Entropia americana
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Atentado contra Trump representa uma dramática escalada da violência política que tem marcado os EUA desde que o ex-presidente incitou a invasão do Capitólio no 6 de Janeiro
O terrível atentado contra a vida de Donald Trump, ocorrido no sábado passado durante um comício do republicano na cidade de Butler, na Pensilvânia, representa uma dramática escalada da violência política que tem marcado os EUA nos últimos anos. Nesse sentido, o crime de que Trump foi vítima há de ser vigorosamente condenado. Contudo, não se pode dizer que era imprevisível em um contexto no qual o recurso à força das armas tem sido estimulado pelo próprio ex-presidente como meio de afirmação política desde o fatídico dia 6 de janeiro de 2021.
Sim, Trump sofreu uma tentativa de homicídio. Por milagre não morreu, como atestaram as imagens que correram o mundo. Porém, não se pode perder de vista, sob o risco de faltar com a verdade histórica, que o ex-presidente é o grande responsável por essa radicalização da política americana desde que chegou à Casa Branca, em 2017. Depois de ter sido derrotado em sua tentativa de reeleição, Trump incitou a invasão do Capitólio por uma horda de apoiadores radicais que, fortemente armados e em seu nome, tentaram subverter o legítimo resultado das urnas em 2020.
Aqueles liberticidas que tomaram de assalto o prédio símbolo da democracia nos EUA sempre foram tratados por Trump como “patriotas”, não como os criminosos que são. E foi a eles que Trump se dirigiu logo após ser atingido, ainda no palanque. “Lutem! Lutem!”, bradou o ex-presidente, de punho cerrado e com sangue correndo pelo rosto. O cálculo político estava feito. A imagem que decerto marcará sua campanha eleitoral daqui para a frente estava registrada – uma declaração de guerra a uma parte do povo americano. E justo no momento em que os EUA clamam por gestos de pacificação de seus líderes.
O impacto dessa primeira reação de Trump não pode ser subestimado, não só nos rumos da campanha eleitoral, ainda desconhecidos, mas sobretudo no convívio social. Quando um líder político popular como ele toma uma violência sofrida como meio para galvanizar e radicalizar sua base, o resultado não há de ser outro senão a erosão da confiança dos cidadãos entre si e destes nas instituições democráticas.
Esse roteiro foi traçado por Trump logo após o tiro que o atingiu de raspão. A utilização daquela violência como sua principal bandeira de campanha a partir de agora – substrato para toda sorte de teorias da conspiração – reflete a disposição do candidato republicano de manipular as emoções do eleitorado para fins políticos. A ela se somarão as reiteradas mentiras que Trump dissemina sobre o processo eleitoral e a imparcialidade do sistema de Justiça dos EUA, um discurso que tem levado muitos americanos a empunhar armas para se contrapor a instituições que acreditam estar corrompidas.
A resposta de Trump ao ataque que ele sofreu não deveria ser a escalada de sua retórica inflamável e divisiva, mas um apelo ao diálogo como forma de resgate da tradição política da maior democracia das Américas. A despeito da violência praticada contra presidentes e candidatos à presidência que, lamentavelmente, marcaram o passado dos EUA, o país só se tornou a potência que é porque, ao longo de quase dois séculos e meio de história, a união dos americanos em torno de objetivos comuns foi muito mais marcante do que suas eventuais divergências.
Ao invés de capitalizar politicamente o atentado, como fez, Trump deveria fazer de seu renascimento uma oportunidade para refletir sobre o impacto de suas ações e palavras sobre o comportamento dos cidadãos que ele pretende liderar mais uma vez. Afinal, um líder genuíno busca a união, não a discórdia. Ademais, a democracia americana, farol para o chamado mundo livre, não guarda espaço para que a violência se torne um método aceitável de participação no processo político.
Mas é ocioso esperar que Trump reavalie um comportamento nefasto que, em última análise, foi exatamente o que lhe garantiu o maior triunfo de sua vida. Resta aos eleitores americanos refletir e evitar que prevaleça a sede de vingança e o atentado se torne o prenúncio de uma tragédia ainda maior. Fonte: https://www.estadao.com.br
A direita democrática precisa negar Bolsonaro
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A direita democrática precisa negar Bolsonaro
Evento da extrema direita no Brasil mostra a força de um movimento que reafirma caráter autoritário ao jurar lealdade absoluta não à lei ou aos valores republicanos, e sim a Bolsonaro
A Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC Brasil), realizada no fim de semana passado em Santa Catarina, exibiu tudo aquilo que se espera de uma versão tropical da cúpula da extrema direita global: ofensas a figuras da esquerda e a jornalistas, denúncias sobre a suposta perseguição judicial enfrentada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e defesa da liberdade de expressão para desacreditar o “sistema”. O mais relevante, contudo, é a confirmação da liderança inconteste de Bolsonaro. Apesar da inelegibilidade, Bolsonaro continua a ser a maior força política e, portanto, o maior cabo eleitoral dos extremistas da direita.
Aos bolsonaristas importa menos a condenação por irregularidades cometidas em 2022 e mais sua capacidade de mobilizar aliados e atrair eleitores. Como Lula da Silva em 2018 – à época preso pela Lava Jato e impedido de concorrer –, chega-se a apostar na candidatura de Bolsonaro já em 2026, ainda que esteja proibido até 2030, como forma de puxar a corda em favor das hostes extremistas. Pelo que se viu na CPAC, essa extrema direita está preparada para fazer barulho, tentar gerar instabilidade institucional ou ganhar as eleições. Ou as três coisas somadas.
Reconhecida a musculatura política do ex-presidente, é o momento de separar o joio do trigo: há Bolsonaro e o bolsonarismo, num lado, e há a direita democrática, no outro. São água e óleo. O bolsonarismo é a mais perfeita tradução de um extremismo destrutivo, só capaz de prosperar num ambiente de conflagração permanente e de negação dos padrões civilizados de convivência entre interesses sociais divergentes. A direita tradicional é democrática, sustenta-se nas ideias liberais e republicanas e sabe respeitar as instituições e as regras da democracia. Os extremistas bolsonaristas só querem delinquir sem serem incomodados. As reais forças de direita, porém, rejeitam o vale-tudo, a intolerância e o golpismo.
Não são apenas nuances, e sim visões radicalmente opostas sobre o exercício da política. Separá-las ajuda cidadãos e eleitores a escapar da armadilha fabricada pela esquerda. Para esta, sobretudo para o lulopetismo, “extrema direita” cumpre hoje o papel que a expressão “neoliberalismo” cumpria anos atrás, isto é, a possibilidade de rotular tudo o que a esquerda considera ruim – da austeridade fiscal à segurança pública, do conservadorismo nos costumes ao populismo de direita. Reconhecer tais diferenças é útil quando se observam Bolsonaro e seu orgulho liberticida, que joga aos tubarões quem ousa ao mesmo tempo reivindicar o apoio dos seus devotos e respeitar instituições e adversários.
Eis aí a enorme missão a ser cumprida por outros nomes da direita brasileira, como os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), e do Paraná, Ratinho Júnior (PSD) – os três principais candidatos a herdar o capital político de Bolsonaro. É esse o desafio especialmente imposto ao governador de São Paulo, o favorito: decidir se deseja apresentar-se como uma liderança da direita – democrática, liberal e republicana, insista-se – ou se quer se juntar aos delinquentes. É um dilema similar ao do Partido Republicano nos Estados Unidos. Em tese, um partido existe para diluir ambições pessoais e valorizar causas. Hoje, os republicanos só têm uma causa: a que Donald Trump definir. O presidente do partido de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, disse o mesmo sobre Bolsonaro e o PL. Nada mais antidemocrático.
Se não quiser ser vista como parte do gangsterismo disfarçado de movimento político chamado “bolsonarismo”, a direita precisa negar Bolsonaro. É uma equação eleitoralmente difícil, mas ou é isto ou então é mergulhar no abismo moral e político que o bolsonarismo representa. Para tanto, a direita democrática pode e deve galvanizar o espírito do antipetismo ou do desencanto de quem está farto dos rumos tomados pelo lulopetismo e sua promessa não cumprida de pacificar o Brasil. Mas, antes de mirar o PT, convém se descontaminar do que há de mais antidemocrático e incivilizado que este país produziu em sua história. Fonte: https://www.estadao.com.br
A lição que Roma antiga poderia dar a Joe Biden
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Todo mundo se agarra como pode a qualquer fiapo de poder que seus dedos consigam alcançar
Economista, mestre em filosofia pela USP.
Foi duro assistir ao debate americano. Primeiro, pelo show de mentiras e demagogia de Trump. Segundo, e mais importante, pela agonia de ver Biden falar, torcendo a cada pergunta para que ele concluísse suas frases ao menos de forma inteligível. Nem sempre conseguiu. Trocava nomes, esquecia palavras, perdia o fio da meada.
Uma pesquisa da CBS News/YouGov publicada no domingo mostra que 72% dos eleitores creem que Biden não tem a saúde mental e cognitiva necessária para servir como presidente. Antes do debate, eram 65%. Os sinais estão claros. Ele perde para Trump em todas as pesquisas. Precisa virar o jogo: aparecer mais, gerar fatos positivos, surpreender o eleitorado. Qual a chance de consegui-lo? Entrevistas e aparições públicas realçam apenas sua fragilidade física e mental.
Biden cumpriu sua missão ao vencer um presidente que ameaçava a democracia em 2020 e ainda entrega números razoáveis. Crescimento médio do PIB de 3,5% ao ano; desemprego de 2024 a 4%. A inflação, alta até 2022, caiu e deve ficar em torno 3% este ano. Ele poderia declarar que cumpriu sua missão e que abrirá espaço para alguém mais jovem e dinâmico. Ao fazê-lo, coroaria sua carreira com um ato final de desprendimento.
No século 5 a.C, Lúcio Quíncio Cincinato, patrício romano já idoso e que levava uma vida modesta, aceitou relutante o cargo de ditador num momento de necessidade nacional. Venceu a guerra que ameaçava a existência de Roma em meros 16 dias e imediatamente abriu mão do poder absoluto e da glória advinda do cargo, voltando à humilde lavoura que cultivava com as próprias mãos. Foi duplamente louvado. Não sabemos se a história real foi assim, mas sabemos que esse era o nível de desprendimento do poder admirado numa República antiga.
