legislação mais dura como a da União Europeia ou mais liberal como a norte-americana. Mas em nenhum desses modelos o Estado impõe restrições à liberdade de expressão com base no conteúdo, por mais imoral que seja. Salvo raríssimas exceções, também adotam um limite claro: aquilo que a própria Constituição define como crime no mundo real. A lei ainda é o melhor lenitivo contra a incúria ou a má-fé de agentes do poder público, de políticos extremistas ou de lideranças digitais que usam a própria defesa da democracia e da liberdade para subvertê-las. Fonte: https://www.estadao.com.br
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