Rezar os Salmos hoje-08: Um olhar sobre a Bíblia.
- Detalhes
*Frei Carlos Mesters, Carmelita.
A poesia dos salmos uma outra entrada para dentro da vida.
A oração dos salmos se situa mais do lado da poesia e da arte do que do lado da lógica e da razão. Ainda que seja um assunto meio difícil e complicado, convém ver de perto este aspecto poético dos salmos, pois ele ajuda muito a perceber o rumo e o objetivo dos salmos. A poesia dos salmos é a linguagem humana colocada a serviço da descoberta de Deus.
Poesia: o lado de dentro das coisas.
Poesia não é só uma questão de rima e de ritmo. É muito mais do que isto. A poesia tem outra porta de entrada, outro caminho de acesso aos segredos da vida. Consegue ver e experimentar o outro lado dos fatos e da natureza, o lado de dentro, onde a razão não penetra, a eficiência nada alcança, o planejamento se frustra. Onde a vida encontra razões para viver que a razão desconhece. É o lado onde, no segredo, a fonte gera a sua água, a flor solta o seu perfume, o passarinho recomeça o seu canto. Onde o dia nasce, o mar se esconde, o sol descansa. Onde a criança é adulto, e o adulto continua criança. Onde a dor é acolhida como irmã, e a alegria se desprende da alma em pranto. Onde existe a escuridão luminosa, o silêncio sonoro, a solidão partilhada. Onde se encontra a fonte sem fundo que reflete o rosto de quem nela olha e lhe faz descobrir o seu eu escondido.
A poesia é uma faísca da plenitude de Deus, uma amostra da sua presença no meio de nós. Ela é uma interpretação da fala de Deus. Nada melhor do que a poesia para ser a expressão do nosso diálogo com Deus.
Alma e corpo da poesia
Na hora em que a prece sobe no coração e a inspiração nasce na cabeça, o salmista vai à procura de uma forma para expressar o que está sentindo. O casamento perfeito entre a inspiração e a forma literária é a expressão mais alta da arte. É onde alma e corpo da poesia se unem e geram vida nova. Nem todos os salmos alcançam a perfeição poética. Mas todos eles, perfeitos ou não, expressam um sentir, um sentido, um sentimento, uma experiência de Deus na vida.
O sentido que o poeta quer expressar e transmitir através da sua poesia ou salmo não está só nas palavras e frases que ele escolhe e arruma com tanto cuidado, mas também e sobretudo no espaço invisível que ele cria entre as palavras e entre as frases, nas entrelinhas. Arrumando as palavras e as frases dentro de uma determinada ordem, o poeta cria entre elas uma relação, uma tensão, um espaço, uma zona de silêncio, que provoca o leitor. As palavras assim arrumadas tornam-se como que grávidas de um novo sentido (que não está no dicionário).
Entre as frases e as palavras da poesia, do salmo, corre o fio invisível do sentido a ser captado pelo leitor. O resultado da poesia não depende só do poeta. O poeta inicia a obra, o leitor deve completá-la. As palavras e as frases do salmo são como um binóculo que o poeta entrega ao leitor dizendo: “Aqui! Olhe você também para a vida, para Deus! Você vai gostar!” E pode até acontecer que o leitor, olhando pelo salmo, consiga enxergar mais que o próprio poeta.
O jeito como a poesia dos salmos arruma as palavras e as frases
Cada povo arruma as palavras da sua poesia de acordo com as possibilidades e as exigências da sua cultura e da sua língua. A característica básica da poesia do povo hebreu é esta: aproximar, uma da outra, duas ou mais frases, dois ou mais pensamentos, completos em si, cada um carregado de um sentido. São como dois polos, entre os quais se estabelece uma tensão, uma relação; como dois fios, entre os quais salta a faísca invisível do sentido. O critério usado pelos poetas hebreus para aproximar entre si a palavra e as frases não é tanto (como na nossa poesia) a associação sonora, o ritmo ou a rima, mas, sim, o conteúdo, o significado da frase; e isto de duas maneiras: em forma de comparação e em forma de paralelismo.