Na República atual, todo mundo se agarra como pode a qualquer fiapo de poder que seus dedos consigam alcançar e só solta quando arrancado à força; o país que se dane. Um caso similar foi o da juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg. Já tinha um mandato de décadas com votos importantes para o lado progressista. Com mais de 80 anos, poderia ter se aposentado ainda no governo Obama e permitido que ele escolhesse sua sucessora. Não o fez. Faleceu em 2020, dando a Trump a oportunidade de aumentar a proporção de conservadores na Corte, que está hoje em 6 a 3.
Vozes de democratas na imprensa clamam para que a esposa, a família, os correligionários de Biden o convençam a desistir. Mas a real responsabilidade deveria ser do próprio Biden. Se fosse apenas sua trajetória política que estivesse em jogo, daria para entender o apego à miragem da reeleição. Mas é a própria República e a ordem mundial que ela (mal e mal) sustenta que podem sucumbir, então a recusa em largar o osso ganha ares de um egoísmo doentio.
Doentio e irracional, dado que Biden provavelmente perderá. Além de prejudicar o país, perderá a chance de fechar sua carreira com um ato admirável de magnanimidade para acabar de forma melancólica, derrotado e humilhado, tendo entregue de bandeja a eleição mais crucial da história recente.
Isso importa inclusive para nós, brasileiros, porque a eleição de Trump terá impacto no mundo todo. E também porque, por aqui, presidentes e ex-presidentes têm uma dificuldade quase patológica de deixar o poder e preparar sucessores.
Seja como for, provavelmente já é tarde. Trump seguirá favorito independente de quem se oponha. A opção entre a certeza do fracasso e a possibilidade da virada, no entanto, não devia ser tão difícil. Não dá para esperar de um presidente o desprendimento de um Cincinato; só o bastante para não empurrar o país do precipício. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
O debate político não é refém do fundamentalismo
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O projeto que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio mostrou o descolamento entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa
Por desinformação, preconceito ou má-fé, uma parte considerável do mundo não evangélico observa, com desconfiança e temor, a notável ascensão das igrejas evangélicas brasileiras. Muitos também confundem a população evangélica e seus representantes e líderes religiosos, como se fossem um só corpo e uma só mente – algo monolítico, uma base ao mesmo tempo genérica e uniforme, composta por pastores e parlamentares populares, influentes e barulhentos, e uma população fiel, obediente e facilmente manipulável. O debate sobre o Projeto de Lei (PL) 1904, que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio, demonstrou que não é bem assim: não somente há muito mais diversidade nos grupos evangélicos do que sugere o senso comum, como há um descolamento razoável entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa.
Na semana em que a Frente Parlamentar Evangélica – liderada pelo autor do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), sob a bênção do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) – trabalhava pela urgência da tramitação, nas ruas e nas redes sociais grupos evangélicos se mobilizaram para contê-lo. Sem liderança puxando o trio, mulheres de todos os credos foram às ruas protestar; sem compromisso com a bancada parlamentar, mulheres cristãs de diversas matrizes religiosas lançaram um manifesto e organizaram um ato em Brasília. A confirmação do descolamento veio com os números trazidos pelo Datafolha: 57% dos evangélicos do País são contrários ao PL, número que é ainda maior entre os católicos (68%). Em outras palavras, engana-se quem percebe o perfil religioso e conservador do brasileiro como fundamentalista. Mais: fundamentalistas são minoria – e se concentram nas hostes extremistas no Congresso. Segundo o Datafolha, 66% da população rejeita o projeto.
Ainda que parlamentares prometam voltar à carga quando o clima esfriar, as pressões obrigaram o recuo no que pareceu uma tentativa da extrema direita de emparedar o governo. Triunfaram no início: o presidente Lula da Silva ficou em silêncio até as manifestações de rua e as primeiras pesquisas dando conta da derrota do PL nas redes sociais. Lula chamou de “insanidade” a tentativa do projeto, mas só o fez quando se sentiu à vontade diante do racha aparente no mundo evangélico.
O presidente lidera uma esquerda que costuma enxergar evangélicos como outro Brasil, outra gente. A confusão mais comum associa evangélicos à extrema direita, o que ajuda a ampliar o preconceito contra a população religiosa. Com a emergência do bolsonarismo, pastores influentes passaram a atuar também na produção e reprodução de notícias falsas e pânicos morais, assim como na ameaça direta dentro de espaços religiosos. São dois mundos distintos, mas que se entrelaçam, pois a ação de um contamina e reforça o preconceito sobre o outro.
Ocorre que evangélicos são muito mais do que isso. Pesquisadores do Instituto de Estudos da Religião (Iser) vêm mostrando que suas aspirações passam tanto pelas crenças quanto por elementos reais do cotidiano. Estudos informam que a maioria evangélica é hoje feminina e de baixa renda e tem muita clareza sobre o que melhora ou piora suas condições de vida. “São pessoas que se movem por necessidades práticas e não apenas por fake news que viram trending topics nos grupos de WhatsApp da Igreja”, escreveu a pesquisadora Ana Carolina Evangelista em artigo publicado no UOL.
Dilemas reais das mulheres evangélicas envolvem a família, a segurança e a situação econômica, categorias que estruturam a vida de boa parte dos brasileiros, ultrapassam o moralismo explorado pela extrema direita e confundem a cabeça do lulopetismo. A resistência ao PL é parte desses dilemas. Se moral e ideologicamente são contra a legalização do aborto, veem o estupro como crime inaceitável, portanto é ultrajante para muitas evangélicas a ideia de que a mulher, já vítima do estuprador, seja condenada à prisão. Esse componente crítico só é impensável para quem enxerga obediência absoluta ao estereótipo do crente fundamentalista. E para lideranças parlamentares que, cada vez mais fisiológicas, olham para cima – neste caso, não para o Céu, e sim para os seus projetos de poder. Fonte: https://www.estadao.com.br
A política da aversão
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Pesquisa revela que o ódio se tornou um dos grandes motivadores para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias. Nessa ambição de eliminar o contraditório, todos perecerão
É lamentável constatar que o ódio tenha se tornado uma grande motivação para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias no País. Uma pesquisa conduzida por cientistas políticos da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade de São Paulo (USP), publicada pelo Estadão no dia 1.º passado, revelou que, entre os filiados a partidos políticos no Brasil, cerca de 70%, nada menos, consideram que a aversão e o ódio a seus adversários políticos, em algum grau, foram fatores relevantes para sua decisão de ingressar numa determinada legenda.
O resultado da pesquisa – de abrangência nacional, realizada com filiados e dirigentes de 32 partidos nos anos de 2020, 2022 e 2023 – partiu de uma arguta curiosidade de seus autores. Eles pretendiam compreender por que, afinal, o número de filiações vem crescendo no País à medida que também cresce um sentimento de descrença em relação não só à política, mas aos políticos em geral. “Descobrimos que o ódio e a rejeição do adversário motivam não só a filiação, mas também são fatores que tornam os filiados ainda mais engajados”, disse ao Estadão o pesquisador Pedro Paulo de Assis, da USP.
Do total de respondentes, 36% disseram que se tornam “altamente engajados” nas atividades de seu partido quando se veem diante da possibilidade de vitória da legenda que mais rejeitam e odeiam. Os pesquisadores classificaram esse comportamento como “engajamento pelo ódio”, que vem à frente de comportamentos políticos tidos como tradicionais, como, por exemplo, a ação motivada pelo desejo de influenciar o processo decisório interno das legendas (32%). Ao menos por enquanto, o “engajamento pelo ódio” só fica atrás do empenho dos filiados pelo triunfo eleitoral de suas próprias siglas (41%).
Isso só acontece porque, há um bom tempo, se estimula no Brasil, mas não só, uma nefasta transfiguração da política. De meio civilizado para a concertação de interesses sociais divergentes, a política passou a ser tratada como uma guerra existencial. Ou, dito de outra forma, um processo de vinculação emocional entre membros de uma tribo, para não dizer seita, que passam a enxergar sua sobrevivência – seja no debate público, seja nas vias de acesso às esferas institucionais de poder – a partir da eliminação política e moral, quando não física, de seus adversários.
Nessa disputa de vida ou morte, os que não comungam das mesmas ideias, aspirações e valores são tratados como inimigos a serem abatidos num campo de batalha. Hoje, felizmente, essa guerra campal é travada no campo simbólico. Sabe-se lá até quando. Ora, isso não é outra coisa senão o fim da política – e, consequentemente, da própria democracia representativa tal como a conhecemos, como o pacto social materializado na Constituição de 1988. Não há, evidentemente, como isso possa dar em bom lugar.
Qualquer sociedade civilizada abraça e encoraja as divergências entre os cidadãos, não as repele, muito menos as desestimula. A política, nesse sentido, exerce um papel central na vida nacional, pois, malgrado a miríade de dissensões que há entre eles, os indivíduos se reconhecem como concidadãos e, nessa condição, buscam alcançar objetivos minimamente comuns. Os partidos sempre foram vistos como os principais organizadores desses interesses em negociação. Agora, ao que parece, tornaram-se grandes usinas de um ódio que, no limite, pode levar à sua extinção como um dos principais mediadores do debate público.
Eis uma grande armadilha. No curtíssimo prazo, essa ação política movida a bile pode até favorecer as legendas por fomentar a filiação partidária, gerar engajamento e, consequentemente, contribuir para um eventual aumento de bancadas federais – o que está diretamente relacionado com o tamanho do quinhão do Orçamento público que os partidos vão receber. Adiante, porém, esse estado de guerra existencial não tem outro destino a não ser o ocaso da política desenvolvida e, a reboque, do valor dos próprios partidos. Fonte: https://www.estadao.com.br
Anistia inaceitável
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Anistia inaceitável
No cenário de desordem institucional, está em curso um plano para reabilitar Bolsonaro com vista a 2026. Ou as instituições democráticas recobram o prumo, ou o golpismo prospera
Está em curso um plano de reabilitação de Jair Bolsonaro para permitir que ele concorra à Presidência em 2026. Fossem estes tempos normais, esse cenário seria um devaneio dos apoiadores mais fervorosos do ex-presidente. Mas estes não são tempos normais, não do ponto de vista institucional. E o bolsonarismo, como se sabe, vampiriza sua força da atimia das instituições – seja pela tibieza, falta de espírito público ou desvios de comportamento de alguns de seus membros.
