Com ele, mais do que com Bolsonaro, o uso das redes tornou-se um instrumento imprescindível de qualquer campanha, presentes e futuras

 

Por Denis Lerrer Rosenfield

Menos fígado, mais inteligência. Menos julgamentos apressados, mais análise. O surgimento e a força da candidatura de Pablo Marçal a prefeito de São Paulo exigem a compreensão desse fenômeno, o que pressupõe abandonar juízos açodados, se não preconceituosos, como se fosse ele uma espécie de perversão da boa política, quando essa se tornou no Brasil, nos últimos anos, ela mesma pervertida.

Partidos políticos afastaram-se cada vez mais de sua função de representação dos interesses da sociedade em sua diversidade, tornando-se máquinas de atendimento dos seus próprios interesses, paroquiais e corporativos, quando não instrumentos de corrupção. O espetáculo escabroso das emendas parlamentares, seu montante assustador e sua falta de transparência apenas distancia ainda mais os cidadãos dos seus representantes. Um pilar da democracia mostra-se, assim, periclitante. Os candidatos a prefeito, via de regra, são incapazes, inclusive, de apresentar programas e ideias viáveis para suas respectivas cidades. Agora, dizer que Marçal vai contra a boa política, seja lá o que isso signifique, apenas reforça a ausência de compreensão do que essa mesma política se tornou.

Um candidato foi fisicamente agredido em uma cena propriamente ridícula. O agressor, aliás, é candidato do PSDB, partido que até poucos anos atrás foi o mais importante, com um histórico impressionante de realizações. Seus políticos, especialmente em São Paulo, eram um exemplo para todo o País. Ora, é esse mesmo partido, em processo de franca decadência, que escolheu um personagem para prefeito buscado às pressas no mundo televisivo, como se fosse uma nova promessa de soerguimento partidário. Aliás, os outros candidatos não apresentaram nenhuma solidariedade com o agredido, tendo suas falas, hipocritamente, condenado a agressão para logo aduzirem o uso do “mas”, em argumentos que apenas justificavam o ataque.

Marçal rompe com a política tradicional tal como vinha sendo feita nas últimas décadas. Baseia-se essa em um tripé: coligações partidárias, financiamento eleitoral e partidário e tempo de rádio e televisão. Ora, o candidato contestador ameaça chegar ao segundo turno e, mesmo, ser prefeito de São Paulo, sem preencher nenhuma dessas condições. É candidato de um partido que nem representação parlamentar tem, não tendo se aliado a nenhum outro partido. Não usufrui tampouco de financiamento público, tendo de se virar com doações privadas ou uso de recursos próprios. O seu tempo de rádio e televisão é nulo, sendo ele o expoente de um novo meio de comunicação, as redes sociais, as quais sabe usar admiravelmente. Causa espanto que os outros candidatos não tenham se apercebido a tempo da importância desse novo meio de comunicação, contentando-se com os meios tradicionais.

O grande ativo de Pablo Marçal consiste no uso das mídias sociais. Excelente comunicador, exímio nos cortes das gravações, volta-se exclusivamente para isso, talvez em excesso, o que não deixa de produzir efeitos deletérios, como quando, um pouco apressadamente, colocou-se como vítima. É como se tivesse sofrido uma grande fratura. Não colou! A sua imagem de homem forte perdeu aderência. Entretanto, o que deve ser ressaltado é que, com ele, mais do que com Jair Bolsonaro, o uso das redes sociais tornou-se um instrumento imprescindível de qualquer campanha eleitoral, presentes e futuras. Os políticos que não compreenderem isso estarão fadados ao fracasso.

Há outro aspecto essencial que deve ser ressaltado em sua candidatura: a sua mensagem. Analistas têm frisado primordialmente seu perfil negativo, baseado na lacração, no ataque e em inúmeras agressões verbais. Em segundo plano tem ficado a enorme adesão que suas falas, melhor dito, ensinamentos têm produzido em seus seguidores e eleitores. Ele representa, melhor do que ninguém, um Brasil que quer crescer, onde as pessoas melhorarão seu nível de vida, preocupando-se principalmente com seu bem-estar social. As pessoas almejam melhores condições de vida, livres das amarras do Estado, podendo progredir por si mesmas. Não necessitam da bengala do Estado, não querem bolsas-esmola, mas espaço para sua livre iniciativa. São pessoas empreendedoras, que desejam melhores condições econômicas e sociais.

Não mais se contentam com políticas de esquerda, de assistencialismo à pobreza, que só tornam os cidadãos uma massa de manobra para esses partidos políticos. Entendeu esse novo público que o discurso para os pobres é miserável por si mesmo, tendo como objetivo meramente criar uma clientela partidária fiel, mesmo que revistam a sua narrativa de uma aparência humanitária. Almeja ele crescer por suas próprias mãos, sendo livre e independente para empreender. Essas pessoas não visam a pertencerem a um sindicato, atrelando-se a seus dirigentes, que, por sua vez, só perseguem seus próprios privilégios. Estão imbuídas do espírito capitalista da prosperidade. E elas se reconhecem em Marçal. Fonte: www.estadao.com.br

*É PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.

 

Trump se torna o centro da eleição

Em debate, Kamala Harris consegue transformar a disputa num referendo sobre o ex-presidente, e não sobre o atual, e ainda se livrou de ter de explicar seus planos, de resto desconhecidos

 

Na acirrada disputa pela presidência dos Estados Unidos, o contraste entre o primeiro e o segundo debates entre os candidatos não poderia ser maior. Há 50 dias, o presidente Joe Biden, postulante à reeleição pelo Partido Democrata, teve um desempenho tão desastroso que se viu obrigado a desistir da disputa. A nova candidata democrata, a vice-presidente Kamala Harris, já havia recolhido com sucesso, na convenção do partido, todos os votos democratas deixados pelo caminho. Foi em meio a uma disputa cabeça a cabeça que ela entrou no debate com Donald Trump – e venceu. Não por nocaute, mas com uma margem confortável de pontos.

O debate expôs as estratégias das campanhas. A dos republicanos é implicar Harris com o governo impopular de Biden e assustar os moderados com seu histórico de apoio a políticas radicais das elites esquerdistas, ou forçá-la a negá-las, e então denunciar sua inconsistência. Sobretudo, o maior temor dos estrategistas era que Trump não perdesse a calma. O principal desafio de Harris era mostrar aos eleitores um caráter sólido, apto a governar o país, depois, evitar comprometer-se com políticas que pudessem soar radicais e, por fim, expor a personalidade volátil e temerária de Trump.

Essa personalidade já foi naturalizada na opinião pública. Como candidato bem conhecido, Trump era o que tinha menos a perder, mas, o pouco que tinha, perdeu. Como candidata menos conhecida, Harris era quem tinha mais a ganhar, e ganhou. Considerando as duas estratégias, Harris conseguiu expor a vaidade de Trump. Trump fracassou em expor a vacuidade de Harris. Ele não conseguiu forçá-la a defender suas políticas. Ela o induziu a cair na provocação.

Como notaram os analistas do New York Times L. Lerer e R.J. Epstein: “Harris explorou habilmente a maior das fraquezas de seu oponente. Não o seu histórico. Não suas políticas divisivas. Não sua história de declarações inflamatórias. Ao invés disso, alvejou uma parte muito mais primitiva dele: seu ego”. Seja declarando que líderes mundiais dizem que ele é uma “vergonha”, seja sugerindo que sua fortuna não era a de um “self-made man”, mas de um herdeiro mimado, ela conseguiu a um tempo se esquivar de questões temerárias e forçar o adversário a submergir seus questionamentos mais pertinentes em surtos de fúria, hipérboles e digressões.

O maior exemplo foi num tema que deveria ser um prato cheio para Trump, quando os mediadores questionaram Harris por que só agora a gestão de Biden decidiu agir contra a imigração ilegal. Harris disse algo sobre seu histórico como promotora, e rapidamente virou o holofote para Trump, acusando-o de sabotar um projeto de lei anti-imigração. Mas o golpe de mestre foi questionar o tamanho de seus comícios “entediantes”. Trump queimou sua réplica fulminando sobre como seus comícios eram os mais “incríveis na história da política”.

A fala mais efetiva de Trump – “se você tem todas essas grandes ideias, por que não as pôs em prática nos três anos e meio de governo?” – deveria ter sido dita no começo, corroborada com dados, e repetida insistentemente ao longo do debate. Mas foi dita só no fim, sem contundência. Na defensiva, era como se ele fosse o incumbente e ela, a desafiante. Repetidas vezes Harris falou em “virar a página”: ela tem “planos” (embora nunca bem esclarecidos), ela é a “novidade”, o “futuro” – ele é só um velho rancoroso.

Esse foi não só o primeiro debate entre ambos, mas o primeiro encontro – e possivelmente será o último. Os candidatos voltaram aos seus casulos, e as estratégias estão traçadas. Trump manterá sua militância inflamada. Harris se esquivará de confrontos em entrevistas e se oferecerá como uma candidata normal contra um candidato caótico, transformando a eleição num referendo sobre Trump.

Fazendo as contas do debate, Trump certamente não ganhou eleitores. Provavelmente também não perdeu. A questão é se Harris ganhou ou não o favor dos indecisos. Eis outro grande contraste com o debate anterior: aquele mudou tudo, este possivelmente mudará pouca coisa. Mas, numa eleição tão apertada, esse pouco pode ser o que Harris precisa para levar o grande prêmio. Fonte: https://www.estadao.com.br

O 7 de Setembro será uma data como outra qualquer se não servir para profunda reflexão sobre o bom uso da liberdade da Nação como única via para um país mais auspicioso para todos

 

O Brasil celebra hoje 202 anos como país soberano. A Independência do então Reino de Portugal marcou a ruptura com o passado colonial e a afirmação de um povo que almejava traçar o próprio destino. É de um anseio por liberdade e progresso que se trata. O 7 de Setembro, portanto, será apenas uma data qualquer no calendário se não servir para que os cidadãos reflitam sobre as experiências coletivas acumuladas nestes mais de dois séculos e, principalmente, decidam que passos hão de ser dados pela Nação brasileira em direção a um futuro mais auspicioso para todos.