A comparação: iluminar um pelo outro
A comparação é uma maneira elementar e popular para expressar e transmitir um sentido. Até hoje, o povo recorre à comparação quando quer explicar alguma coisa. A comparação pertence mais à linguagem falada; ela é menos frequente na linguagem escrita dos salmos. Há duas maneiras de se fazer a comparação:
- Comparar para igualar ou equiparar: “Como..., assim...”. A frase menos conhecida se esclarece a partir da mais conhecida.
Alguns exemplos:
“Como vinagre nos dentes e fumaça nos olhos, assim é o preguiçoso para quem o envia”. (Pr 10,26)
“Como o animal sedento à procura dos córregos, assim eu estou à tua procura, Senhor!” (SI 42,2)
“Abriram sua boca contra mim, como o leão que dilacera e ruge”. (SI 22,14)
“Mil anos aos teus olhos são como o dia de ontem que já passou”. (SI 90,4)
- Comparar para diferenciar e avaliar. “Melhor é..., do que...”. O poeta estabelece uma escala de valores entre as duas frases, o que permite julgar e apreciar as coisas. Alguns exemplos:
“Mais vale o pouco do justo, do que as grandes riquezas do ímpio”. (SI 37,16)
“Melhor um dia na tua casa, do que mil passados em minha casa”. (SI 84,11)
“Puseste mais alegria no meu coração, do que a alegria deles em época de colheita abundante de trigo e vinho”. (SI 4,8)
O paralelismo: iluminar-se mutuamente
O paralelismo aproxima ou justapõe duas frases em pé de igualdade e faz com que uma interfira na descoberta do sentido da outra. O paralelismo é a forma poética mais frequente nos salmos. Ele se faz de três maneiras:
- Uma frase completa o sentido da outra: paralelismo sintético:
“O Senhor reconstrói Jerusalém, reúne os exilados de Israel”(SI 147,2)
“Levanta-te, ó Juiz da terra, devolve o merecido aos soberbos”. (SI 94,2)
“Habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para gozar a doçura do Senhor e meditar no seu templo”. (SI 27,4)
- Uma frase diz o mesmo que a outra: paralelismo sinônimo:
“Povo meu, escuta minha lei, dá ouvido às palavras da minha boca”. (SI 7811)
“Eles tramam um plano contra o teu povo, conspiram contra os teus protegidos”. (SI 83,4) “O Senhor não rejeita seu povo, jamais abandona sua herança”. (SI 94,14)
- Uma frase diz o contrário da outra: paralelismo antitético:
“O ingênuo acredita em tudo que se diz, o esperto discerne as coisas”. (Pr 14,15)
“O Senhor conhece o caminho do justo, o caminho dos ímpios se perde”. (SI 1,6)
“Os ricos passam necessidade e fome, nenhum bem falta aos que procuram o Senhor”. (SI 34,11)
Às vezes, o salmista combina comparação com paralelismo (SI 92, 13), outras vezes, combina entre si as várias formas do paralelismo:
“O Senhor tem os olhos sobre os justos e os ouvidos atentos ao seu clamor. A face do Senhor está contra os malfeitores, para da terra apagar a sua memória”. (SI 34,16-17)
O versículo 16 é paralelismo sintético. O mesmo vale para o versículo 17. Mas os dois versículos comparados entre si formam um paralelismo antitético.
Dois complementos sobre a poesia dos salmos
- Paralelismo: estrutura do Livro dos Salmos
A Bíblia usa o paralelismo não só para organizar as palavras e as frases dentro de cada salmo, mas também para organizar os salmos dentro do conjunto do Livro dos Salmos. Assim, vários salmos formam duplas. Parecem gêmeos. Alguns exemplos:
1) Paralelismo sintético entre os Salmos 50 e 51: Salmo 50 é uma acusação contra o povo, uma denúncia da sua culpa; Salmo 51 é uma confissão do pecado, um reconhecimento da culpa. Um completa o outro.
2) Paralelismo antitético entre os Salmos 22 e 23: Salmo 22 diz: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (SI 22,2); Salmo 23 diz: “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará. Tu estás junto de mim” (SI 23,1.4). Um diz o contrário do outro.