O Congresso só faz aumentar seu poder, pela via do controle do Orçamento, sem a devida responsabilização pelas escolhas que faz. Some-se a isso a fragmentação partidária e estão dados os reveses inauditos ao chamado presidencialismo de coalizão. O presidente Lula da Silva, por sua vez, parece alheio à realidade do País. Governa como se tivesse sido eleito por folgada maioria de ditos “progressistas”, fechado que está em seus interesses mais imediatos e na fracassada agenda do PT. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) tem agido com denodo para macular sua imagem perante a opinião pública – e não só entre bolsonaristas. Não raro, ministros têm se comportado como se fossem maiores do que a própria Corte, minando a legitimidade que não apenas é o esteio do Poder Judiciário, mas do próprio Estado Democrático de Direito.
É nesse contexto de desordem institucional que se tem tratado, à luz do dia, de algumas medidas que têm por fim anistiar o maior vândalo político que esta República democrática conheceu nos últimos 35 anos, o “mito” inspirador de uma tentativa de golpe de Estado. Nada menos. Das duas, uma: ou as instituições democráticas recobram o prumo ou o golpismo prospera.
Há poucos dias, a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, Caroline de Toni (PL-SC), designou o colega Rodrigo Valadares (União-SE) como relator de um projeto de lei que concede anistia aos golpistas do 8 de Janeiro. Como ambos são bolsonaristas de quatro costados, não é difícil imaginar como serão os trabalhos na CCJ e o relatório final. É igualmente cristalino o fato de que ninguém se importa com a desdita dos liberticidas que tomaram Brasília de assalto naquele dia infame. Fossem mais honestos os patrocinadores desse descabido projeto de lei, dar-lhe-iam o nome de “emenda Bolsonaro”, pois é de livrá-lo da Justiça e reabilitá-lo eleitoralmente que se trata.
Em outra manobra claramente oportunista, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), resolveu desengavetar um projeto de lei de 2016 que proíbe a homologação judicial de acordos de colaboração premiada firmados por colaboradores presos, além de punir quem divulgar o conteúdo das delações – uma óbvia criminalização do jornalismo profissional. São dois os objetivos de Lira com essa manobra. Primeiro, cortejar o PL, partido de Bolsonaro. Com uma bancada de 95 deputados, a sigla é crucial para a pretensão do presidente da Casa de fazer seu sucessor. No limite, o projeto – de autoria do ex-deputado petista Wadih Damous (RJ) – pode anular a delação do tenente-coronel Mauro César Cid contra o ex-chefe. Além disso, Lira sacou de seu baú de maldades mais um instrumento para fustigar Lula, que agora não tem mais qualquer interesse nesse projeto, a fim de manter o governo em rédea curta. Não à toa, Bolsonaro declarou publicamente que apoiará “o nome do Lira” à presidência da Câmara em fevereiro de 2025.
A anistia se tornou a maior obsessão de Bolsonaro depois das fracassadas tentativas, legais e ilegais, de se manter no poder. Esse arranjo intolerável, entretanto, interessa apenas e tão somente ao ex-presidente e a seu grupo político, em particular sua família.
Não é do interesse nacional perdoar os golpistas – nenhum deles. É absolutamente inaceitável tolerar qualquer indulgência com intolerantes que tentaram cassar as liberdades democráticas neste país. A punição exemplar de todos os golpistas é a melhor defesa da democracia, se não a única, contra os seus inimigos. Para estes, é preciso deixar claro que a conta de sua ousadia é pesada. Só isso poderá evitar que a barbaridade se repita. Fonte: https://www.estadao.com.br
'PEC das Praias' pode beneficiar senadores que têm imóveis em área de marinha
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Nove dos 81 parlamentares têm propriedade nessas condições, mas maioria nega desconforto em votar a proposta
Plenário do Senado Federal - Pedro Ladeira-16.abr.2024/Folhapress
Lucas Marchesini, Idiana Tomazelli, Ranier Bragon
BRASÍLIA
Nove dos 81 senadores que vão deliberar sobre a chamada "PEC das Praias" têm em seu nome propriedades que ficam em área de marinha, de acordo com dados públicos da Secretaria do Patrimônio da União (que faz parte do Ministério da Gestão e Inovação) e da Justiça Eleitoral.
São eles Alessandro Vieira (MDB-SE), Ciro Nogueira (PP-PI), Esperidião Amin (PP-SC), Fernando Dueire (MDB-PE), Jader Barbalho (MDB-PA), Laércio Oliveira (PP-SE), Marcos do Val (Podemos-ES), Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) e Renan Calheiros (MDB-AL).
Procurados pela Folha, cinco disseram não ver impedimento em analisar a proposta e os outros quatro não se manifestaram.
O levantamento levou em conta imóveis no nome do parlamentar ou de empresas da sua propriedade.
Os terrenos de marinha são áreas à beira-mar que ocupam uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofrem a influência das marés. Elas foram medidas a partir da posição da maré cheia do ano de 1831. Ou seja, em cidades litorâneas, são áreas que ficam atrás da faixa de areia.
A propriedade desses imóveis é compartilhada com a União, que cobra uma taxa de foro pelo uso e ocupação do terreno. Em caso de transferência para outra pessoa, é preciso pagar outra taxa, o laudêmio.
A PEC facilita a transferência dos bens em áreas urbanas da União para estados e municípios ou para proprietários privados, em texto criticado por técnicos e especialistas por criar insegurança jurídica, permitir a privatização de áreas do litoral brasileiro e abrir brechas para grilagem.
A medida é considerada por técnicos como de alto risco. O texto prevê a cessão onerosa das áreas, ou seja, os ocupantes serão obrigados a comprar a parcela da União no terreno de marinha.
Na prática, porém, a PEC não prevê sanções ou condutas em caso de não pagamento —em outras palavras, o governo pode levar um calote sem ter meios para cobrar os valores devidos.
Já em 2022, técnicos viam potencial de a medida se transformar na maior transferência de patrimônio público para o setor privado na história do país.
O texto tem como relator o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que encampou a defesa da proposta e emitiu parecer favorável ao texto aprovado pela Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022.
Seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi em seu governo um entusiasta de mudanças em regras para criar uma espécie de "Cancún brasileira" na região de Angra dos Reis (RJ) —região onde se situam diversas áreas de marinha potencialmente alcançadas pela PEC.
Entre os possíveis beneficiários diretos da PEC, os senadores Esperidião Amin e Oriovisto Guimarães se declararam favoráveis ao texto. Amin diz que é preciso, porém, haver aperfeiçoamento.
Oriovisto é o responsável por um imóvel de 2.982,89 m² de área total em Guaratuba, no Paraná, segundo os dados da Secretaria de Patrimônio da União. Procurado, ele disse que se trata de uma casa de veraneio e que a PEC não terá "reflexo significativo" em seu caso.
"Hoje pago uma taxa anual para a SPU e pago IPTU par a a prefeitura. Se a PEC passar, vou examinar se vale a pena pagar um valor para a SPU para me livrar da taxa anual, ou se deixo como está hoje. São milhares de casas na mesma situação. Importante salientar que, em qualquer hipótese, não haverá alteração no uso do terreno", disse.
Marcos do Val e Laércio Oliveira não manifestaram qual posição vão adotar na análise do tema, embora o segundo tenha votado a favor da proposta quando ela foi aprovada pela Câmara e ele era deputado.
"Vou acompanhar novas discussões que tragam segurança à população, porque a PEC está gerando interpretações equivocadas e imprecisas", Disse Laércio.
Já Fernando Dueire se disse contrário à medida.
Todos os parlamentares que se pronunciaram negam desconforto em votar uma matéria que pode beneficiá-los.
Por meio de sua assessoria, Marcos do Val disse que se sentir impedido de analisar e votar a proposta por ter um imóvel em área de marinha "seria o mesmo que um senador da área do esporte se considerar impedido de analisar uma questão nesse assunto". Seu imóvel fica em Vitória (ES).
Não responderam às perguntas da Folha Renan Calheiros, Jader Barbalho, Ciro Nogueira e Alessandro Vieira.
Para o senador Flávio Bolsonaro, o projeto dará mais segurança jurídica aos atuais ocupantes das áreas, aumentará a arrecadação federal e atenderá necessidades de municípios com grandes áreas litorâneas.
Na época da aprovação do texto da Câmara, em fevereiro de 2022 —durante a gestão Bolsonaro, portanto—, a SPU já alertava para os efeitos deletérios da PEC sobre o patrimônio da União, uma vez que o valor das áreas envolvidas poderia chegar a R$ 1 trilhão.
O prejuízo, porém, pode ser ainda maior. A partir de dados do Censo Demográfico de 2022, a Secretaria do Patrimônio da União estima que 2,9 milhões de imóveis estejam em terrenos de marinha, mas apenas 565,3 mil deles estão cadastrados.
Os beneficiários tendem a ser pessoas de alta renda, que ocupam terrenos à beira-mar.
Ambientalistas apontam riscos para a diversidade ecológica, caso prospere a cessão onerosa dessas áreas. O governo federal ainda aponta que a demarcação e administração desses terrenos são fundamentais para garantir a gestão adequada dos bens da União.
O governo federal afirma que o Brasil tem cerca de 48 mil quilômetros lineares em terrenos de marinha, considerando reentrâncias em estados como Pará e Maranhão. Deste total, aproximadamente 15 mil quilômetros lineares estão demarcados. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
Falar em anistia é estender tapete vermelho para golpistas terminarem o serviço
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Ideia de passar borracha na conspiração de Bolsonaro vaga pelo Congresso com simpatia do centrão
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).
BRASÍLIA
Foi uma ação entre amigos. A presidente da comissão mais importante da Câmara procurou Jair Bolsonaro para discutir um projeto de anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023. Caroline de Toni (PL) escolheu um aliado do ex-presidente como relator e prometeu incluir a proposta em pauta.
Até as paredes do Congresso sabem que a ideia de anistiar os presos de 8 de janeiro seria a inauguração de uma farra que incluiria o próprio Bolsonaro. A presidente da CCJ tentou disfarçar e disse que o ex-presidente não pediu para ser incluído na proposta. "Olha a altivez do nosso presidente Bolsonaro em não visar o seu próprio interesse", exagerou.
O plano de livrar o ex-presidente da prisão e talvez anular sua inelegibilidade é uma trama conduzida à luz do dia. A ideia é começar pelos "injustiçados do dia 8 de janeiro" para fingir que Bolsonaro nunca preparou um golpe de Estado, nunca pediu ajuda de militares de alta patente e nunca recebeu apoio de parlamentares que, hoje, tentam blindá-lo.