Esse salto verdadeiramente libertador jamais poderá ser dado em sua plenitude enquanto os cidadãos não enxergarem uns nos outros os traços de união que os fazem brasileiros acima de tudo. Nos últimos anos, como tristemente se constata, os atributos que os separam têm sido os mais realçados. O estímulo à cizânia foi covardemente instrumentalizado como um ativo político-eleitoral. Soluções de consenso para problemas graves que ainda mantêm o País aferrado ao atraso não raro sofrem sérias interdições em decorrência de animosidades fabricadas por quem, ao contrário, deveria pregar a união nacional em prol do bem comum.

Todo dia é dia de pensar no significado de ser independente, mas hoje particularmente. Ser independente não se restringe a uma mera declaração de autonomia, como aquela de 1822. É um exercício contínuo, diário, muitas vezes árduo e frustrante. Escolhas coletivas exigem da sociedade – de qualquer sociedade, não só a brasileira – maturidade política, social e econômica. A Independência que hoje se celebra significa, antes de tudo, a capacidade do povo de se autodeterminar com responsabilidade, vale dizer, com respeito às leis e à Constituição pactuadas em conjunto e, sobretudo, com respeito aos seus concidadãos.

Não se constrói um país genuinamente livre sem respeito às liberdades individuais e aos direitos e garantias fundamentais assegurados a todos pela Lei Maior. Isso se materializa em instituições sólidas e confiáveis, comprometidas com o Estado Democrático de Direito, e numa sociedade civil engajada na defesa dos valores republicanos. Contudo, o que se vê com frequência maior do que seria suportável são autoridades que se julgam acima das instituições que representam e uma sociedade cindida, incapaz de concertar consensos mínimos para o desenvolvimento do Brasil por nem sequer compreender que a miséria de uns é a falência de todos como nação.

É inescapável constatar que esse estado de coisas está instalado no País por força dos estímulos que as desavenças entre os cidadãos, inclusive entre familiares, têm recebido para que projetos políticos individuais – mesquinhos, portanto – se sobreponham aos grandes projetos nacionais. O nome de cada um desses patriotas de fancaria é sobejamente conhecido, de modo que para este jornal, nesta data nacional, interessa mais apelar à consciência cívica dos cidadãos para que examinem como suas ações públicas se coadunam com as necessidades de uma sociedade que precisa urgentemente se reconciliar – o que não significa, em absoluto, calar as eventuais dissonâncias que caracterizam qualquer sociedade democrática e vibrante.

A união nacional não se confunde com homogeneidade de pensamento. Ao contrário. Foi na construção de acordos em torno da pluralidade de ideias e da diversidade de pensamentos e visões que o Brasil encontrou forças para realizar conquistas coletivas inimagináveis. Aí estão a redemocratização do País, a volta das eleições diretas, o Plano Real, a criação do Sistema Único de Saúde, entre tantas outras. A sociedade já foi capaz de mostrar que suas divisões não são insuperáveis, ao contrário do que pregam e estimulam os arautos do caos.

Tendo a Constituição como norte incontornável, cabe a todos os cidadãos, hoje e sempre, desarmar os espíritos e reconhecer que adversários políticos não são inimigos a serem eliminados. O Brasil são muitos. Só a partir dessa compreensão que há de triunfar o verdadeiro espírito da Independência. Fonte: https://www.estadao.com.br

 

Dom Leomar Brustolin

Arcebispo de Santa Maria (RS)

 

Uma forma de celebrarmos o dia da Pátria, que se aproxima, é nos comprometermos cada vez mais com uma sociedade justa e fraterna para que o nosso Brasil se torne uma nação mais humana e solidária. Para garantir esses ideais, a atenção ao processo eletivo de nossos governantes é um imperativo para um povo que visa a ética na sociedade.

Nesse contexto, o Regional Sul 3 da CNBB, por meio do Conselho Regional de Pastoral que reúne os Bispos, Coordenadores de Pastoral e Coordenadores das Comissões de Pastoral das 18 dioceses do Rio Grande do Sul, orienta os fiéis católicos e demais homens e mulheres de boa vontade para participar de forma ativa e consciente do pleito municipal de 2024. Com o Papa Francisco compreendemos que é “necessária a política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum” (Fratelli Tutti, n. 154).

A Igreja Católica é apartidária, ou seja, não tem partido. Empenhada com a missão de anunciar o Evangelho, ela não renuncia ao seu compromisso político, que é o caminho concreto para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna, na qual todos possam viver com dignidade.

A gravidade dos desafios surgidos no Estado do Rio Grande do Sul com as enchentes e inundações exige um intenso trabalho para reunir forças, superar divisões e fortalecer a esperança. É tempo de cuidar e recuperar o sentido de pertencimento a esse pampa querido. É tempo de investir em projetos comuns e oferecer respostas que vão ao encontro da nova realidade que se nos impõe.

Diante disso, elencamos alguns critérios indispensáveis que iluminam a escolha de prefeitos e vereadores, para um voto participativo e consciente:

 

1-Compromisso com a promoção, a defesa e a proteção da vida de todas as pessoas, desde a concepção até a morte natural;

2-Promoção da família, com posicionamentos que priorizem e defendam os seus valores;
valorização do Diálogo e da Paz, com discurso conciliador, capaz de escutar e defender as propostas, sem ofender os outros;

3-Empenho pelo bem comum, propondo projetos e ações que visem, particularmente, os mais necessitados, sem excluir ninguém;

4-Postura ética, correta e justa, sem histórico de envolvimento em casos de corrupção;
preocupação e cuidado com Ecologia Integral, colocando a emergência climática como prioridade.

 

Ao eleitor exortamos não “vender” seu voto. O voto direto, secreto, livre, consciente e soberano é um direito de todo cidadão (Constituição, artigo 14, caput).

Pedimos às comunidades cristãs que acolham a todos, sem promover um ou outro candidato. A propaganda eleitoral, em templos de qualquer culto, é proibida. Além disso, é vedado qualquer pedido de votos, implícito ou explícito, no ambiente das igrejas, capelas, instituições religiosas e similares.

A nossa participação na política ultrapassa o voto, pois é preciso também acompanhar e cobrar daqueles que forem eleitos.

Urge criar um clima coletivo de liberdade para construirmos a paz entre nós. Em toda a sociedade dinâmica e criativa, as tensões são normais, mas não podem se converter em pressões e ameaças que afetem desastrosamente o processo democrático e a amizade social.

Que a Virgem Maria, profetisa da Esperança, renove nosso empenho por uma sociedade onde “justiça e paz se abraçarão” (Sl 85,11).

Conforme decidimos em Assembleia do Clero de Santa Maria, neste segundo final de semana de setembro, esta carta será lida ao final de todas as celebrações eucarísticas. Fonte: https://www.cnbb.org.br

Dos desvios idiomáticos aos problemas enfrentados nas contas públicas, o Brasil corre o risco de perder sua independência

 

Por Flávio Tavares

O mês de agosto terminou há pouco, mas dele fica aquela rima que virou repetido refrão: “Agosto, mês do desgosto”. E há pretextos (ou até motivos) para isso: agosto foi o mês da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Nove anos depois, aqui, no Brasil, o assassinato do major Rubens Vaz desencadeou uma crise política profunda que culminou, em 24 de agosto de 1954, com o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Em 22 de agosto de 1976, vivíamos ainda sob ditadura quando o ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu num acidente automobilístico na Via Dutra, nunca esclarecido e que, por isso, até hoje levanta suspeitas.

Mas agosto já passou, agora estamos em setembro e, amanhã, dia 7, festejamos 202 anos da proclamação da Independência do Brasil. É o “Dia da Pátria”, rememorando o histórico “grito do Ipiranga”, atualmente comemorado com desfiles militares e outras demonstrações de que somos independentes.

Vivemos hoje, no entanto, uma invasão estrangeira que pode transformar o estilo de vida e, especialmente, o idioma e as diferentes formas de comunicação. Se isso se consumar, perderemos nossa “independência”.

O poeta Fernando Pessoa já escrevia que “minha pátria é a Língua Portuguesa”, atualmente invadida pelo idioma inglês, tal qual no século 19 fora, em parte, invadida pelo francês. Camões, poeta maior de nossa língua, tem um soneto sobre o idioma português que vai às origens da língua derivada do latim vulgar: “Última flor do Lácio, inculta e bela / és a um tempo esplendor e sepultura / ouro nativo que na ganga impura / a bruta mina entre os cascalhos vela”.

Corremos o risco de que a raiz e o cerne de nosso idioma sejam suprimidos ou desapareçam nas formas essenciais (como desapareceu o latim) numa avalanche que cresce quase diariamente.

A mais recente expressão inglesa incorporada ao nosso idioma é fake news, repetida pelos meios de comunicação e adotada até nas escolas, como se em nosso idioma não houvesse o termo “falsa notícia”.

Porém a verdadeira aberração entre nós no Brasil é “mídia” (escrito assim, com “i” acentuado), que, de fato, é o termo latino media. Como em inglês escrevem media, mas pronunciam “mídia”, aqui passamos a escrever e dizer também assim, para significar “meios de comunicação”.

A internet despejou no idioma português uma série de expressões inglesas, desde streaming até outras mais, como on line ou Wi Fi. Não pretendo fazer, aqui, uma espécie de minidicionário de vocábulos ingleses hoje incorporados ao nosso idioma ou de uso corrente no dia a dia. Ou já praticamente intraduzíveis, como spray. Ou simplesmente adotados e de uso corrente, como shopping center e show, que substituíram aquilo que deveríamos chamar de “centro comercial” e “espetáculo”, em castiço português.

Há outros vocábulos ingleses que, pelo uso constante, foram já aportuguesados, tal qual stress (que escrevemos “estresse”) ou team, que escrevemos “time”, antes restrito ao futebol e, agora, generalizado. Na área desportiva os vocábulos ingleses se aportuguesaram quase totalmente, e talvez nos sobre apenas “natação”. Seria ridículo dizer ludopédio em vez de futebol, como sugeria meu professor de Português no ensino fundamental. Entretanto, no México (onde morei por cinco anos) dizem balonpié, traduzindo literalmente o termo inglês football. Aqui, joga-se vôlei e basquete, que antes chamávamos bola ao cesto.