3) Paralelismo sinônimo entre os Salmos 3 e 4: Salmo 3 diz: “Eu me deito e logo adormeço” (SI 3,6); Salmo 4 diz: “Em paz me deito e logo adormeço” (SI 4,9). Um diz o mesmo que o outro. Os dois são orações da noite.
Aqui se abre todo um campo de pesquisa: investigar e descobrir o fio invisível do sentido que corre não só entre as palavras e as frases de cada salmo, mas também entre os próprios salmos, desde o Salmo 1 até o Salmo 150; descobrir as duplas de salmos e as várias formas de paralelismo que existem entre eles, e investigar como o sentido de um salmo ajuda a descobrir e a completar o sentido do outro.
2-Paralelismo: como estrutura da própria Bíblia
O paralelismo existe não só dentro de cada salmo, nem só dentro do conjunto do Livro dos Salmos, mas também dentro do conjunto da Bíblia. A própria estrutura da Bíblia está baseada na lei do paralelismo. Ou seja, a Bíblia justapõe e aproxima entre si doutrinas, fatos, interpretações da vida e da história, sem preocupação em harmonizá-las entre si. Num lugar, ela diz uma coisa; em outro, diz o contrário.
Por exemplo, a descrição da criação em Gênesis 1 é uma, a de Gênesis 2 é outra; e a interpretação da história dada pelos Livros de Samuel e dos Reis é diferente da interpretação dada pelos Livros das Crônicas; o Davi dos Livros de Samuel é um, o Davi dos Livros das Crônicas é outro; o Livro do Eclesiastes tem uma visão das coisas, o Livro do Eclesiástico tem outra; a solução proposta pelo Livro de Rute é bem diferente da solução dos Livros de Esdras e Neemias; as Cartas de Paulo e a de Tiago oferecem duas maneiras diferentes de encarar o problema da lei e das obras; a maneira de apresentar a pessoa de Jesus é diferente em Mateus, em Lucas, em Marcos, em João, nas Cartas de Paulo e no Apocalipse; e assim por diante.
Às vezes, as várias afirmações se completam (sintético); às vezes, dizem a mesma coisa (sinônimo); outras vezes, dizem o contrário (antitético). Deste modo, colocando os contrários, um ao lado do outro, a Bíblia cria uma tensão, um campo de força, entre as várias partes ou livros que a compõem.
A tentação do intérprete é querer resolver o problema escolhendo uma afirmação e negando a outra; ou reduzindo o sentido de uma frase ao tamanho do sentido da outra. A Bíblia, porém, não racionaliza. Através da lei do paralelismo, ela simplesmente explicita as contradições existentes na vida, nos fatos, na história. Ela é a imagem do que acontece e existe na história humana. Ela provoca e convida o leitor a assumir a contradição e o conflito como parte integrante da caminhada, e a permanecer na busca, sem esmorecer, até chegar no ponto onde as duas afirmações contrárias se encontram como dois galhos nascendo da mesma raiz, ou onde uma, apoiada pelo Evangelho, exclui a outra como contrária a Deus, ao Evangelho e à vida humana.
O desafio da poesia
Esta reflexão sobre o paralelismo encerra uma lição. De um lado, faz a gente ficar mais humilde; ajuda a relativizar os nossos conflitos internos, as nossas brigas e contradições. Faz perceber que “na casa do Pai há muitas moradas” (João 14,2). Por outro lado, ajuda a perceber e a assumir com mais garra a grande luta que atravessa a história. Ajuda, como diz o povo, a “dar um boi para não entrar na briga, e uma boiada para não sair dela”. O mais importante na poesia dos salmos não são as normas literárias. O mais importante da janela não é a sua forma, mas, sim, o panorama que pode ser visto através dela.
A poesia é como uma seta na estrada, um estímulo. Ela coloca o leitor num caminho de descoberta. Quer provocar nele a mesma experiência que o poeta ou o salmista teve. No momento em que conseguirmos reencontrar dentro de nós um reflexo desta experiência, teremos atingido a fonte de onde o poeta bebeu, teremos agarrado a matriz que gera o sentido, e encontrado a luz que ilumina os salmos pelo lado de dentro. Nesse momento, começamos a “rezar como Davi rezou”.
* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.
Rezar os Salmos hoje-07
- Detalhes
*Frei Carlos Mesters, Carmelita.
Salmo 1 e Salmo 150: luta e festa
O Livro dos Salmos é como uma grande rede, onde o povo deita e descansa da caminhada, se refaz dos estragos e da dor, e acumula novas forças para retomar a luta. Esta rede está pendurada em dois ganchos bem fortes, o Salmo 1 e o Salmo 150, que ficam nas duas pontas, o primeiro e o último. Estes dois salmos descrevem o ponto de partida e o ponto de chegada da oração e revelam a tensão que existe entre as duas motivações mais profundas que nos levam a rezar. O Salmo 1 fala da meditação e da observância da Lei do Senhor, enquanto o Salmo 150 fala do louvor e da festa total. Luta e Festa! Eficiência e Gratuidade! Os dois pólos da oração.
Salmo 1: eficiência e luta
O Salmo 1 indica o ponto de partida da oração. É o salmo dos “Dois Caminhos”. Quem quiser levar uma vida de oração deve fazer uma opção inicial bem clara entre o caminho dos justos e o caminho dos pecadores (SI 1,6); deve decidir-se firmemente a viver conforme as exigências da Lei do Senhor (SI 1,2). Aqui, no início do Livro dos Salmos, a oração aparece como “meditar dia e noite na Lei do Senhor” e encontrar nela o seu prazer (SI 1,2). A oração está intimamente ligada à luta entre o bem e o mal, entre a justiça e a injustiça, pois ela é vista como um meio que ajuda o povo a romper com o caminho da injustiça e a se manter no rumo da Lei do Senhor (SI 1,1-2). O objetivo da oração é produzir bons frutos no tempo certo, igual a uma árvore frondosa sempre verde, plantada à beira das águas correntes (SI 1,3). Resumindo: na abertura do Livro dos Salmos, no começo da caminhada com Deus, está a preocupação com a observância da lei e com a eficiência da ação. Esta preocupação é um dos dois ganchos que sustentam a rede dos salmos. A influência deste gancho percorre todo o livro até o outro lado, até o Salmo 150. Mas a oração não é só isto; não é só meio para alcançar um fim. Ela é também o próprio fim que se quer alcançar, amostra grátis da festa final. É disto que fala o Salmo 150.
Salmo 150: a gratuidade, a festa
O Salmo 150 descreve, como num painel luminoso, o ponto de chegada do caminho da oração. Aqui, no encerramento do Livro dos Salmos, a oração aparece como louvor e festa. Aleluia! Louvai o Senhor! (SI 150,1.6). Com traços curtos e claros, o salmo indica qual é o lugar e o motivo do louvor:
- É o templo (SI 150,1), isto é, o lugar onde Deus reside no Santo dos Santos e onde a comunidade se reúne diante de Deus;
- É o firmamento (SI 150,1), isto é, a natureza onde se revela a presença de Deus como Criador;
- São as façanhas (SI 150,2), isto é, a história onde Deus se revela, como Libertador e Salvador, nas maravilhas que operou para o povo.
Comunidade, Natureza, História! As três são expressão de "sua imensa glória" (SI 150,2) que deve ser louvada. O salmo convida a todos, sem distinção, a participar do louvor: “Tudo que vive e respira louve o Senhor!” (SI 150,6). Ele pede para usar todos os instrumentos (SI 150,3-5). Todos têm que entrar na dança (SI 150,4). Neste painel luminoso, que descreve o ponto final da história e da prece, a humanidade aparece como um bloco alegre e animado, cantando e dançando num louvor eterno.
Resumindo: a história termina no louvor; a gratidão explode em canto: “Tudo que vive e respira louve o Senhor!” (SI 150,6). Este é o outro gancho em que está pendurada a rede dos salmos. E também aqui, a influência deste gancho percorre todo o livro até o outro lado, até o Salmo 1. É o gancho da festa, da gratuidade, do puro bem querer, sem nenhum outro objetivo, a não ser este: estar aí, diante de Deus, numa presença amiga e gratuita, para cantar, louvar e agradecer. Aqui, a oração já não é meio, mas é o próprio ponto final: a festa. Deitado nesta rede, o povo tem os pés na direção do Salmo 1; a cabeça e o coração na direção do Salmo 150. Toda oração é, ao mesmo tempo, meio e fim, observância e gratuidade, pedido e louvor, conversão e gratidão, compromisso e amizade, caminhada e chegada, Lei e Graça, luta e festa!