A pressa e a criatividade desses agentes sugerem que o ex-presidente não está disposto a esperar um julgamento. Em outra frente, a Câmara pôs em pauta uma proposta que invalida delações feitas por réus presos. Não por acaso, a PF está prestes a indiciar Bolsonaro em inquéritos turbinados por depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid.
A ideia de passar uma borracha nos crimes do ex-presidente só vaga pelos corredores do Congresso porque tem a simpatia do centrão —numa mistura de corporativismo e gratidão pelas benesses extraídas do governo passado. Algumas propostas têm apoio de cardeais de partidos da base de Lula e ressoam na Esplanada dos Ministérios.
O argumento mais vendido nessa feira é uma necessidade de pacificação do país. Como não se pode atribuir aos parlamentares nenhuma ingenuidade, o mais provável é que tenham sido tomados pelo cinismo. Falar em anistia é estender um tapete vermelho para que os golpistas voltem e terminem o serviço. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
O espírito da PM de Tarcísio
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Ao submeter a segurança da população à ideia de que policiais não devem ser ‘vigiados’, governador ignora um princípio básico da cidadania e flerta com a banda truculenta da força estatal
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) não poderia ter deixado mais claro que sua antipatia pela instalação de câmeras no fardamento da Polícia Militar (PM) de São Paulo parte de uma incompreensão primordial dessa bem-sucedida política de segurança. Na quarta-feira passada, durante o ato de assinatura do contrato do Trem Intercidades, em Campinas, Tarcísio afirmou que quer “uma população segura, e não um policial vigiado”, como se estivesse tratando de noções antitéticas. Na verdade, eis o erro fundamental, uma coisa e outra são conexas.
Mais bem dito: para o governador do Estado, como pode ser facilmente depreendido de sua fala cristalina, tão mais seguros estarão os cidadãos paulistas quanto menos houver fiscalização da atividade policial. Ora, o olhar vigilante da sociedade sobre todo e qualquer servidor investido do múnus público é um princípio básico da cidadania. É desse tipo de vigilância, afinal, que se está tratando, e não de um escrutínio da força estatal por quem não tem legitimidade para exercê-lo – como os criminosos, por óbvio.
Ademais, a devida fiscalização dos agentes treinados e armados pelo Estado para exercer o monopólio da violência em seu nome, seja por meio das corregedorias das corporações, seja pelo Ministério Público e, por fim, pelo Poder Judiciário, é um atributo comezinho de qualquer governo inspirado por princípios democráticos e orientado genuinamente por valores universais, como o respeito aos direitos humanos.
A violência praticada por policiais no exercício de suas atribuições é um meio legítimo de imposição da ordem pública desde que circunscrita às balizas das leis e da Constituição. Nesse sentido, as câmeras corporais, como já está sobejamente demonstrado, não apenas protegem os cidadãos – inclusive os criminosos – do emprego de força abusiva por agentes do Estado, como serve de robusto meio de prova para proteção jurídica dos próprios policiais.
Portanto, ao submeter a segurança da população paulista à ideia segundo a qual os policiais não devem ser “vigiados”, Tarcísio ignora um princípio elementar da cidadania e, como se isso não bastasse, ainda flerta com a banda truculenta das forças sob seu comando. Como parece razoável supor para qualquer cidadão sensato, só quem tem a ganhar com o fim do programa de câmeras na PM ou com o enfraquecimento dessa política pública de resultados comprovadamente satisfatórios são os maus policiais, que preferem operar nas sombras, ao abrigo de qualquer investigação de suas ações em serviço.
Como é notório, desde o início do governo de Tarcísio de Freitas houve uma perceptível deterioração do espírito, digamos assim, orientador da PM. Por muitos anos conhecida como a mais bem preparada e equipada força policial do País, contribuindo, ao lado da Polícia Civil, para a redução progressiva dos indicadores de violência no Estado, a PM se notabilizou nos últimos dois anos por uma inflexão, vale dizer, pelo aumento das mortes causadas por intervenção policial e da truculência de suas intervenções.
Aí estão, entre outros exemplos estarrecedores, os casos de repressão violenta aos protestos de estudantes na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – contra a aprovação do projeto de lei que instituiu as escolas cívico-militares – e na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, durante a posse do novo procurador-geral de Justiça do Estado. Um policial chegou a rir enquanto batia nos jovens. São práticas inaceitáveis para um governo que se diz democrático.
A seguir por esse mau caminho, Tarcísio levará a população a sentir medo sempre que vir uma patrulha policial. O combate ao crime não implica, necessariamente, força bruta, por mais que isso excite eleitores explorados em seu justo sentimento de impotência diante de casos de violência. O bom combate deriva do aprimoramento técnico contínuo das polícias, da difusão de noções de cidadania, da repressão aos maus policiais e da valorização dos que atuam dentro da lei. Não é pedir muito. Fonte: https://www.estadao.com.br
Diretas Já: lembrar para avançar
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Recuperar a memória pode promover reencontro do Brasil com a democracia
No maior comício das Diretas Já, mais de 1 milhão de pessoas se reuniram no Vale do Anhangabaú em 16 de abril de 1984 - Renato dos Anjos/Folhapress - Folhapress
Patricia Vanzolini e Leonardo Sica
Respectivamente, presidente e vice-presidente da OAB-SP
Abril de 1984 ficou marcado pelas grandes manifestações políticas de rua. No dia 10, milhares de pessoas ocuparam a Candelária, no Rio de Janeiro, com a mensagem "Eu quero votar para presidente". Há exatos 40 anos, no dia 16, em São Paulo, ocorreu o histórico comício do Vale do Anhangabaú, ato final das Diretas Já, movimento cívico que mudou o Brasil.
A emenda do voto direto foi rejeitada pelo Congresso Nacional, dias depois, mas a mobilização teve resultados expressivos: demarcou o fim da ditadura e abriu portas para a Constituição de 1988 e para as eleições diretas em 1989. Foi o primeiro grande encontro da nossa República com a democracia.
O impacto do movimento foi resultado de uma firme estratégia de articulação e coesão da sociedade civil, reunida sob o Comitê Suprapartidário, formado por partidos políticos, centrais sindicais, entidades, artistas, estudantes etc. Por escolha de todos esses atores, o comitê foi presidido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), comandada pelo saudoso Mário Sérgio Duarte Garcia. Numa sociedade dividida, desconfiada e traumatizada pelo regime autoritário, era necessária uma voz imparcial, apartidária e de moderação para coordenar as Diretas Já. A OAB foi, naquela quadra da vida nacional, o centro de entendimento que o país necessitava.
A pressão pelo voto direto se desdobrou no pacto político que firmou o Estado democrático de Direito como nosso modo de vida nas décadas seguintes. Agora, 40 anos depois, nos deparamos com dúvidas quanto ao futuro da democracia representativa. Arroubos extremistas desafiam democracias mundo afora. Autocratas conseguem se impor com apoio no voto popular e avançam sobre as instituições. Estudiosos vêm dissecando o que chamam de crise ou recessão democrática.
No Brasil, a polarização político-afetiva, o tribalismo que fragmenta a sociedade e campanhas de desinformação confrontam nossa democracia que, embora jovem, resiste com vigor.
Esse cenário impõe que nossas instituições se conectem com as novas demandas que pressionam as democracias: emergência digital, diversidade, desigualdade e ausência de perspectivas de progresso e bem-estar. E, para a OAB, por coerência, é imperioso superar a resistência ao voto direto para escolher seu presidente nacional e, assim, se recolocar como ator relevante do jogo democrático.
Recuperar a memória das Diretas Já é útil para promover um novo encontro do Brasil com a democracia.
O passado é a conexão entre o presente e o futuro e, enquanto não desenvolvemos outras tecnologias, é a melhor chave de leitura para compreender o presente e imaginar o futuro.
Há 40 anos, direita, esquerda, progressistas, conservadores e liberais se uniram sem preocupação com rótulos, sem barreiras ideológicas de uns contra os outros. Não tínhamos uma Constituição fundamentada na cidadania, no poder do povo e no pluralismo político, com garantias como liberdade de expressão, de reunião, de imprensa. Repressão e violência política eram realidades e, mesmo assim, foi possível convergir sob uma agenda coletiva.
Mesmo assim, foi possível.
Se foi naquele cenário, é hora de trocar polarização por aproximação, colocar mais luz naquilo que nos une como cidadãos e reconhecer que, como tais, nossas afinidades importam mais que nossas divergências.
É possível aprimorar nossas instituições na direção de uma democracia universal. Há necessidades consensuais que devem ser priorizadas, e nossa história recente mostra que, quando agimos sob um sinal comum, somos mais felizes nessa empreitada. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
Salvo-conduto para atos antidemocráticos
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Anistiar os crimes do 8 de Janeiro significará esquecê-los. E o Brasil não pode esquecer quem conspirou contra seu regime democrático
Assistimos diariamente aos avanços da investigação sobre o movimento antidemocrático de janeiro de 2023, conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes e declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 572. Constitucionais, portanto, tanto a Portaria 69/2019, do gabinete da presidência do STF, que indicou Moraes como relator do inquérito, quanto o artigo 43 do Regimento Interno do STF. Tais dispositivos serviram de suporte para o chamado inquérito das milícias digitais, destinado a investigar o incitamento ao fechamento da Suprema Corte, as ameaças de morte ou de prisão de seus membros e a apregoada desobediência a decisões judiciais.
Antes de prosseguir, cabe salientar meu entendimento de que o Regimento Interno do STF não é norma apta a estabelecer competência criminal, e é urgente que o Congresso Nacional se esforce para criar emenda constitucional neste sentido, mecanismos de enfrentamento aos ataques à Corte. Também entendo que as penas aplicadas aos baderneiros do 8 de Janeiro são extremamente pesadas, com a inadequada aplicação do concurso de crimes, associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Condutas, aliás, muito graves. Obviamente, numa democracia, devemos respeito às decisões do Judiciário, que devem ser obedecidas, e essas ponderações têm um sentido exclusivamente reflexivo.