O uso do idioma inglês penetrou até no Poder Judiciário, onde antes usava-se um latinório quase incompreensível. Há poucos dias o culto ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso escreveu fishing expedition, expressão comum nas cortes dos EUA, para aqui significar a “busca de ilícito sem causa provável”.

Não é por isso, entretanto, que somos um país subdesenvolvido, mesmo com dimensões continentais. Tantos são os motivos que é difícil de enumerá-los. Seria infantil e absurdo culpar os desvios idiomáticos pelos problemas atuais ou, até mesmo, pelos vividos ao longo dos anos. Aí está a crise climática indicando que o problema é secular e abrange o planeta inteiro.

Fiquemos, porém, com os problemas e desacertos recentes. Não me refiro aos crimes comuns, como o feminicídio, o roubo ou os incêndios florestais criminosos, cuja fumaça chega até a cidades como São Paulo. Saliento, porém, as responsabilidades dos governantes. Passamos da desastrosa gestão de Jair Bolsonaro ao esperançoso governo de Lula da Silva, mas a máquina governamental continua lenta, parecendo até que nada mudou.

Nessa lentidão, em que a ociosa burocracia se sobrepõe à realidade, em 2023 a área governamental gastou mais de 45% do Produto Interno Bruto (PIB) – em 2022 foram 43,4% do PIB. A dívida líquida da União (externa mais interna) em julho deste ano chegou a R$ 6,962 trilhões, mesmo que tenha caído a 61,9% do PIB.

Também em julho de 2024, o Banco Central acumulava uma dívida de US$ 378,7 bilhões (para evitar dúvidas, repito, dólares). Só isso já basta para indagar se nossa independência não estará à beira do abismo. Fonte: https://www.estadao.com.br

*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

A covardia do Brasil na Venezuela

Mesmo ante ordem de prisão do líder da oposição venezuelana, Lula segue incapaz de condenar a ditadura do companheiro Maduro, ofendendo os que bravamente lutam pela democracia

 

A repressão na Venezuela recrudesce a níveis pavorosos mesmo para os padrões de truculência do chavismo. O regime está em vias de aprovar uma “Lei contra o Fascismo” que na prática lhe dará carta branca para prender quem bem entender. Desde as eleições presidenciais, cujos resultados foram escandalosamente fraudados para dar a vitória ao ditador Nicolás Maduro, quase 30 manifestantes foram mortos e cerca de 2 mil foram detidos, entre eles dezenas de menores de idade. As milícias informais conhecidas como “Coletivos”, a Gestapo chavista, intimidam famílias em suas casas e jornalistas nas redações. O advogado da oposição foi sequestrado.

Agora, o regime ordenou a prisão do candidato da oposição, Edmundo González. Como se sabe, o único “crime” da oposição foi divulgar, graças à insubordinação cívica de funcionários dos colégios eleitorais, fotogramas das atas eleitorais que confirmam, segundo a apuração de vários observadores independentes, sua vitória nas urnas com dois terços dos votos.

Chancelarias de diversos países latino-americanos emitiram notas veementes de repúdio. Já o governo brasileiro continua a fazer cara de paisagem. Em tom prazenteiro, o chanceler paralelo do presidente Lula da Silva, Celso Amorim, disse que “eu sou do tempo da bossa nova – a gente nunca sobe o tom”. Nunca, desde que se trate de tiranos companheiros.

Se o governo, sob a retórica malandra do “pragmatismo”, se desfaz de suas obrigações de denunciar a fraude contra a vontade do povo venezuelano e as violações de seus direitos fundamentais, não é por falta de saliva. Mesmo em questões em que tem pouca influência, como a guerra na Ucrânia ou em Gaza, Lula fala e fala muito, com frequência superlativamente, como quando equiparou as operações militares de Israel ao Holocausto. O Brasil, por sinal, segue sem um embaixador em Israel.

Em 2012, quando o Parlamento do Paraguai destituiu o presidente esquerdista Fernando Lugo, a então presidente Dilma Rousseff vociferou contra uma suposta “ruptura da ordem democrática”, engendrando com os governos esquerdistas da Argentina e do Uruguai o afastamento do Paraguai do Mercosul. Pouco importa que missões internacionais tenham constatado a higidez constitucional do impeachment de Lugo: como se tratava de um companheiro progressista, Dilma deixou de lado a diplomacia “bossa-nova” de Amorim. Para confirmar que a manobra era puramente ideológica, o consórcio esquerdista do Mercosul, sem o inconveniente voto contrário do Paraguai, aprovou a entrada no bloco da – ora vejam – Venezuela chavista.

Em outras palavras, em nome da “defesa da democracia”, o lulopetismo e seus sócios sul-americanos patrocinaram um atentado às instituições do Mercosul, alijando um país em condições de normalidade democrática para favorecer um regime cujo autoritarismo é a principal marca.

A oposição venezuelana tem dado ao mundo um exemplo de heroísmo. Em outras ocasiões ela se fracionou e oscilou entre modos diversos de resistência, de boicote às eleições a tentativas de rebelião armada. Agora, mesmo diante de uma ditadura militar que mantém na coleira o Legislativo, o Judiciário e a mídia, optou pelo enfrentamento nas urnas – e venceu. Mas o governo brasileiro continua a promover a farsa da “neutralidade”, cobrando as atas eleitorais que o chavismo trancou a sete chaves e a oposição mostrou ao mundo.

Já ficou claro que o Brasil tem pouca capacidade de influência num regime manietado por China, Rússia e Cuba. Mas longe de isentá-lo, essa seria mais uma razão para que o seu chefe de Estado denunciasse com todas as letras o atentado contra a democracia e os direitos humanos em curso. Não é só um dever moral, mas constitucional. A Carta Magna brasileira preconiza que as relações exteriores do Brasil se regem, entre outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao terrorismo.

Ditaduras dependem de duas coisas para subsistir: o apoio das Forças Armadas e da população. Maduro, aparentemente, mantém o primeiro, mas o rechaço do povo venezuelano é inequívoco. Democracias genuínas deveriam celebrar e apoiar a resistência desse povo. O Brasil, em nome das amizades de seu presidente, prefere ofendê-lo. Fonte: https://www.estadao.com.br

Candidatos podem pedir votos, mas devem ficar atentos para não cometerem crimes eleitorais; veja quais regras os eleitores devem seguir

 

Período de campanha eleitoral começou nesta sexta-feira, 16 Foto: L. R. Moreira/TSE

 

Por Gabriel de Sousa

BRASÍLIA - O período oficial da campanha das eleições municipais de 2024 começou nesta sexta-feira, 15. A partir de agora, os candidatos aos cargos de prefeito e vereador nos 5.569 municípios do País podem pedir votos e organizar atos eleitorais.

O primeiro turno das eleições está marcado para o dia 6 de outubro. Em 103 cidades que possuem mais de 200 mil eleitores, há a possibilidade de haver segundo turno no dia 27 de outubro.

Os candidatos e os eleitores devem ficar atentos ao que é permitido fazer no período até o dia do pleito e o que pode ser configurado como crime eleitoral. Os delitos podem ocasionar multas até a cassação do registro de candidatura.

 

O que pode fazer?

A Justiça Eleitoral permite que os candidatos realizem comícios e carreatas. Os candidatos, porém, não podem utilizar aparelhos de som que ultrapassem 80 decibéis e deverão realizar os atos entre as 8 da manhã e às 22 horas. Também deverá ser respeitada uma distância de 200 metros de hospitais, escolas e sedes de Poderes.

Além de participar do horário eleitoral gratuito na rádio e na televisão, os candidatos podem pagar por anúncios de jornais até a antevéspera do dia do pleito. As propagandas em cadeia nacional vão começar a ser transmitidas no dia 30 de agosto e vão até 3 de outubro.

Nos jornais, os candidatos terão que respeitar o limite de até dez anúncios de propaganda eleitoral por veículo. A Justiça Eleitoral define também que o espaço máximo que os anúncios devem ocupar é de um oitavo de página de jornal padrão e de um quarto de página de revista ou tabloide.

O jornal impresso com o anúncio pode ser reproduzido na internet apenas pelo próprio veículo. É necessário que o valor pago pela campanha esteja visível nas páginas.

É permitido a propaganda em bens particulares desde que não haja algum tipo de pagamento, respeitando a vontade espontânea do dono do patrimônio.

As fachadas de comitês políticos podem ser utilizadas para a propaganda eleitoral. As faixas e cartazes não podem ultrapassar um limite de dois metros quadrados. Os candidatos também podem pedir votos em calçadas, desde que o trânsito de pedestres não seja prejudicado.

De acordo com uma nova resolução do TSE feita para as eleições deste ano, os candidatos podem utilizar a inteligência artificial (IA) para a produção das propagandas. É necessário que as campanhas divulguem de forma “explícita e destacada” o uso da IA para a fabricação do anúncio.

Os eleitores podem fixar nos carros adesivos micro-perfurados. As peças podem ocupar o para-brisa traseiro e outras partes do veículo, mas devem ter a dimensão de até 50x40 centímetros.

No dia das eleições, os eleitores poderão se manifestar, desde que de forma individual e silenciosa, a sua preferência por determinado candidato e partido. Segundo a Justiça Eleitoral, isso pode ser feito a partir de bandeiras, broches, dísticos, adesivos e camisetas.

 

O que não pode?

As campanhas não podem fixar propaganda eleitoral em muros, árvores e jardins, além de outdoors e fachadas de prédios públicos.

Uma resolução do TSE utilizada durante as eleições de 2022 que proibiu a divulgação de fake news em meios de comunicação, inclusive redes sociais, também será adotada nas eleições deste ano.

As campanhas não podem gastar mais do que o teto de gastos estabelecido pelo TSE para cada município. A lista com os valores foi divulgado no dia 18 de julho. Em São Paulo, que possui o maior eleitorado do País, os partidos poderão gastar até R$ 67.276.114,60 na campanha de prefeito em primeiro turno. Em eventual segundo turno, a quantia permitida é de R$ 26.910.445,80. A candidatura de vereador, por sua vez, tem um limite de R$ 4.773.280,39.

Os candidatos também estão proibidos de aparecer em inaugurações de obras públicas e não poderão distribuir camisas e demais brindes para eleitores.