Pois bem. Nos últimos meses surge no Congresso Nacional, com alguma força, o Projeto de Lei (PL) n.º 5.064, destinado a anistiar os participantes do 8 de Janeiro, quando os prédios dos Três Poderes em Brasília foram invadidos e depredados. Tal projeto concede perdão aos acusados e condenados pelos crimes definidos nos artigos 359-L e 359-M do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal, em razão das manifestações que aconteceram na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Mas seria possível anistiar alguém por atentados ao Estado Democrático de Direito? A Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu, em alguns julgados, que as autoanistias criminais são nulas (caso Barrios Altos vs Peru, por exemplo), e é impossível que responsáveis pelo cometimento de crimes contra a população civil possam isentar-se a si mesmos, com legislações criadas por órgãos legiferantes sem representatividade e subordinados aos repressores. Porém esse é um quadro diferente. Aqui, pretende-se anistiar um grupo de pessoas, civis e militares, envolvidas com tramoias, conspiração, fechamentos de estradas, acampamentos golpistas, ataques ao sistema eleitoral e destruição de bens públicos. Uma tentativa de ruptura institucional, complexa e com movimentos dos mais diversos. Malsucedida, ainda bem, por motivos que no futuro saberemos.
O projeto é de autoria de representantes legítimos do povo, eleitos, ironicamente, pelas urnas eletrônicas apontadas como fraudulentas pelos grupos que invadiram os prédios em Brasília naquele 8 de janeiro. É um diferencial em relação à anistia do regime militar, sancionada pelo general João Batista Figueiredo em agosto de 1979, que perdoou torturadores e violadores de direitos humanos. O PL em andamento ataca o trânsito em julgado de algumas decisões, proferidas pela última instância do Poder Judiciário, o que já é grave, posto que chancela a afronta ao artigo 2.º da Constituição, núcleo da separação dos Poderes. Mas é difícil de entender a concessão de anistia para quem, justamente, atacou as instituições e o sistema eleitoral, chamando-o de fraudulento sem provas, ocupando um espaço perigoso, extremista e antidemocrático.
Tal perdão representa um grande retrocesso, do ponto de vista do retorno à democracia desde os anos 80, num Brasil repleto de histórias de golpes e autoritarismo. E aos que não foram julgados ainda, financiadores, mandantes e altas autoridades da República, não seria necessário sequer aguardar o julgamento, autêntica anistia preventiva, estimulando os futuros golpistas de plantão, que receberiam simbolicamente um salvo-conduto inapropriado.
Críticas ao sistema judiciário são saudáveis, bem-vindas e necessárias, mas destoam dos pedidos de intervenção militar bradados em frente aos quartéis ou das facadas num quadro de Di Cavalcanti.
Existem caminhos legítimos para criticar o sistema, e não são esses. Se a palavra anistia deriva do latim amnestia, que significa esquecimento, não pode o Brasil esquecer quem conspirou contra seu regime democrático. Já fizemos isso uma vez e, agora, quando se completam 60 anos do último golpe militar, não cabe repetir tal esquecimento. Anistiar estes crimes significará esquecê-los. Sob pena de a ameaça do regime militar, de triste e repugnante lembrança, nunca nos abandonar e de o golpe de 1964 continuar sendo comemorado. Muitas vezes, explicitamente.
*DOUTOR EM DIREITO, PROCURADOR REGIONAL DA REPÚBLICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF), É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS (RS) Fonte: https://www.estadao.com.br
Liberdade intransitiva
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O País precisa conter o golpismo e se faz urgente a regulação das redes, mas nenhuma dessas tarefas pode prescindir da maior proteção contra autoritarismos: a liberdade de expressão
Está na Constituição, em seu artigo 5.º, inciso IV, parágrafo IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Quando a Constituição foi promulgada, em 1988, poucas coisas pareceram mais festejadas do que esse artigo – o mesmo segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e com garantia do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Estabeleceu-se ali também o veto a qualquer forma de censura e se definiram limites a esse direito fundamental: em situações de violação da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem de outras pessoas. Em casos de calúnia, difamação e injúria, foi assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente do abuso da liberdade de expressão. Ou seja, a Constituição define, sem conjunções adversativas, o que é o pilar da democracia e aponta seus limites com precisão.
É espantoso, no entanto, que a limpidez da lei e de seus princípios fundadores pareça hoje insuficiente no Brasil. Mesmo com tamanha clareza, o debate sobre liberdade de expressão foi levado ao paroxismo pela ausência de regulação das plataformas digitais, pela conjugação entre ativismo e arbitrariedade do Supremo Tribunal Federal (STF) e pela instrumentalização muitas vezes criminosas das redes sociais – uma tríade de tensões agravada com as ameaças à democracia que culminaram no vandalismo golpista de 8 de janeiro de 2023, com o ambiente democrático intoxicado pela polarização e com a junção entre as diatribes de liberticidas extremistas e a tirania de quem se enxerga acima da lei e das instituições, como se viu na recente polêmica envolvendo o empresário Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.
O País precisa fortalecer seus diques de contenção de novas aventuras golpistas, e se faz urgente a regulação das redes sociais – uma regulação que seja capaz de construir um ambiente digital mais seguro e confiável, permitir o avanço na proteção dos direitos e da liberdade e responsabilizar as plataformas digitais pelo conteúdo de terceiros que publicam. Nenhuma dessas tarefas inadiáveis, contudo, pode prescindir daquela que é a maior proteção da sociedade contra autoritarismos: a liberdade de expressão. É o que determina a fronteira entre regimes democráticos e autoritários ou o que define o princípio por meio do qual se pode frear o silenciamento de opiniões contrárias, seja pela censura estatal, seja pela “tirania da maioria”, segundo a clássica definição de um dos pais do liberalismo, o britânico John Stuart Mill. Se há ditaduras que toleram a liberdade econômica e governos autocráticos que mantêm o verniz democrático por meio das eleições, nenhum regime antiliberal tolera a liberdade de expressão.
O paradoxo é ver a mãe de todas as liberdades tisnada pela marotagem ideológica de nosso tempo. De um lado, certos personagens que se aliam em sua defesa e parecem, para muitos, o próprio avesso do princípio – de Elon Musk a Jair Bolsonaro, passando por Donald Trump, não são poucos os extremistas que se aproveitam do mundo aparentemente sem lei das plataformas digitais para irresponsavelmente difundir desinformação, arruinar o debate público e mobilizar exércitos de militantes à custa do medo e da deslegitimação das instituições. De outro lado, sob o pretexto de resguardar a democracia, adotam-se o arbítrio, a invenção de tipos penais e a criminalização do próprio exercício das liberdades individuais. O resultado é o mesmo: o enfraquecimento das liberdades e a desmoralização das instituições.
O Brasil pode inspirar-se em caminhos distintos adotados mundo afora para regular as plataformas digitais – uma legislação mais dura como a da União Europeia ou mais liberal como a norte-americana. Mas em nenhum desses modelos o Estado impõe restrições à liberdade de expressão com base no conteúdo, por mais imoral que seja. Salvo raríssimas exceções, também adotam um limite claro: aquilo que a própria Constituição define como crime no mundo real. A lei ainda é o melhor lenitivo contra a incúria ou a má-fé de agentes do poder público, de políticos extremistas ou de lideranças digitais que usam a própria defesa da democracia e da liberdade para subvertê-las. Fonte: https://www.estadao.com.br
A ditadura militar e os indígenas
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Comissão Nacional da Verdade apontou mais de 8.000 indígenas mortos na ditadura
Coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental - Kanindé e do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia
Presidida por Enea Stutz e Almeida, Comissão de Anistia julga casos de repressão a indígenas na ditadura Gabriela Biló/FolhapressMAIS
A Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos analisou na terça-feira (2) os primeiros pedidos de reparação coletiva da história do país. No marco dos 60 anos do golpe, o Estado brasileiro reconheceu pela primeira vez a culpa na perseguição, tortura e morte de indígenas durante a ditadura militar, com anistia política aos povos guarani-kaiowás e krenaks.
Os pedidos de reparação coletiva são uma novidade e foram incluídos no regimento da comissão em 2023. Eles não geram ressarcimento financeiro, mas, no caso dos indígenas, podem representar uma nova etapa na garantia de direitos a essas comunidades, com a retificação de documentos, a inclusão no SUS ou avanços no processo de demarcação de terras.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) trouxe a público uma parte cruel e escondida da história: os graves crimes cometidos contra os povos indígenas. Um desses crimes foi a criação de um centro de detenção indígena, na cidade de Resplendor (MG), o "Reformatório Krenak". O reformatório aprisionou e torturou não apenas indígenas krenaks mas diversas outras etnias, entre elas os pataxós, impondo restrições às suas práticas ancestrais sob a vigilância dos militares.
Na Amazônia, o projeto do regime militar era de ocupação e "desenvolvimento", em uma época em que se propagava que a região era um vazio populacional e um "inferno verde". A herança dessa visão pode ser vista nas esferas das estruturas de poder criadas para "desenvolver" a região, nos impactos ambientais causados por grandes obras sem estudo prévio e na violação dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Os waimiri-atroaris, por exemplo, tiveram 80% do seu povo dizimado durante a abertura da rodovia BR-174.
A CNV apontou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura militar. O relatório Figueiredo expõe que entre as formas de tortura houve "caçadas humanas", promovidas com metralhadoras e dinamites (atiradas de aviões), contágios propositais de varíola em povoados isolados e entrega de açúcar misturado ao veneno estricnina. As cicatrizes e os impactos da ditadura podem ser sentidos até hoje na vida dos povos indígenas.
Por isso reproduzo a fala da deputada Célia Xakriabá no julgamento: "Quando falam que os povos indígenas são atrasados, digo que é atrasado também o Estado brasileiro, que só agora, em pleno 2024, vem pedir perdão aos povos indígenas pelas mortes e atrocidades cometidas contra nós na ditadura. É importante pedir perdão, mas é crucial não continuar assassinando os povos indígenas, pois a reparação neste momento é pensar na demarcação". Memória, justiça, reparação e demarcação para os povos indígenas! Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
A data que nunca podemos esquecer
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Em abril de 1964 começava o longo período marcado pela derrubada da frágil democracia brasileira implantada pela Constituição de 1946
Por Flávio Tavares
Existem datas que, pelos malefícios ou maldades provocados, jamais podem ser esquecidas. Uma delas é o 1.º de abril de 1964, que instituiu uma ditadura que durou 21 anos e completou 60 anos há poucos dias.