Segundo nova resolução do TSE, é vedada o uso de “deepfake” em propagandas políticas. O termo denomina uma técnica que consiste na criação de conteúdos produzidos com auxílio de IA. O mecanismo funde, combina, substitui ou sobrepõe áudios e imagens para criar arquivos falsos em que pessoas podem ser colocadas em qualquer situação, dizendo frases nunca ditas ou assumindo atitudes jamais tomadas.

No dia das eleições, os eleitores não vão poder fazer manifestações sonoras e portar qualquer objeto que tenha propaganda de candidato, partido, coligação ou federação. O uso de armas no perímetro de 100 metros dos locais de votação também é proibido.

Por parte dos candidatos, é proibido transportar eleitores e pedir votos em zonas de votação. Também é vedado o uso de alto-falantes e amplificadores de som ou a realização de comícios e carreatas. A distribuição dos “santinhos” também configura crime eleitoral. Fonte: https://www.estadao.com.br

Como franquia da ditadura cubana, chavismo aprendeu a sufocar os que ousam se lhe opor. Com apoio chinês e russo, Maduro parece querer transformar a Venezuela de vez numa nova Cuba

 

O ditador Nicolás Maduro decidiu dar uma banana para a comunidade internacional e fechar ainda mais seu regime de opressão, que há 11 anos subjuga os venezuelanos de todas as formas pelas quais um povo pode ser subjugado por seu próprio governante. Suas ações nesse sentido são inequívocas desde aquele farsesco ato de “diplomação” encenado no Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um quintal do Palácio de Miraflores, horas após o pleito. Ali se ouviu a coda da ópera-bufa que apresentou Maduro como um legítimo candidato que teria triunfado sobre os adversários dentro das regras do jogo democrático, e não como o tirano sanguinário que ele é.

Maduro parece determinado a transformar a Venezuela em um Estado pária perante a comunidade das nações democráticas, entre as quais o Brasil. E ele só se movimenta com tamanho desassombro, malgrado todas as consequências políticas e econômicas que podem advir de seu novo golpe contra a soberania popular, porque conta com o imprescindível apoio da China e, a reboque, da Rússia, dois países que, como é notório, tratam as liberdades individuais e os direitos fundamentais dos cidadãos como excentricidades ocidentais.

Enquanto Estados Unidos e União Europeia se uniram para manifestar desconfiança em relação às condições da “vitória” de Maduro, China e Rússia foram rápidas na direção diametralmente oposta. Vieram de Pequim e de Moscou as mais importantes entre as escassas manifestações de apoio ao ditador venezuelano nas horas que se seguiram à proclamação do resultado pelo CNE no domingo passado.

A China de Xi Jinping, que conta com o petróleo da Venezuela para sustentar seu crescimento econômico, saudou Maduro e disse estar “disposta a enriquecer a associação estratégica com o país”. Ato seguinte, a Rússia do delinquente Vladimir Putin, outro capacho de Pequim, felicitou o ditador sul-americano e afirmou acreditar que “a associação estratégica” entre Moscou e Caracas se desenvolverá “em todas as áreas” a partir de agora. Engana-se quem pensa que essa coincidência de expressões empregadas foi mera obra do acaso.

Hoje, a Venezuela está para a China e Rússia como Cuba já esteve para a então União Soviética na década de 1960 – um posto avançado a serviço dos interesses chineses e russos contra os interesses americanos na América Latina. Não é força de expressão: é sabido que o regime chavista há tempos é uma franquia da ditadura cubana, que forneceu a Hugo Chávez e a Nicolás Maduro sua eficientíssima tecnologia de repressão a dissidentes, tanto políticos quanto militares. Maduro, devotado aprendiz de Fidel Castro, pretende se aferrar ao poder assim como o longevo ditador cubano.

Eis o teatro geopolítico que tem autorizado Maduro a não só desafiar, como a humilhar os países da América Latina e do Caribe que ousaram desconfiar de sua fajuta vitória ou guardar, no mínimo, um providencial silêncio nesse momento de crise, como fizeram Brasil e Colômbia, em que pese a hora grave impor uma condenação inequívoca da violência em curso no país vizinho.

No caso do Brasil, em particular, Maduro tem sido especialmente agressivo, tanto do ponto de vista retórico como militar. Recorde-se que, há poucos dias, o ditador recomendou que o presidente Lula da Silva tomasse um “chá de camomila” após o brasileiro se dizer “assustado” diante da ameaça feita pelo ditador companheiro de que haveria um “banho de sangue” na Venezuela caso ele não fosse reeleito. Ademais, Maduro segue inabalável em suas agressões contra a soberania da Guiana, mantendo tropas na região de fronteira com o Brasil.

A bem da verdade, Maduro sabe muito bem com quem está lidando ao se portar com esse misto de petulância e desdém pelo governo brasileiro. Fiel à tradição petista de condescendência com o chavismo, Lula afirmou ontem à noite que “nada tem de grave ou de anormal” na suspeitíssima eleição na Venezuela. De fato, sob a sanha persecutória e a sede de poder de Maduro, normal é ver os cadáveres de quem se opõe ao regime estendidos nas ruas, como já se vê. E isso é apenas o começo. Fonte: https://www.estadao.com.br

Oposição jamais teve a chance de derrotar Nicolás Maduro no voto. Do início ao fim, o ditador fraudou o processo eleitoral e intimidou os venezuelanos para se aferrar ainda mais ao poder

 

Para surpresa de ninguém, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um simulacro de Justiça Eleitoral na Venezuela que há anos se submete às ordens do Palácio de Miraflores, declarou a vitória de Nicolás Maduro na eleição presidencial de domingo passado. Segundo o órgão chavista, o ditador teria recebido 51,2% dos votos válidos, ante 44,2% dados ao oposicionista Edmundo González Urrutia. Qualquer número poderia ter sido chutado, pois a eleição, evidentemente, foi uma fraude.

Maduro não sobreviveria politicamente se fosse exposto ao ar das liberdades individuais e da soberania da vontade popular. Ciente disso, mais uma vez, o caudilho exerceu seu controle total sobre o Estado e suas instituições na Venezuela. Do início ao fim, o processo eleitoral foi conspurcado. Nesse sentido, a oposição jamais teve a chance real, por mínima que fosse, de derrotar Maduro nas urnas. É assim, afinal, que funciona uma ditadura.

O grande mérito de Urrutia e María Corina Machado – hoje a principal líder da oposição ao chavismo, a mulher que teria enfrentado Maduro caso não tivesse sido cassada pelo regime sob a falsa alegação de corrupção – foi ter reafirmado para o povo venezuelano e para o mundo, tal como uma anticandidatura, que a assim chamada “democracia” na Venezuela é uma farsa. “Todas as regras foram violadas”, afirmou Urrutia ainda na noite de domingo. Maduro não demorou para se autoproclamar oficialmente o vencedor, em clara demonstração de desdém com as preocupações da comunidade internacional.

A fim de não correr o menor risco de ser defenestrado do poder pela força das urnas, o que teria acontecido não fosse o recurso à fraude, Maduro cometeu uma pletora de arbitrariedades ao longo dos últimos meses, a começar pela cassação sumária de todas as candidaturas que, em dado momento da campanha eleitoral, cresceram como uma ameaça real a seus interesses.

Diversos oposicionistas foram presos – e os que não foram sofreram a brutal intimidação do regime antes, durante e depois do pleito. No dia da eleição, as temidas Milícias Bolivarianas, conhecidas como “Coletivos”, circularam em suas motos pelas seções eleitorais de Caracas armadas até os dentes, mostrando aos eleitores até onde ia, de fato, sua liberdade de escolha. Cerca de 4,5 milhões de venezuelanos exilados e aptos a votar no exterior foram impedidos por Maduro de exercer seus direitos políticos.

Jamais se tratou de uma eleição justa na Venezuela, em que pese a demonstração de união das forças de oposição ao regime ter representado a melhor chance de derrotar o chavismo nos últimos 25 anos. A rigor, Maduro se proclamou vitorioso em uma eleição na qual foi derrotado.

Não surpreende que o CNE tenha resistido a fornecer as atas de votação das seções eleitorais à oposição e aos escassos observadores internacionais presentes na Venezuela. Esses documentos, que poderiam atestar que Urrutia foi o grande vencedor das urnas, talvez jamais vejam a luz do dia.

Por meio de nota, o governo brasileiro saudou o “caráter pacífico da jornada eleitoral” na Venezuela, de resto um teatro para iludir incautos de que a reeleição de Maduro teria transcorrido dentro da mais absoluta normalidade democrática. Mas ao menos cobrou a publicação das atas de votação, gesto classificado pelo Itamaraty como “um passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito”. Já é alguma coisa, sobretudo em se tratando do governo de Lula da Silva, aquele para quem há “excesso de democracia” na Venezuela chavista. Fonte: https://www.estadao.com.br

Decisão afeta representantes de governos que questionaram resultado oficial do pleito, vencido por Nicolás Maduro

 

 

O chanceler da Venezuela, Yvan Gil. - Marcos Salgado - 29.jun.24/Xinhua

 

Ricardo Della Coletta

Brasília

O chanceler da VenezuelaYván Gil, publicou um comunicado nesta segunda-feira (29) no qual determina que os governos de ArgentinaChileCosta RicaPeruPanamáRepública Dominicana e Uruguai devem retirar seus representantes diplomáticos do território de seu país.

No texto, Gil afirma que esses governos estão subordinados aos Estados Unidos e realizaram ações e declarações de ingerência em assuntos internos de Caracas.

Na mesma nota, a chancelaria venezuelana afirma que o regime do ditador Nicolás Maduro vai retirar todos os seus diplomatas das respectivas missões em que atuam nesses países.

"A República Bolivariana da Venezuela expressa seu mais firme repúdio diante das ações de ingerência e declarações de um grupo de governos de direita, subordinados a Washington e comprometidos abertamente com os mais sórdidos postulados ideológicos do fascismo internacional, tratando de reeditar o fracassado e derrotado Grupo de Lima, que pretendem desconhecer os resultados eleitorais", lê-se no comunicado. O Grupo de Lima foi formado por países que se uniram para pressionar o regime de Nicolás Maduro.

"O governo bolivariano enfrentará todas as ações que atentem contra o clima de paz e a convivência que exigiram tantos esforços do povo venezuelano, razão pela qual somos contrários a todos os pronunciamentos de ingerência e de assédio com os quais, de forma reiterada, tentam desconhecer a vontade do povo venezuelano."

Os países citados por Gil são críticos a Maduro e questionaram os resultados oficiais divulgados pelo CNE (Conselho Nacional Eleitoral). Javier Milei, presidente da Argentina, chamou Maduro de ditador e afirmou que a oposição teve uma vitória acachapante. Já Luis Lacalle Pou, líder do Uruguai, afirmou que o processo eleitoral venezuelano é alvo de manipulação.

Parte desses governos articulou ainda uma reunião na OEA (Organização dos Estados Americanos), convocada para esta quarta-feira (31), para discutir o pleito na Venezuela, que eles descrevem como um motivo de profunda preocupação.

A articulação na OEA, liderada pelo Equador, visa a uma declaração conjunta dos governos de Paraguai, Argentina, Costa Rica, Guatemala, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai. Numa mensagem publicada nas redes sociais, esses governos afirmaram estar profundamente preocupados e exigiram a revisão completa dos resultados na Venezuela com a presença de observadores eleitorais independentes.

Na madrugada desta segunda, o CNE —controlado pelo chavismo— anunciou que o ditador Nicolás Maduro havia vencido as eleições de domingo. A divulgação foi rapidamente contestada pela oposição e por um grupo de líderes regionais.

Horas depois, Maduro foi proclamado presidente eleito para um terceiro mandato pelo CNE. "É irreversível", disse o líder do regime em Caracas.

O governo Lula (PT), que tem laços históricos com o chavismo, defendeu que o CNE divulgue as informações das mesas de votação. Em uma nota, o Itamaraty não parabenizou Maduro e pediu a publicação de "dados desagregados por mesa de votação".

Ainda de acordo com o Itamaraty, tal medida representaria um "passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito". No mesmo comunicado, a pasta saudou o "caráter pacífico da jornada eleitoral" e disse acompanhar com atenção o processo de apuração.

"[O governo] reafirma ainda o princípio fundamental da soberania popular, a ser observado por meio da verificação imparcial dos resultados", diz.

Enviado do Planalto para acompanhar a votação, o assessor para assuntos internacionais de Lula, Celso Amorim, esteve nesta manhã em reunião com os observadores eleitorais do Carter Center.

Depois, tinha reunião marcada com o painel de especialistas ligados à ONU (Organização das Nações Unidas). Os especialistas da ONU não têm mandato para manifestar juízo público sobre a condução das eleições. Eles devem produzir um relatório confidencial sobre aspectos gerais do processo eleitoral.

Amorim disse nesta segunda que nem o regime nem a oposição comprovaram suas afirmações de vitória. "A gente tem que ter uma verdade verificada. É uma norma de desarmamento básica: confie e verifique", disse à Folha. "O resultado só pode ser verificado quando o resultado das várias mesas [de votação] for divulgado. Não basta dar um número geral." Fonte: https://www1.folha.uol.com.br

Quantas vezes a gente insistiu em algo que era uma roubada? Todo mundo avisando e a gente ali, teimando. Desistir teria sido muito melhor

 

Por Leo Aversa

Domingo de tarde, Biden deitadão naquele sofá bege do Salão Oval. O jornal na barriga, a TV ligada, o telefone — vermelho — tocando sem parar. Do outro lado, assessores querendo discutir a guerra da Ucrânia, a questão dos imigrantes, o apagão cibernético na semana passada. Só treta, confusão e briga de cachorro grande. Ele ali, de saco cheio, olhar no teto, lembrando da torta de maçã que a avó fazia, sonhando com as férias na Disney na companhia dos netos. Enquanto espera a música do Fantástico para ir dormir, se pergunta: por que não consigo ficar aqui tranquilo, de boas? De supetão — não tão supetão assim, que a lombar não aguenta mais —, ele levanta e solta o grito primal do homem contemporâneo: “Que se foda, tô fora!”

Não quero tirar o emprego de escritores de autoajuda, nem desapontar admiradores de influencers existenciais e seguidores de coachs metafísicos, mas a persistência é uma qualidade sobrevalorizada. A toda hora, em todo lugar, tem um profeta do óbvio mandando a gente persistir, insistir, seguir em frente a qualquer preço. É bom, até faz bem, mas não vamos exagerar: desistir — na hora certa — é a grande arte.

Um monte de gente persiste, persiste, persiste e mesmo assim não chega onde queria. Pelo contrário, acaba pior que começou. Por teimosia, não percebe que até estava avançando, mas na direção contrária. Tipo ter que ir para Niterói, pegar a Brasil para o outro lado e acabar em Bangu. Acontece muito.

São pessoas a quem sobra vontade e determinação, mas falta GPS. Também existem os que insistem no que nunca vai dar certo e os que persistem em algo que, sim, funciona, mas não para eles.

Não quero fazer uma ode ao pessimismo, mas uma dose de régua e compasso e uma pitada de “melhor não” podem nos poupar de grandes decepções.

Dizem que o sucesso é 99% de suor e 1% de talento. Mais certo, impossível. Mas vamos ser sinceros, leitor: existem pessoas — maravilhosas — que nem esse 1% têm. Aí, complica. O sonho de uma jornada heroica rumo ao topo da montanha vira um patético tombo na escada na direção do porão. Não era melhor ter largado o osso lá no começo?

Nem deveria falar sobre a importância da desistência na vida afetiva. É até covardia. Construir uma relação, ir colocando tijolinho em cima de tijolinho, é algo lindo, deve ser um objetivo tão desejado como celebrado. Mas... Vamos ser sinceros: é uma em cem, né? Sobre as outras 99, meu caro leitor, descobrimos depois — estropiados — que era melhor ter pulado fora antes. Quantas vezes a gente insistiu em algo que era obviamente uma roubada? Todo mundo avisando e a gente ali, teimando. Desistir teria sido muito melhor do que descer a ladeira sem freio e bater de frente com um caminhão.

Nem acho que Biden estava tão mal assim, entrar num debate com um lunático mitômano é uma luta inglória para qualquer um, você tem que contestar um sujeito que acredita mesmo nas mentiras que diz. Igual a jogar xadrez com pombo. Vale a pena? Para quem tem tempo, disposição e um futuro pela frente, sim.

Só que tem uma hora na vida em que você percebe que o tempo é curto e que o que você quer mesmo é ler o jornal de domingo tranquilo, de boas, deitado no sofá.

Eles que lutem. Fonte: https://oglobo.globo.com

 

Donald Trump — Foto: SCOTT OLSON / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

Trump atribuiu ao todo-poderoso o milagre de ter sido salvo do atentado. Mas deus deve ter outras coisas para fazer

 

Por Cacá Diegues

Desde sábado da semana passada só se fala no atentado sofrido por Donald Trump. Nada pode justificar tamanha violência contra uma pessoa. Não se trata disso. Mas nós, por aqui, vimos algo parecido nas eleições de 2018. Com uma grande diferença. Quando Jair levou uma facada na campanha ainda tínhamos uma total indefinição do resultado das nossas eleições. A vítima, então, pode contar com um fato que justificaria sua ausência em todo e qualquer debate em que poderiam ser discutidos os planos de cada um para o nosso país: poderia ficar em casa, como ficou utilizando-se unicamente das mídias sociais, onde falava sozinho.

Foi justamente em um debate que a fragilidade da saúde de Joe Biden ficou escancarada “via satélite” para o mundo todo. Trump já aparecia com vantagem sobre Biden e depois disso disparou na preferência dos eleitores americanos, enquanto o presidente dividiu até mesmo seus companheiros do Partido Democrata. Quer dizer, Trump sofreu um atentado a sua vida mesmo já estando à frente da corrida presidencial, diferentemente do que ocorreu por aqui.

Mas um, como o outro, atribuíram a Deus o milagre de terem saído salvos dos respectivos atentados. Quando pessoas que almejam o poder atribuem a Ele uma intervenção por estarem vivos, temos que ficar atentos. Se o Todo-Poderoso os unge com tamanho privilégio, quem somos nós para discutir com Ele? E como Deus pode estar tão atento com homens tão poderosos e, ao mesmo tempo, estar tão distraído com as vítimas de balas perdidas diárias que testemunhamos em nossas favelas, ou com os absurdos que vemos acontecer seja na Ucrânia, seja em Gaza, ou em quaisquer outras barbaridades que os homens cometem contra outros homens? Deus não tem a nada a ver com isso. Se Ele existe mesmo deve ter outras coisas para fazer.

Espero que os Estados Unidos, pelo seu inegável protagonismo, achem um caminho para evitar que o nosso planeta se afunde ainda mais nessa rota suicida que alguns tentam nos impor. O mundo precisa mesmo de mais fraternidade, mais cordialidade, mais solidariedade. Menos muros, menos preconceitos, menos ódio com o diferente de nós. O entendimento de que ou daremos certo juntos ou não teremos saída. E aí, Deus, pode sim resolver mandar um meteoro para acabar com tudo mesmo para começar de novo porque não demos certo. Melhor resolver aqui mesmo, entre nós, humanos. Fonte: https://oglobo.globo.com

 

Atentado contra Trump representa uma dramática escalada da violência política que tem marcado os EUA desde que o ex-presidente incitou a invasão do Capitólio no 6 de Janeiro

 

O terrível atentado contra a vida de Donald Trump, ocorrido no sábado passado durante um comício do republicano na cidade de Butler, na Pensilvânia, representa uma dramática escalada da violência política que tem marcado os EUA nos últimos anos. Nesse sentido, o crime de que Trump foi vítima há de ser vigorosamente condenado. Contudo, não se pode dizer que era imprevisível em um contexto no qual o recurso à força das armas tem sido estimulado pelo próprio ex-presidente como meio de afirmação política desde o fatídico dia 6 de janeiro de 2021.

Sim, Trump sofreu uma tentativa de homicídio. Por milagre não morreu, como atestaram as imagens que correram o mundo. Porém, não se pode perder de vista, sob o risco de faltar com a verdade histórica, que o ex-presidente é o grande responsável por essa radicalização da política americana desde que chegou à Casa Branca, em 2017. Depois de ter sido derrotado em sua tentativa de reeleição, Trump incitou a invasão do Capitólio por uma horda de apoiadores radicais que, fortemente armados e em seu nome, tentaram subverter o legítimo resultado das urnas em 2020.