Não pretendo substituir-me à ampla e minuciosa rememoração daqueles acontecimentos publicada dias atrás por este jornal, mas relembrar certos períodos e fatos ocorridos ou que eu próprio presenciei. Eu era jornalista em Brasília e recordo com nitidez a sessão do Congresso Nacional em que o senador-presidente, sem qualquer debate, declarou “vaga” a Presidência da República – numa sessão em plena madrugada e que durou no máximo dez minutos. O pretexto invocado fora uma carta ao Congresso em que o então chefe da Casa Civil informava que o presidente da República iria transferir o governo para Porto Alegre, “em vista dos últimos acontecimentos militares”.
Consumava-se, assim, a tentativa de dar aparência legal ao levante militar iniciado em 31 de março em Minas Gerais, pelo general Mourão Filho. Era o começo de um longo período, marcado pela derrubada da frágil democracia na qual vivia o Brasil e implantada pela Constituição de 1946, após a destituição de Getúlio Vargas no ano anterior.
Daí em diante, ocorreram atos nefastos ao longo de mais de duas décadas. Começaram com prisões a esmo e a cassação de mandatos parlamentares ou a tortura como método de interrogatório dos presos políticos, e logo a censura na imprensa, rádio e televisão. Tudo se fazia por meio dos “Atos Institucionais” impostos pelos comandos do Exército, da Marinha e Aeronáutica. Era o início da ditadura militar, que se ampliou com o Ato Institucional número 2, ao extinguir os partidos políticos e anular a projetada eleição presidencial de 1965.
Os golpistas protestavam contra as “reformas de base”, especialmente contra a reforma agrária e a reforma financeira e fiscal, que eles apresentavam como a “comunização do País” e o início da “extinção da propriedade privada”. O pretexto fora o comício de 13 de março no Rio de Janeiro, em que o presidente João Goulart anunciou a estatização das refinarias privadas e a desapropriação das áreas rurais não cultivadas junto das rodovias federais.
Dias antes, em São Paulo, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu dezenas de milhares de pessoas (encabeçadas por dona Leonor de Barros, esposa do então governador Adhemar de Barros) para protestar contra o governo federal. Já pré-candidato à Presidência da República, o governador paulista era conhecido pelo lema “rouba, mas faz”.
A pregação do sacerdote irlandês-americano Patrick Peyton, vindo ao Brasil para preparar a marcha, mostrava a escondida influência estrangeira nos acontecimentos.
Anos depois do golpe, a historiadora Phyllis Parker descobriu, nos arquivos da CIA e do Departamento de Estado, a Operação Brother Sam, que descrevia a participação americana no golpe. Naqueles tempos, em pleno auge da guerra fria, a paranoia anticomunista dominava os Estados Unidos e o mundo Ocidental. Em meu livro 1964 – O Golpe, exponho parte daquela documentação, que agora não cabe detalhar.
Mostro aqui, no entanto, um fato que define a raiz do movimento golpista. A esquadra americana partiu da base naval de Norfolk, com o porta-aviões Forrestal à frente, com destino a Santos, para intervir no Brasil. Indago: o porta-aviões não indicaria até um eventual bombardeio aéreo?
Dia 2 de abril, a esquadra recebeu ordem de voltar, pois o presidente João Goulart tinha desistido de resistir e o movimento golpista já havia triunfado.
Meses antes do golpe, o embaixador Lincoln Gordon (em reunião com o então presidente John Kennedy) tinha logrado substituir o adido militar dos EUA no Brasil pelo coronel Vernon Walters, que falava perfeitamente nosso idioma pois fora oficial de enlace dos EUA com as tropas do Brasil durante a 2.ª Guerra na Itália. Lá, fez-se íntimo do então coronel Castello Branco, seu colega no lado brasileiro.
Castello Branco foi o primeiro ditador, eleito pelo Congresso como candidato único numa verdadeira simulação em que o voto era cantado publicamente sob ameaça de cassação do mandato. Até o ex-presidente e então senador Juscelino Kubitschek votou em Castello, que, meses depois, cassou seu mandato parlamentar.
Desde a consolidação do golpe, incorporou-se ao nosso idioma o não usual verbo “cassar”, nunca com o sentido de “caçar” animais ou criminosos, mas de terminar com mandatos parlamentares ou suspender direitos políticos ao longo de dez anos.
O golpe no Brasil serviu de modelo para que em diferentes países da América do Sul ocorressem movimentos militares semelhantes, em que as Forças Armadas assumiram o poder político e aplicaram todo horror possível. Os mais notórios golpes de Estado ocorreram no Chile e na Argentina e, logo, se estenderam a outras nações.
Por tudo isso (além de outros detalhes), os 60 anos do golpe militar não podem ser esquecidos e são uma data a sempre lembrar.
*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Fonte: www.estadao.com.br
Golpista até o fim
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Golpista até o fim
Depoimentos dos ex-chefes do Exército e da Aeronáutica à PF não dão margem a dúvidas: Brasil esteve à beira da ruptura nas mãos de um liberticida incorrigível. Que isso não saia barato
O Brasil esteve à beira de um golpe de Estado nos estertores do governo de Jair Bolsonaro. Já não se trata mais de uma conjectura ou de um mero exagero retórico. Um golpe para impedir a posse de Lula da Silva como presidente da República legitimamente eleito foi uma possibilidade real, como ficou claro a partir dos depoimentos dos ex-comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, prestados à Polícia Federal (PF) no início de março.
A julgar pelo que disseram os ex-comandantes, a ruptura do regime democrático foi tramada por Bolsonaro sem recurso a meias palavras. De forma direta, o ex-presidente considerou empregar meios violentos para fazer letra morta da Constituição e se aferrar ao poder. É assim, como uma trama concreta, que a tentativa de golpe deve ser tratada pelas autoridades incumbidas de investigar, processar e julgar Bolsonaro e todos os sediciosos que a ele se associaram – até as últimas consequências.
São estarrecedoras as revelações dos militares, trazidas a público agora que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes decidiu retirar o sigilo das investigações. Aos policiais, Freire Gomes afirmou que Bolsonaro convocou reuniões no Palácio da Alvorada com a cúpula das Forças Armadas após a derrota no segundo turno para apresentar aos comandantes “hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e estados de defesa e sítio em relação ao processo eleitoral”.
Baptista Júnior, por sua vez, relatou à PF que, diante da insistência de Bolsonaro em encontrar meios para subverter a ordem democrática, por pura irresignação com o resultado da eleição, o então comandante do Exército chegou a ameaçá-lo de prisão. “O general Freire Gomes afirmou que, caso (Bolsonaro) tentasse tal ato, teria de prender o presidente da República”, disse o brigadeiro, que, assim como Freire Gomes, foi ouvido pela PF na condição de testemunha.
Para além do fato de terem chegado ao topo da carreira em suas respectivas Forças, Freire Gomes e Baptista Júnior estiveram no centro nevrálgico da conspiração bolsonarista. Dessa posição de destaque, o general e o brigadeiro foram determinantes para o fracasso do golpe, independentemente das razões que os tenham motivado a agir como agiram. Agora, como testemunhas, têm servido ao País para elucidar a anatomia do golpe urdido. Por isso o peso de suas palavras.
Que Bolsonaro é um ressentido com a democracia e um golpista de marca maior, já era fato público e notório desde muito antes de ele cogitar concorrer à Presidência da República. Seus quatro anos de mandato como chefe de Estado e de governo só deixaram claro para um público mais amplo a sua índole liberticida. A natureza golpista de Bolsonaro, no entanto, não diminui a importância das revelações feitas por seus ex-comandantes militares – ao contrário.
Também em depoimento à PF, o presidente do PL, o notório Valdemar Costa Neto, revelou as pressões que teria sofrido de Bolsonaro para que o partido bancasse com dinheiro público um relatório fajuto lançando suspeitas contra o sistema eleitoral. Fica claro, assim, que Bolsonaro procurou se cercar de meios políticos e militares para levar a cabo a intentona.
Inconformado com a derrota eleitoral, Bolsonaro se moveu para pôr tropas armadas nas ruas a fim de sustentá-lo no cargo, sob a falsa justificativa de que a eleição não teria sido limpa. Tramou prender autoridades políticas e judiciárias. Por óbvio, teria lançado suas garras também sobre a imprensa profissional e independente. No limite, Bolsonaro assumiu o risco de derramar o sangue de concidadãos em nome de um projeto pessoal de poder. Um doidivanas, assim como os fardados que anuíram com essa loucura.
Eis a dimensão da sordidez. Ao tempo que fazia chegar ao País a informação de que estaria “deprimido” por não ter sido reeleito, Bolsonaro, na verdade, estava maquinando o fim da democracia, cuja reconquista tanto custou aos brasileiros. Que isso não saia barato. Fonte: https://www.estadao.com.br
Dezenas morrem durante entrega de ajuda caótica em Gaza em meio a disparos de Israel e atropelamentos
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Hamas diz que Israel disparou contra civis que esperavam para receber alimentos, matando 112 pessoas; Exército israelense culpa 'empurra-empurra, pisoteamento e atropelamentos'
Vídeo divulgado pelo Exército de Israel mostra dezenas de pessoas em torno de caminhões de ajuda humanitária na Faixa de Gaza — Foto: Divulgação
Por O Globo e agências internacionais — Gaza
Autoridades palestinas acusaram Israel de disparar e matar dezenas de pessoas em meio a uma entrega caótica de ajuda humanitária na Faixa de Gaza na madrugada desta quinta-feira, em um incidente que, segundo o Ministério da Saúde do enclave, deixou ao menos 112 mortos e 760 feridos. Aliados de Israel, os EUA pediram uma investigação, e o presidente americano, Joe Biden, alertou que o episódio deve complicar os esforços por um cessar-fogo para o conflito de quase cinco meses. A mesma advertência foi feita pelo grupo terrorista Hamas, que controla a Faixa de Gaza desde 2007.
Israel e o lado palestino apresentaram relatos diferentes de como as vítimas morreram na Cidade de Gaza, no norte do território. Testemunhas e sobreviventes disseram que disparos atingiram multidões e os caminhões de ajuda, e Mohammed Salha, diretor interino do hospital al-Awda, que tratou 161 pessoas, afirmou que a maioria delas parece ter sido atingida por tiros.
O presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, que controla o território ocupado da Cisjordânia, descreveu o incidente como um "massacre horrível conduzido pela ocupação israelense contra pessoas que esperavam caminhões de ajuda". Já o Egito classificou o episódio como “um ataque desumano israelense” e pontuou que havia “civis palestinos desarmados”. “Nós consideramos atacar cidadãos pacíficos que correm para pegar parte da ajuda um crime vergonhoso e uma flagrante violação do direito internacional”, afirmou em comunicado.
Em um comunicado, as Forças Armadas de Israel afirmaram que as mortes decorreram de uma confusão durante a entrega da ajuda, com os soldados somente tendo disparado para o ar e contra as pernas de um grupo de residentes que se afastou do comboio humanitário e se aproximou de uma unidade militar israelense. Em uma entrevista coletiva mais tarde, o porta-voz das Forças Armadas de Israel, Daniel Hagari, afirmou, porém, que só foram feitos disparos de alerta para dispersar a multidão, e disse que aviões que sobrevoavam a área não realizaram ataques aéreos.
Segundo Hagari, as Forças Armadas coordenavam um comboio com 38 caminhões com ajuda humanitária vindo do Egito, prevista para ser distribuída por prestadores de serviço privado após entrada no território pela passagem de Kerem Shalom. O primeiro caminhão entrou no corredor humanitário às 4h40 (horário local), disse o porta-voz, em direção ao norte de Gaza.
— Nossos tanques estavam lá para garantir a segurança do corredor humanitário para o comboio de ajuda — afirmou Hagari. — Nossos veículos áereos não-tripulados [drones] estavam no ar para dar às nossas forças uma clara visão de cima.
No comunicado, o Exército afirmou que quando o comboio chegou ao entroncamento na Cidade de Gaza, "residentes cercaram os caminhões para saquear os suprimentos que eram entregues. Como resultado do empurra-empurra, pisoteamento e atropelamento pelos veículos, dezenas de palestinos foram mortos e feridos". De acordo com Hagari, isso ocorreu às 4h45.
Ainda segundo o comunicado, os caminhões continuaram se dirigindo para o norte da Faixa de Gaza e, ao chegar ao bairro de Rimal, surgiram relatos de que indivíduos armados dispararam contra os veículos e os saquearam. Nesse momento, diz o Exército de Israel, algumas pessoas na multidão começaram a se aproximar de uma unidade das Forças Armadas de Israel na área, o que fez os soldados fazerem disparos de alerta para o ar antes de atirar para atingir as pernas daqueles que continuavam avançando em sua direção.
À Reuters, uma fonte israelense afirmou, previamente ao comunicado do Exército, que as tropas de Israel abriram fogo contra “várias pessoas” que cercaram o comboio porque se sentiram ameaçadas.
Forças Armadas de Israel divulgam vídeo mostrando multidões durante entrega de ajuda que deixou mortos
Testemunhas relataram à AFP que viram milhares de pessoas correndo na direção dos caminhões de ajuda humanitária que se aproximavam. Uma pessoa afirmou que os veículos com as doações chegaram “muito perto de alguns tanques do Exército israelense que estavam na área, e milhares de pessoas simplesmente avançaram sobre os caminhões”. Nesse momento, afirmou, “os soldados dispararam contra a multidão”.
Negociações sobre cessar-fogo
Uma nova proposta tem sido debatida entre as autoridades israelenses, cataris, americanas e egípcias. Segundo a proposta, o Hamas deve libertar 40 reféns, incluindo mulheres, crianças e jovens menores de 19 anos, além de pessoas com mais de 50 anos e doentes. Já Israel libertaria cerca de 400 prisioneiros palestinos e não os prenderia mais. A proposta ainda permitiria que hospitais e padarias em Gaza fossem reparados e que 500 caminhões de ajuda humanitária entrassem no enclave por dia.
“As negociações conduzidas pela liderança do movimento não são um processo aberto à custa do sangue do nosso povo”, disse o grupo em referência às mortes desta quinta-feira, afirmando que Israel seria o responsável por qualquer fracasso nas tratativas.
Após quase cinco meses de guerra entre Israel e Hamas, as Nações Unidas estimam que 2,2 milhões de pessoas, a grande maioria da população, estejam ameaçadas pela fome em Gaza, especialmente no norte, onde destruição, combates e saques tornam quase impossível o transporte de ajuda humanitária. Também nesta quinta-feira, o Ministério da Saúde de Gaza anunciou que mais de 30 mil pessoas morreram como consequência das operações israelenses no enclave desde o início da guerra, em 7 de outubro, desencadeada com o ataque do Hamas a Israel que deixou ao menos 1.100 mortos e cerca de 240 reféns.
Segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês), quase 2,3 mil caminhões de ajuda entraram na Faixa de Gaza em fevereiro, com uma média de 82 veículos por dia. O número é 50% menor que em janeiro — antes do conflito atual, quando as necessidades da população eram menos urgentes, cerca de 500 caminhões entravam no enclave todos os dias. Fonte: https://oglobo.globo.com
Começou o pós-Bolsonaro
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Em ato na Paulista, Bolsonaro se limitou a pedir anistia, enquanto um de seus principais herdeiros, Tarcísio, já o tratava como um retrato na parede, candidatando-se a herdar seus
A manifestação bolsonarista de anteontem na Avenida Paulista serviu para evidenciar o contraste entre os objetivos de Jair Bolsonaro e os de quem pretende herdar seu espólio eleitoral. Com um discurso politicamente anódino, Bolsonaro parecia ter-se dado por vencido de que deverá, mais cedo ou mais tarde, prestar contas à Justiça em razão das cada vez mais robustas evidências de que urdiu um golpe para permanecer no poder, restando-lhe apenas apelar por uma improvável anistia. Por outro lado, ao dizer que “Bolsonaro não é mais um CPF, não é uma pessoa, ele representa um movimento”, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, tratou o ex-presidente, na prática, como um retrato na parede. Sendo ele mesmo perfeitamente elegível, ao contrário de seu padrinho político, Tarcísio claramente se apresentou como candidato a líder desse movimento – numa disputa contra outros vários presentes ao lado de Bolsonaro na Paulista.
Se os termos da convocação para o ato já não escondiam o propósito de Bolsonaro, o discurso do ex-presidente em cima de um trio elétrico reforçou sua intenção de explorar o público presente na Paulista para afrontar, a um só tempo, a História, a Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal a fim de escapar da cadeia. “Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil”, disse Bolsonaro, referindo-se à anistia que pavimentou o caminho para a redemocratização do País. “O que eu busco é a pacificação. É, por parte do Parlamento, uma anistia para aqueles pobres coitados presos em Brasília”, completou, tratando como “pobres coitados” a malta ensandecida que vandalizou física e moralmente as instituições democráticas no 8 de Janeiro.
Por óbvio, Bolsonaro não dá a mínima para as agruras no cárcere experimentadas por cada um daqueles homens e mulheres, jovens e idosos, que, em seu nome, passearam naquele dia infame pelos tipos penais previstos na Lei 14.197/2021, que trata da defesa do Estado Democrático de Direito. Como sempre, Bolsonaro está preocupado apenas com seu destino – no máximo, com os de seus familiares e aliados próximos. Nesse sentido, é bastante sintomático que Bolsonaro tenha agradecido a seus apoiadores por terem proporcionado “uma fotografia para o mundo, uma imagem para o Brasil e para o mundo do que é a garra do povo brasileiro”. Era só com isso que Bolsonaro estava preocupado.
A política que faltou no discurso de Bolsonaro sobrou no de Tarcísio de Freitas. O governador paulista, único a quem foi dada a palavra entre os governadores presentes na manifestação – Romeu Zema (MG), Ronaldo Caiado (GO) e Jorginho Mello (SC) –, fez um breve inventário de algumas das alegadas realizações da gestão Bolsonaro. Logo em seguida, destacou que os milhares de manifestantes reunidos na Avenida Paulista lá estavam para “celebrar o verde e amarelo, o amor ao nosso país e o Estado Democrático de Direito”, sendo fundamental “entender os seus desafios”.
O poder de mobilização de Bolsonaro é incontestável, como mostra a multidão reunida na Paulista. Mas, enquanto o ex-presidente se limita a vociferar contra o “comunismo” em cima de um carro de som e a se dizer “perseguido”, Tarcísio e outros já estão com os olhos no futuro e seus “desafios”.
Essa direita se une por Bolsonaro hoje na exata medida da necessidade de preservar para si o potencial eleitoral do “mito” – mas é bom lembrar que o governador paulista, tão agradecido a seu padrinho, é o mesmo que não se sentiu constrangido em estabelecer um diálogo construtivo com o presidente Lula da Silva, demonizado pelos extremistas de camisa da seleção brasileira, e em apoiar a reforma tributária à revelia do ex-presidente. Ou seja, os prováveis herdeiros de Bolsonaro, ao mesmo tempo que compreendem as demandas – muitas das quais legítimas – dos que foram à Paulista, oferecem a superação do radicalismo bolsonarista, não só para ampliar o eleitorado fora da extrema direita, mas, sobretudo, para deixar claro seu caráter democrático – essencial para a pacificação que Bolsonaro só quer da boca para fora. Fonte: https://www.estadao.com.br
Bolsonaro – o tempo das consequências
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Bolsonaro – o tempo das consequências
A aposta de Bolsonaro e Valdemar só se sustenta porque justiça, imprensa e adversários ainda não param de falar deles. Mas até isso está em perigo
Por Fernando Gabeira
Com o resultado da Operação Tempus Veritatis (tempo da verdade) e outros indícios recolhidos pela Polícia Federal (PF), é possível dizer que o material terá sérias consequências jurídicas para Bolsonaro e alguns dos seus mais próximos apoiadores.
Minuta de golpe, gravação completa de uma reunião ministerial, troca de mensagens comprometedoras, monitoramento do ministro Alexandre de Moraes, que deveria ser preso e levado para Goiânia – tudo isso sustenta a narrativa de um plano de golpe, que deveria acontecer antes das eleições.
O golpe não aconteceu no ano de 2022. No entanto, ele viria a ser tentado, de outra forma, no 8 de janeiro de 2023. Um dos desafios da investigação é precisamente estabelecer os vínculos entre o que se planejou e o que aconteceu de fato.
Até o momento, uma das indicações é o levantamento de R$ 100 mil que foi solicitado ao tenente-coronel Mauro Cid. O dinheiro foi usado? Serviu para financiar ônibus e outros itens da logística da chamada “Festa da Selma”?