Aqueles liberticidas que tomaram de assalto o prédio símbolo da democracia nos EUA sempre foram tratados por Trump como “patriotas”, não como os criminosos que são. E foi a eles que Trump se dirigiu logo após ser atingido, ainda no palanque. “Lutem! Lutem!”, bradou o ex-presidente, de punho cerrado e com sangue correndo pelo rosto. O cálculo político estava feito. A imagem que decerto marcará sua campanha eleitoral daqui para a frente estava registrada – uma declaração de guerra a uma parte do povo americano. E justo no momento em que os EUA clamam por gestos de pacificação de seus líderes.

O impacto dessa primeira reação de Trump não pode ser subestimado, não só nos rumos da campanha eleitoral, ainda desconhecidos, mas sobretudo no convívio social. Quando um líder político popular como ele toma uma violência sofrida como meio para galvanizar e radicalizar sua base, o resultado não há de ser outro senão a erosão da confiança dos cidadãos entre si e destes nas instituições democráticas.

Esse roteiro foi traçado por Trump logo após o tiro que o atingiu de raspão. A utilização daquela violência como sua principal bandeira de campanha a partir de agora – substrato para toda sorte de teorias da conspiração – reflete a disposição do candidato republicano de manipular as emoções do eleitorado para fins políticos. A ela se somarão as reiteradas mentiras que Trump dissemina sobre o processo eleitoral e a imparcialidade do sistema de Justiça dos EUA, um discurso que tem levado muitos americanos a empunhar armas para se contrapor a instituições que acreditam estar corrompidas.

A resposta de Trump ao ataque que ele sofreu não deveria ser a escalada de sua retórica inflamável e divisiva, mas um apelo ao diálogo como forma de resgate da tradição política da maior democracia das Américas. A despeito da violência praticada contra presidentes e candidatos à presidência que, lamentavelmente, marcaram o passado dos EUA, o país só se tornou a potência que é porque, ao longo de quase dois séculos e meio de história, a união dos americanos em torno de objetivos comuns foi muito mais marcante do que suas eventuais divergências.

Ao invés de capitalizar politicamente o atentado, como fez, Trump deveria fazer de seu renascimento uma oportunidade para refletir sobre o impacto de suas ações e palavras sobre o comportamento dos cidadãos que ele pretende liderar mais uma vez. Afinal, um líder genuíno busca a união, não a discórdia. Ademais, a democracia americana, farol para o chamado mundo livre, não guarda espaço para que a violência se torne um método aceitável de participação no processo político.

Mas é ocioso esperar que Trump reavalie um comportamento nefasto que, em última análise, foi exatamente o que lhe garantiu o maior triunfo de sua vida. Resta aos eleitores americanos refletir e evitar que prevaleça a sede de vingança e o atentado se torne o prenúncio de uma tragédia ainda maior. Fonte: https://www.estadao.com.br

A direita democrática precisa negar Bolsonaro

Evento da extrema direita no Brasil mostra a força de um movimento que reafirma caráter autoritário ao jurar lealdade absoluta não à lei ou aos valores republicanos, e sim a Bolsonaro

 

A Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC Brasil), realizada no fim de semana passado em Santa Catarina, exibiu tudo aquilo que se espera de uma versão tropical da cúpula da extrema direita global: ofensas a figuras da esquerda e a jornalistas, denúncias sobre a suposta perseguição judicial enfrentada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e defesa da liberdade de expressão para desacreditar o “sistema”. O mais relevante, contudo, é a confirmação da liderança inconteste de Bolsonaro. Apesar da inelegibilidade, Bolsonaro continua a ser a maior força política e, portanto, o maior cabo eleitoral dos extremistas da direita.

Aos bolsonaristas importa menos a condenação por irregularidades cometidas em 2022 e mais sua capacidade de mobilizar aliados e atrair eleitores. Como Lula da Silva em 2018 – à época preso pela Lava Jato e impedido de concorrer –, chega-se a apostar na candidatura de Bolsonaro já em 2026, ainda que esteja proibido até 2030, como forma de puxar a corda em favor das hostes extremistas. Pelo que se viu na CPAC, essa extrema direita está preparada para fazer barulho, tentar gerar instabilidade institucional ou ganhar as eleições. Ou as três coisas somadas.

Reconhecida a musculatura política do ex-presidente, é o momento de separar o joio do trigo: há Bolsonaro e o bolsonarismo, num lado, e há a direita democrática, no outro. São água e óleo. O bolsonarismo é a mais perfeita tradução de um extremismo destrutivo, só capaz de prosperar num ambiente de conflagração permanente e de negação dos padrões civilizados de convivência entre interesses sociais divergentes. A direita tradicional é democrática, sustenta-se nas ideias liberais e republicanas e sabe respeitar as instituições e as regras da democracia. Os extremistas bolsonaristas só querem delinquir sem serem incomodados. As reais forças de direita, porém, rejeitam o vale-tudo, a intolerância e o golpismo.

Não são apenas nuances, e sim visões radicalmente opostas sobre o exercício da política. Separá-las ajuda cidadãos e eleitores a escapar da armadilha fabricada pela esquerda. Para esta, sobretudo para o lulopetismo, “extrema direita” cumpre hoje o papel que a expressão “neoliberalismo” cumpria anos atrás, isto é, a possibilidade de rotular tudo o que a esquerda considera ruim – da austeridade fiscal à segurança pública, do conservadorismo nos costumes ao populismo de direita. Reconhecer tais diferenças é útil quando se observam Bolsonaro e seu orgulho liberticida, que joga aos tubarões quem ousa ao mesmo tempo reivindicar o apoio dos seus devotos e respeitar instituições e adversários.

Eis aí a enorme missão a ser cumprida por outros nomes da direita brasileira, como os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), e do Paraná, Ratinho Júnior (PSD) – os três principais candidatos a herdar o capital político de Bolsonaro. É esse o desafio especialmente imposto ao governador de São Paulo, o favorito: decidir se deseja apresentar-se como uma liderança da direita – democrática, liberal e republicana, insista-se – ou se quer se juntar aos delinquentes. É um dilema similar ao do Partido Republicano nos Estados Unidos. Em tese, um partido existe para diluir ambições pessoais e valorizar causas. Hoje, os republicanos só têm uma causa: a que Donald Trump definir. O presidente do partido de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, disse o mesmo sobre Bolsonaro e o PL. Nada mais antidemocrático.

Se não quiser ser vista como parte do gangsterismo disfarçado de movimento político chamado “bolsonarismo”, a direita precisa negar Bolsonaro. É uma equação eleitoralmente difícil, mas ou é isto ou então é mergulhar no abismo moral e político que o bolsonarismo representa. Para tanto, a direita democrática pode e deve galvanizar o espírito do antipetismo ou do desencanto de quem está farto dos rumos tomados pelo lulopetismo e sua promessa não cumprida de pacificar o Brasil. Mas, antes de mirar o PT, convém se descontaminar do que há de mais antidemocrático e incivilizado que este país produziu em sua história. Fonte: https://www.estadao.com.br

Todo mundo se agarra como pode a qualquer fiapo de poder que seus dedos consigam alcançar

 

Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

 

Foi duro assistir ao debate americano. Primeiro, pelo show de mentiras e demagogia de Trump. Segundo, e mais importante, pela agonia de ver Biden falar, torcendo a cada pergunta para que ele concluísse suas frases ao menos de forma inteligível. Nem sempre conseguiu. Trocava nomes, esquecia palavras, perdia o fio da meada.

Uma pesquisa da CBS News/YouGov publicada no domingo mostra que 72% dos eleitores creem que Biden não tem a saúde mental e cognitiva necessária para servir como presidente. Antes do debate, eram 65%. Os sinais estão claros. Ele perde para Trump em todas as pesquisas. Precisa virar o jogo: aparecer mais, gerar fatos positivos, surpreender o eleitorado. Qual a chance de consegui-lo? Entrevistas e aparições públicas realçam apenas sua fragilidade física e mental.

Biden cumpriu sua missão ao vencer um presidente que ameaçava a democracia em 2020 e ainda entrega números razoáveis. Crescimento médio do PIB de 3,5% ao ano; desemprego de 2024 a 4%. A inflação, alta até 2022, caiu e deve ficar em torno 3% este ano. Ele poderia declarar que cumpriu sua missão e que abrirá espaço para alguém mais jovem e dinâmico. Ao fazê-lo, coroaria sua carreira com um ato final de desprendimento.

No século 5 a.C, Lúcio Quíncio Cincinato, patrício romano já idoso e que levava uma vida modesta, aceitou relutante o cargo de ditador num momento de necessidade nacional. Venceu a guerra que ameaçava a existência de Roma em meros 16 dias e imediatamente abriu mão do poder absoluto e da glória advinda do cargo, voltando à humilde lavoura que cultivava com as próprias mãos. Foi duplamente louvado. Não sabemos se a história real foi assim, mas sabemos que esse era o nível de desprendimento do poder admirado numa República antiga.

Na República atual, todo mundo se agarra como pode a qualquer fiapo de poder que seus dedos consigam alcançar e só solta quando arrancado à força; o país que se dane. Um caso similar foi o da juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg. Já tinha um mandato de décadas com votos importantes para o lado progressista. Com mais de 80 anos, poderia ter se aposentado ainda no governo Obama e permitido que ele escolhesse sua sucessora. Não o fez. Faleceu em 2020, dando a Trump a oportunidade de aumentar a proporção de conservadores na Corte, que está hoje em 6 a 3.

Vozes de democratas na imprensa clamam para que a esposa, a família, os correligionários de Biden o convençam a desistir. Mas a real responsabilidade deveria ser do próprio Biden. Se fosse apenas sua trajetória política que estivesse em jogo, daria para entender o apego à miragem da reeleição. Mas é a própria República e a ordem mundial que ela (mal e mal) sustenta que podem sucumbir, então a recusa em largar o osso ganha ares de um egoísmo doentio.

Doentio e irracional, dado que Biden provavelmente perderá. Além de prejudicar o país, perderá a chance de fechar sua carreira com um ato admirável de magnanimidade para acabar de forma melancólica, derrotado e humilhado, tendo entregue de bandeja a eleição mais crucial da história recente.

Isso importa inclusive para nós, brasileiros, porque a eleição de Trump terá impacto no mundo todo. E também porque, por aqui, presidentes e ex-presidentes têm uma dificuldade quase patológica de deixar o poder e preparar sucessores.

Seja como for, provavelmente já é tarde. Trump seguirá favorito independente de quem se oponha. A opção entre a certeza do fracasso e a possibilidade da virada, no entanto, não devia ser tão difícil. Não dá para esperar de um presidente o desprendimento de um Cincinato; só o bastante para não empurrar o país do precipício. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br

 

O projeto que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio mostrou o descolamento entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa

 

Por desinformação, preconceito ou má-fé, uma parte considerável do mundo não evangélico observa, com desconfiança e temor, a notável ascensão das igrejas evangélicas brasileiras. Muitos também confundem a população evangélica e seus representantes e líderes religiosos, como se fossem um só corpo e uma só mente – algo monolítico, uma base ao mesmo tempo genérica e uniforme, composta por pastores e parlamentares populares, influentes e barulhentos, e uma população fiel, obediente e facilmente manipulável. O debate sobre o Projeto de Lei (PL) 1904, que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio, demonstrou que não é bem assim: não somente há muito mais diversidade nos grupos evangélicos do que sugere o senso comum, como há um descolamento razoável entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa.

Na semana em que a Frente Parlamentar Evangélica – liderada pelo autor do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), sob a bênção do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) – trabalhava pela urgência da tramitação, nas ruas e nas redes sociais grupos evangélicos se mobilizaram para contê-lo. Sem liderança puxando o trio, mulheres de todos os credos foram às ruas protestar; sem compromisso com a bancada parlamentar, mulheres cristãs de diversas matrizes religiosas lançaram um manifesto e organizaram um ato em Brasília. A confirmação do descolamento veio com os números trazidos pelo Datafolha: 57% dos evangélicos do País são contrários ao PL, número que é ainda maior entre os católicos (68%). Em outras palavras, engana-se quem percebe o perfil religioso e conservador do brasileiro como fundamentalista. Mais: fundamentalistas são minoria – e se concentram nas hostes extremistas no Congresso. Segundo o Datafolha, 66% da população rejeita o projeto.

Ainda que parlamentares prometam voltar à carga quando o clima esfriar, as pressões obrigaram o recuo no que pareceu uma tentativa da extrema direita de emparedar o governo. Triunfaram no início: o presidente Lula da Silva ficou em silêncio até as manifestações de rua e as primeiras pesquisas dando conta da derrota do PL nas redes sociais. Lula chamou de “insanidade” a tentativa do projeto, mas só o fez quando se sentiu à vontade diante do racha aparente no mundo evangélico.

O presidente lidera uma esquerda que costuma enxergar evangélicos como outro Brasil, outra gente. A confusão mais comum associa evangélicos à extrema direita, o que ajuda a ampliar o preconceito contra a população religiosa. Com a emergência do bolsonarismo, pastores influentes passaram a atuar também na produção e reprodução de notícias falsas e pânicos morais, assim como na ameaça direta dentro de espaços religiosos. São dois mundos distintos, mas que se entrelaçam, pois a ação de um contamina e reforça o preconceito sobre o outro.

Ocorre que evangélicos são muito mais do que isso. Pesquisadores do Instituto de Estudos da Religião (Iser) vêm mostrando que suas aspirações passam tanto pelas crenças quanto por elementos reais do cotidiano. Estudos informam que a maioria evangélica é hoje feminina e de baixa renda e tem muita clareza sobre o que melhora ou piora suas condições de vida. “São pessoas que se movem por necessidades práticas e não apenas por fake news que viram trending topics nos grupos de WhatsApp da Igreja”, escreveu a pesquisadora Ana Carolina Evangelista em artigo publicado no UOL.

Dilemas reais das mulheres evangélicas envolvem a família, a segurança e a situação econômica, categorias que estruturam a vida de boa parte dos brasileiros, ultrapassam o moralismo explorado pela extrema direita e confundem a cabeça do lulopetismo. A resistência ao PL é parte desses dilemas. Se moral e ideologicamente são contra a legalização do aborto, veem o estupro como crime inaceitável, portanto é ultrajante para muitas evangélicas a ideia de que a mulher, já vítima do estuprador, seja condenada à prisão. Esse componente crítico só é impensável para quem enxerga obediência absoluta ao estereótipo do crente fundamentalista. E para lideranças parlamentares que, cada vez mais fisiológicas, olham para cima – neste caso, não para o Céu, e sim para os seus projetos de poder. Fonte: https://www.estadao.com.br

Pesquisa revela que o ódio se tornou um dos grandes motivadores para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias. Nessa ambição de eliminar o contraditório, todos perecerão

 

É lamentável constatar que o ódio tenha se tornado uma grande motivação para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias no País. Uma pesquisa conduzida por cientistas políticos da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade de São Paulo (USP), publicada pelo Estadão no dia 1.º passado, revelou que, entre os filiados a partidos políticos no Brasil, cerca de 70%, nada menos, consideram que a aversão e o ódio a seus adversários políticos, em algum grau, foram fatores relevantes para sua decisão de ingressar numa determinada legenda.

O resultado da pesquisa – de abrangência nacional, realizada com filiados e dirigentes de 32 partidos nos anos de 2020, 2022 e 2023 – partiu de uma arguta curiosidade de seus autores. Eles pretendiam compreender por que, afinal, o número de filiações vem crescendo no País à medida que também cresce um sentimento de descrença em relação não só à política, mas aos políticos em geral. “Descobrimos que o ódio e a rejeição do adversário motivam não só a filiação, mas também são fatores que tornam os filiados ainda mais engajados”, disse ao Estadão o pesquisador Pedro Paulo de Assis, da USP.

Do total de respondentes, 36% disseram que se tornam “altamente engajados” nas atividades de seu partido quando se veem diante da possibilidade de vitória da legenda que mais rejeitam e odeiam. Os pesquisadores classificaram esse comportamento como “engajamento pelo ódio”, que vem à frente de comportamentos políticos tidos como tradicionais, como, por exemplo, a ação motivada pelo desejo de influenciar o processo decisório interno das legendas (32%). Ao menos por enquanto, o “engajamento pelo ódio” só fica atrás do empenho dos filiados pelo triunfo eleitoral de suas próprias siglas (41%).

Isso só acontece porque, há um bom tempo, se estimula no Brasil, mas não só, uma nefasta transfiguração da política. De meio civilizado para a concertação de interesses sociais divergentes, a política passou a ser tratada como uma guerra existencial. Ou, dito de outra forma, um processo de vinculação emocional entre membros de uma tribo, para não dizer seita, que passam a enxergar sua sobrevivência – seja no debate público, seja nas vias de acesso às esferas institucionais de poder – a partir da eliminação política e moral, quando não física, de seus adversários.

Nessa disputa de vida ou morte, os que não comungam das mesmas ideias, aspirações e valores são tratados como inimigos a serem abatidos num campo de batalha. Hoje, felizmente, essa guerra campal é travada no campo simbólico. Sabe-se lá até quando. Ora, isso não é outra coisa senão o fim da política – e, consequentemente, da própria democracia representativa tal como a conhecemos, como o pacto social materializado na Constituição de 1988. Não há, evidentemente, como isso possa dar em bom lugar.

Qualquer sociedade civilizada abraça e encoraja as divergências entre os cidadãos, não as repele, muito menos as desestimula. A política, nesse sentido, exerce um papel central na vida nacional, pois, malgrado a miríade de dissensões que há entre eles, os indivíduos se reconhecem como concidadãos e, nessa condição, buscam alcançar objetivos minimamente comuns. Os partidos sempre foram vistos como os principais organizadores desses interesses em negociação. Agora, ao que parece, tornaram-se grandes usinas de um ódio que, no limite, pode levar à sua extinção como um dos principais mediadores do debate público.

Eis uma grande armadilha. No curtíssimo prazo, essa ação política movida a bile pode até favorecer as legendas por fomentar a filiação partidária, gerar engajamento e, consequentemente, contribuir para um eventual aumento de bancadas federais – o que está diretamente relacionado com o tamanho do quinhão do Orçamento público que os partidos vão receber. Adiante, porém, esse estado de guerra existencial não tem outro destino a não ser o ocaso da política desenvolvida e, a reboque, do valor dos próprios partidos. Fonte: https://www.estadao.com.br

Anistia inaceitável

No cenário de desordem institucional, está em curso um plano para reabilitar Bolsonaro com vista a 2026. Ou as instituições democráticas recobram o prumo, ou o golpismo prospera

 

Está em curso um plano de reabilitação de Jair Bolsonaro para permitir que ele concorra à Presidência em 2026. Fossem estes tempos normais, esse cenário seria um devaneio dos apoiadores mais fervorosos do ex-presidente. Mas estes não são tempos normais, não do ponto de vista institucional. E o bolsonarismo, como se sabe, vampiriza sua força da atimia das instituições – seja pela tibieza, falta de espírito público ou desvios de comportamento de alguns de seus membros.

O Congresso só faz aumentar seu poder, pela via do controle do Orçamento, sem a devida responsabilização pelas escolhas que faz. Some-se a isso a fragmentação partidária e estão dados os reveses inauditos ao chamado presidencialismo de coalizão. O presidente Lula da Silva, por sua vez, parece alheio à realidade do País. Governa como se tivesse sido eleito por folgada maioria de ditos “progressistas”, fechado que está em seus interesses mais imediatos e na fracassada agenda do PT. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) tem agido com denodo para macular sua imagem perante a opinião pública – e não só entre bolsonaristas. Não raro, ministros têm se comportado como se fossem maiores do que a própria Corte, minando a legitimidade que não apenas é o esteio do Poder Judiciário, mas do próprio Estado Democrático de Direito.

É nesse contexto de desordem institucional que se tem tratado, à luz do dia, de algumas medidas que têm por fim anistiar o maior vândalo político que esta República democrática conheceu nos últimos 35 anos, o “mito” inspirador de uma tentativa de golpe de Estado. Nada menos. Das duas, uma: ou as instituições democráticas recobram o prumo ou o golpismo prospera.