O fundamento de tudo, desde o princípio das maquinações, é a falsa suposição de que as urnas eletrônicas estavam viciadas.
Bolsonaro antevia a derrota. Na própria reunião de julho de 2022 ele afirma que sua vitória em 2018 foi um golpe de sorte. Na verdade, usa um termo fisiológico, mas o sentido é este: a vitória não se repetirá com o tipo de eleições que temos.
Essa conclusão levou facilmente a outra: é preciso fazer algo antes das eleições, virar a mesa, como chegou a formular o general Augusto Heleno.
As consequências jurídicas desta aventura golpista vão depender do grau de maturidade da preparação e dos vínculos com a tentativa desesperada do 8 de janeiro. Não se perdoam golpes fracassados; a evidente incompetência não funciona como atenuante.
Assim como nos Estados Unidos, a sucessão de processos criminais mantém Bolsonaro e Trump em evidência. Aqui, como lá, não há indicações de que isso significa perda de popularidade. A diferença essencial é que no Brasil os acusados são impedidos de disputar as eleições. Bolsonaro já está fora em 2026, mas corre o risco de uma ausência mais longa.
A tentativa de golpe pode resultar em prisão. Mas este processo, a julgar pelo que dizem nos bastidores os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), teria de ser completo. Em outras palavras, seria necessário julgamento com amplo direito de defesa e esgotamento de todos os recursos, em caso de condenação.
A justiça tem seu tempo quando transita nas alturas, uma vez que os manifestantes de 8 de janeiro já estão, em parte, condenados a altas penas de prisão.
Mas a cautela tem suas razões. Bolsonaro percebeu, pelo destino de Trump, que processos não derrubam popularidade, necessariamente. Ele deve se apoiar nela para contestar as acusações e, se possível, utilizá-la para ganhar mais simpatia. Assim interpreto a disposição de Bolsonaro de convocar manifestação em São Paulo.
Mas as consequências políticas não param aí. Elas são importantes no ano de eleições municipais. O PL, partido de Valdemar Costa Neto, tem uma fortuna para gastar: mais de R$ 1 bilhão. No entanto, o próprio Valdemar, presidente do partido, e seu mais importante cabo eleitoral, Bolsonaro, estão proibidos de entrar em contato, por força das investigações.
É claro que políticos sempre acham um caminho para contornar obstáculos. Mas não será nada fácil fazer uma campanha com a PF nos calcanhares. Não que a PF esteja interessada em eleições municipais. Mas os movimentos naturais neste momento político ficam restritos pelo próprio medo de estar sabotando as investigações.
Também não se sabe como essa situação do PL vai repercutir em toda a cadeia de pequenos municípios que acompanham a vida nacional também pelos grandes meios de comunicação.
Valdemar fez uma aposta de poder ao incorporar Bolsonaro: mais votos, mais deputados, mais dinheiro do Fundo Partidário. Seu partido era de direita, meio geleia geral, como os outros. Não calculou, entretanto, os prejuízos de encampar a extrema direita e sua luta antidemocrática contra as urnas eletrônicas, envolvendo dinheiro e energia do partido para fortalecer a tese de Bolsonaro totalmente insustentável. A própria Advocacia-Geral da União (AGU) bolsonarista produziu um relatório afirmando que não havia nada de errado com as urnas.
Valdemar é um jogador de grandes tacadas. Ganhar ou perder faz parte do jogo. Mas, parafraseando o poeta, há uma hora em que todos os cassinos se fecham.
A aposta de Bolsonaro e Valdemar só se sustenta porque justiça, imprensa e adversários ainda não param de falar deles. Mas até isso está em perigo, depois da chegada das consequências.
É inegável que a extrema direita tem uma base no Brasil, uma espécie de gênio que não volta mais para a garrafa. Mas é muito difícil chegar a algum lugar por meio de uma sucessão de derrotas e lances equivocados. Esse privilegio só nos dá a fé religiosa: por meio dela, com muitos sofrimentos, conquistamos o reino dos céus. Não pode haver algo mais distante dele do que a Papuda.
*JORNALISTA
Fonte: https://www.estadao.com.br
Pastores silenciam sobre operação contra Bolsonaro; 'covardes', diz Malafaia
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Aliados do ex-presidente em 2022, líderes religiosos falam em afastamento gradual
SÃO PAULO
A operação da Polícia Federal que atingiu Jair Bolsonaro (PL) e alguns de seus aliados mais próximos tem sido apontada como porta de saída por pastores que se aliaram ao ex-presidente até outro dia, mas não veem mais vantagem nessa relação.
O afastamento não seria algo imediato, com declarações públicas contra Bolsonaro. Até porque ninguém ali morre de amores pelo atual titular do Palácio do Planalto, Lula (PT), e parcerias fisiológicas do passado seriam mais difíceis de justificar perante a polarização mais radical vista nos últimos anos, sobretudo após a eleição de 2018.
A Folha conversou com líderes evangélicos que apoiaram Bolsonaro naquele ano e em 2022, inclusive indo em reuniões com o então chefe do Executivo e o convidando para seus púlpitos. O sentimento mudou. Nas palavras de um deles, as medidas autorizadas por Alexandre de Moraes, que podem implicá-lo numa trama golpista que incluía prender o próprio ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e convocar novas eleições que invalidariam a vitória de Lula, complicam efetivamente a situação de Bolsonaro ante essa liderança cristã.
Um grupo de WhatsApp que reúne vários desses pastores graúdos, o Aliança, continuava em silêncio sobre a operação policial horas depois de agentes apreenderem o passaporte de Bolsonaro. Em conversas privadas, um ou outro trocavam impressões, pedindo orações para o nome que endossaram com entusiasmo no pleito do ano retrasado.
Falar abertamente ninguém quer, com exceção do pastor Silas Malafaia, o único da turma que continuou ao lado do ex-presidente após a derrota nas urnas e consecutivos reveses judiciais. À Folha Malafaia chamou os colegas de "um bando de covardes e cagões históricos".
O líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo contou ainda que outros pastores têm evitado responder falas suas criticando Moraes. Especula que seja por temerem uma associação com ele, que enxergariam como um alvo em potencial da Justiça. "Você sabia que, de um ano pra cá, desde que venho botando pra derreter o Alexandre, várias lideranças não respondem mais vídeos que posto, com medo de eu ser preso e pegarem meu celular?"
Malafaia diz ainda que em 2022 aconselhou Bolsonaro a invocar o artigo 142 da Constituição, que trata do papel das Forças Armadas na República. Bolsonaristas defendiam que esse trecho da Carta dá respaldo para uma eventual intervenção militar, tese rejeitada por instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e boa parte dos parlamentares, mesmo muitos que comungavam com o bolsonarismo.
O pastor também define como "estúpido e esdrúxulo o que Alexandre vem dizendo o tempo todo" e diz que, se prezasse pela transparência, Moraes nem sequer deveria ter presidido o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) durante a eleição, "porque foi secretário de Segurança de Alckmin, candidato a vice numa chapa". O hoje ministro do STF foi nomeado à secretaria por Geraldo Alckmin, então governador paulista e agora vice-presidente de Lula, em 2015.
Malafaia, contudo, tem sido cada vez mais voz isolada em seu segmento religioso. Na turma dos pastores que se posicionaram publicamente em 2022, muitos ainda reservavam críticas a Lula, como ao condenar declarações do petista que, em vez de pacificar o país, colocariam mais lenha na polarização nacional. Mas já vinham ensaiando uma trégua, com elogios à economia sob a batuta lulista, por exemplo.
Portais voltados ao público evangélico, como o Pleno News, deram destaque à operação contra Bolsonaro. O tom é mais simpático ao ex-presidente.
A bancada evangélica, que empossou na quarta (7) um aliado de Bolsonaro em sua liderança, o deputado Eli Borges (PL-TO), ainda não se pronunciou. Internamente, integrantes avaliam que um posicionamento pró-Bolsonaro pode ser temeroso, já que boa parte do bloco é composta por representantes de partidos de centro que se alinharam ao governo Lula.
Já Borges diz à reportagem que, "no momento certo", a frente deve se posicionar. "Vou tomar mais pé da situação."
Para o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), ex-presidente da bancada, Moraes está em busca "da cereja do bolo, que é a prisão do Bolsonaro". Membro da igreja de Malafaia, o parlamentar diz que operações como a desta quinta são vistas nas igrejas como perseguição, "e isso só fortalece" o ex-presidente.
Uma pastora que se pronunciou a favor do investigado foi a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que integrou a Esplanada bolsonarista. Pela manhã, disse que "não há outro sentimento que não seja o de indignação" com os desdobramentos judiciais e pediu: "Que Deus tenha misericórdia do nosso país". Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
Ricardo Nunes homenageou padre alvo de operação da Polícia Federal
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Prefeito de SP exaltou combate à 'ideologia de gênero'; pároco é investigado por suposta participação em plano golpista pró-Bolsonaro
SÃO PAULO
Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB) apresentou em 2016, como vereador, uma homenagem ao padre José Eduardo de Oliveira, que nesta quinta-feira (8) foi alvo de operação da Polícia Federal que investiga uma tentativa de golpe de Estado para manter Jair Bolsonaro (PL) no poder.
Na decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o pároco é citado como membro do núcleo jurídico da trama, que supostamente auxiliava na elaboração de minutas de decretos com fundamentação jurídica e doutrinária.
Segundo a PF, o padre possui um site "no qual foi possível verificar diversos vínculos com pessoas e empresas já investigados em inquéritos correlacionados a produção e divulgação de notícias falsas".
Em 2016, Nunes justificou a concessão da salva de prata, maior honraria da Câmara Municipal de São Paulo, pela atuação do padre contra o que chama de "ideologia de gênero". O termo foi cunhado por setores conservadores da Igreja Católica nos anos 1990 e é utilizado em contraposição a discussões sobre identidade de gênero, diversidade e orientação sexual.
Nas redes sociais, o emedebista escreveu que a homenagem se deu pelo "excelente trabalho que desenvolveram junto ao Plano Nacional e Municipal da Educação, valorizando a família contra a ideologia de gênero".
A homenagem promovida por Nunes foi alvo de protesto de militantes LGBTQIA+ na Câmara.
Candidato à reeleição, o emedebista conta com o apoio de Bolsonaro, que viu a pré-candidatura de seu aliado Ricardo Salles (PL-SP) naufragar. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br
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