Há poucos dias, a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, Caroline de Toni (PL-SC), designou o colega Rodrigo Valadares (União-SE) como relator de um projeto de lei que concede anistia aos golpistas do 8 de Janeiro. Como ambos são bolsonaristas de quatro costados, não é difícil imaginar como serão os trabalhos na CCJ e o relatório final. É igualmente cristalino o fato de que ninguém se importa com a desdita dos liberticidas que tomaram Brasília de assalto naquele dia infame. Fossem mais honestos os patrocinadores desse descabido projeto de lei, dar-lhe-iam o nome de “emenda Bolsonaro”, pois é de livrá-lo da Justiça e reabilitá-lo eleitoralmente que se trata.

Em outra manobra claramente oportunista, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), resolveu desengavetar um projeto de lei de 2016 que proíbe a homologação judicial de acordos de colaboração premiada firmados por colaboradores presos, além de punir quem divulgar o conteúdo das delações – uma óbvia criminalização do jornalismo profissional. São dois os objetivos de Lira com essa manobra. Primeiro, cortejar o PL, partido de Bolsonaro. Com uma bancada de 95 deputados, a sigla é crucial para a pretensão do presidente da Casa de fazer seu sucessor. No limite, o projeto – de autoria do ex-deputado petista Wadih Damous (RJ) – pode anular a delação do tenente-coronel Mauro César Cid contra o ex-chefe. Além disso, Lira sacou de seu baú de maldades mais um instrumento para fustigar Lula, que agora não tem mais qualquer interesse nesse projeto, a fim de manter o governo em rédea curta. Não à toa, Bolsonaro declarou publicamente que apoiará “o nome do Lira” à presidência da Câmara em fevereiro de 2025.

A anistia se tornou a maior obsessão de Bolsonaro depois das fracassadas tentativas, legais e ilegais, de se manter no poder. Esse arranjo intolerável, entretanto, interessa apenas e tão somente ao ex-presidente e a seu grupo político, em particular sua família.

Não é do interesse nacional perdoar os golpistas – nenhum deles. É absolutamente inaceitável tolerar qualquer indulgência com intolerantes que tentaram cassar as liberdades democráticas neste país. A punição exemplar de todos os golpistas é a melhor defesa da democracia, se não a única, contra os seus inimigos. Para estes, é preciso deixar claro que a conta de sua ousadia é pesada. Só isso poderá evitar que a barbaridade se repita. Fonte: https://www.estadao.com.br

Nove dos 81 parlamentares têm propriedade nessas condições, mas maioria nega desconforto em votar a proposta

 

Plenário do Senado Federal - Pedro Ladeira-16.abr.2024/Folhapress

 

Lucas Marchesini, Idiana Tomazelli, Ranier Bragon

BRASÍLIA

Nove dos 81 senadores que vão deliberar sobre a chamada "PEC das Praias" têm em seu nome propriedades que ficam em área de marinha, de acordo com dados públicos da Secretaria do Patrimônio da União (que faz parte do Ministério da Gestão e Inovação) e da Justiça Eleitoral.

São eles Alessandro Vieira (MDB-SE), Ciro Nogueira (PP-PI), Esperidião Amin (PP-SC), Fernando Dueire (MDB-PE), Jader Barbalho (MDB-PA), Laércio Oliveira (PP-SE), Marcos do Val (Podemos-ES), Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) e Renan Calheiros (MDB-AL).

Procurados pela Folha, cinco disseram não ver impedimento em analisar a proposta e os outros quatro não se manifestaram.

O levantamento levou em conta imóveis no nome do parlamentar ou de empresas da sua propriedade.

Os terrenos de marinha são áreas à beira-mar que ocupam uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofrem a influência das marés. Elas foram medidas a partir da posição da maré cheia do ano de 1831. Ou seja, em cidades litorâneas, são áreas que ficam atrás da faixa de areia.

A propriedade desses imóveis é compartilhada com a União, que cobra uma taxa de foro pelo uso e ocupação do terreno. Em caso de transferência para outra pessoa, é preciso pagar outra taxa, o laudêmio.

A PEC facilita a transferência dos bens em áreas urbanas da União para estados e municípios ou para proprietários privados, em texto criticado por técnicos e especialistas por criar insegurança jurídica, permitir a privatização de áreas do litoral brasileiro e abrir brechas para grilagem.

A medida é considerada por técnicos como de alto risco. O texto prevê a cessão onerosa das áreas, ou seja, os ocupantes serão obrigados a comprar a parcela da União no terreno de marinha.

Na prática, porém, a PEC não prevê sanções ou condutas em caso de não pagamento —em outras palavras, o governo pode levar um calote sem ter meios para cobrar os valores devidos.

Já em 2022, técnicos viam potencial de a medida se transformar na maior transferência de patrimônio público para o setor privado na história do país.

O texto tem como relator o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que encampou a defesa da proposta e emitiu parecer favorável ao texto aprovado pela Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022.

Seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi em seu governo um entusiasta de mudanças em regras para criar uma espécie de "Cancún brasileira" na região de Angra dos Reis (RJ) —região onde se situam diversas áreas de marinha potencialmente alcançadas pela PEC.

Entre os possíveis beneficiários diretos da PEC, os senadores Esperidião Amin e Oriovisto Guimarães se declararam favoráveis ao texto. Amin diz que é preciso, porém, haver aperfeiçoamento.

Oriovisto é o responsável por um imóvel de 2.982,89 m² de área total em Guaratuba, no Paraná, segundo os dados da Secretaria de Patrimônio da União. Procurado, ele disse que se trata de uma casa de veraneio e que a PEC não terá "reflexo significativo" em seu caso.

"Hoje pago uma taxa anual para a SPU e pago IPTU par a a prefeitura. Se a PEC passar, vou examinar se vale a pena pagar um valor para a SPU para me livrar da taxa anual, ou se deixo como está hoje. São milhares de casas na mesma situação. Importante salientar que, em qualquer hipótese, não haverá alteração no uso do terreno", disse.

Marcos do Val e Laércio Oliveira não manifestaram qual posição vão adotar na análise do tema, embora o segundo tenha votado a favor da proposta quando ela foi aprovada pela Câmara e ele era deputado.

"Vou acompanhar novas discussões que tragam segurança à população, porque a PEC está gerando interpretações equivocadas e imprecisas", Disse Laércio.

Já Fernando Dueire se disse contrário à medida.

Todos os parlamentares que se pronunciaram negam desconforto em votar uma matéria que pode beneficiá-los.

Por meio de sua assessoria, Marcos do Val disse que se sentir impedido de analisar e votar a proposta por ter um imóvel em área de marinha "seria o mesmo que um senador da área do esporte se considerar impedido de analisar uma questão nesse assunto". Seu imóvel fica em Vitória (ES).

Não responderam às perguntas da Folha Renan Calheiros, Jader Barbalho, Ciro Nogueira e Alessandro Vieira.

Para o senador Flávio Bolsonaro, o projeto dará mais segurança jurídica aos atuais ocupantes das áreas, aumentará a arrecadação federal e atenderá necessidades de municípios com grandes áreas litorâneas.

Na época da aprovação do texto da Câmara, em fevereiro de 2022 —durante a gestão Bolsonaro, portanto—, a SPU já alertava para os efeitos deletérios da PEC sobre o patrimônio da União, uma vez que o valor das áreas envolvidas poderia chegar a R$ 1 trilhão.

O prejuízo, porém, pode ser ainda maior. A partir de dados do Censo Demográfico de 2022, a Secretaria do Patrimônio da União estima que 2,9 milhões de imóveis estejam em terrenos de marinha, mas apenas 565,3 mil deles estão cadastrados.

Os beneficiários tendem a ser pessoas de alta renda, que ocupam terrenos à beira-mar.

Ambientalistas apontam riscos para a diversidade ecológica, caso prospere a cessão onerosa dessas áreas. O governo federal ainda aponta que a demarcação e administração desses terrenos são fundamentais para garantir a gestão adequada dos bens da União.

O governo federal afirma que o Brasil tem cerca de 48 mil quilômetros lineares em terrenos de marinha, considerando reentrâncias em estados como Pará e Maranhão. Deste total, aproximadamente 15 mil quilômetros lineares estão demarcados. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br

Ideia de passar borracha na conspiração de Bolsonaro vaga pelo Congresso com simpatia do centrão

 

Bruno Boghossian

Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

 

BRASÍLIA

Foi uma ação entre amigos. A presidente da comissão mais importante da Câmara procurou Jair Bolsonaro para discutir um projeto de anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023. Caroline de Toni (PL) escolheu um aliado do ex-presidente como relator e prometeu incluir a proposta em pauta.

Até as paredes do Congresso sabem que a ideia de anistiar os presos de 8 de janeiro seria a inauguração de uma farra que incluiria o próprio Bolsonaro. A presidente da CCJ tentou disfarçar e disse que o ex-presidente não pediu para ser incluído na proposta. "Olha a altivez do nosso presidente Bolsonaro em não visar o seu próprio interesse", exagerou.

O plano de livrar o ex-presidente da prisão e talvez anular sua inelegibilidade é uma trama conduzida à luz do dia. A ideia é começar pelos "injustiçados do dia 8 de janeiro" para fingir que Bolsonaro nunca preparou um golpe de Estado, nunca pediu ajuda de militares de alta patente e nunca recebeu apoio de parlamentares que, hoje, tentam blindá-lo.

A pressa e a criatividade desses agentes sugerem que o ex-presidente não está disposto a esperar um julgamento. Em outra frente, a Câmara pôs em pauta uma proposta que invalida delações feitas por réus presos. Não por acaso, a PF está prestes a indiciar Bolsonaro em inquéritos turbinados por depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid.

A ideia de passar uma borracha nos crimes do ex-presidente só vaga pelos corredores do Congresso porque tem a simpatia do centrão —numa mistura de corporativismo e gratidão pelas benesses extraídas do governo passado. Algumas propostas têm apoio de cardeais de partidos da base de Lula e ressoam na Esplanada dos Ministérios.

O argumento mais vendido nessa feira é uma necessidade de pacificação do país. Como não se pode atribuir aos parlamentares nenhuma ingenuidade, o mais provável é que tenham sido tomados pelo cinismo. Falar em anistia é estender um tapete vermelho para que os golpistas voltem e terminem o serviço. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br