Os dois perigos que ameaçam a prece
Estes dois pólos também encerram em si os dois perigos que, constantemente, ameaçam a prece, entortam a rede e fazem o povo cair no chão.
Um dos dois perigos é achar que basta o louvor (salmo 150) e que a luta pela justiça (salmo 1) contribui para sustentar a caminhada do povo. É achar que só Deus é quem faz as coisas e que a nossa observância e luta não são necessárias para a salvação; é achar que nós não podemos nem devemos fazer coisa alguma, pois a salvação é um dom gratuito de Deus. Esta atitude provoca a passividade que deixa a história à deriva, entregue à ideologia dominante que devasta a comunidade, a natureza e a história, sem deixar lugar nem para Deus nem para o povo.
O outro perigo é achar que o louvor e a celebração não contribuem para animar a luta entre o bem e o mal; é achar que só a eficiência e o planejamento podem levar a algum resultado de mudança e de transformação. Isto provoca o farisaísmo que exclui a ação da graça, elimina a festa, se fecha nas próprias idéias e pode levar ao fanatismo e à loucura.
O difícil mesmo é achar a fonte, onde estes dois córregos, o da luta e o da festa, existem unidos, nascendo a cada instante como irmãs, filhas do mesmo pai e da mesma mãe, brigando entre si, mas irmãs, que se querem bem e que precisam uma da outra.
* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.
FREI DONIZETTI: 60 Anos!
- Detalhes
Rezar os Salmos hoje-06
- Detalhes
*Frei Carlos Mesters, Carmelita.
O jeito de o povo rezar os seus salmos
Hoje existem várias maneiras de se rezar os salmos. “O Senhor é meu Pastor” (Sl 23), por exemplo, tem várias melodias e várias letras. Usam-se vários instrumentos. Às vezes, os salmos são rezados por uma única pessoa, enquanto os outros escutam; outras vezes, são rezados alternadamente, em coro. Às vezes, depois de recitação do salmo, fica-se um tempo em silêncio para ruminar a palavra ouvida e, em seguida, cada um repete o versículo que mais o impressionou.
Estas e outras maneiras são meios que nós usamos hoje para poder agarrar o sentido do salmo e, assim, rezá-lo como expressão dos nossos próprios sentimentos. O ideal é este: recriar o salmo, a partir da sua raiz, como se fosse rezado hoje pela primeira vez.
E aí vem a pergunta: Como é que o povo do tempo da Bíblia rezava os seus salmos? Como fazia para recriá-los e assimilá-los na vida? O que podemos aprender deles neste ponto? O próprio Livro dos Salmos nos dará a resposta a estas perguntas.
1-Chaves de leitura
A maioria dos salmos tem um pequeno título que funcionava como chave de leitura. Ele informava sobre a origem, o autor, o tipo e o uso do salmo. Os títulos dos salmos são antiqüíssimos. Nem sempre são claros. Eles nos dão uma idéia de como os salmos eram rezados naquele tempo. Tomemos como exemplo, entre muitos outros, o título do Salmo 57 que diz: “Do mestre do canto. Não destruas. De Davi. A meia voz. Quando fugia de Saul na caverna” (Sl 57,1). Vejamos ponto por ponto:
Do mestre do canto. Sinal de que eles tinham um responsável que puxava o canto durante as celebrações. Provavelmente, havia um grupo de cantores que formava um coro para animar o culto (cf. 1Cr 15,16; 9,33; 2Cr 23,13).
Não destruas. Era o título de uma música popular bem conhecida de todos. O Salmo 57 devia ser cantado com a melodia da música “Não destruas”. Até hoje, o povo faz letra para ser cantada conforme a melodia de cantos populares bem conhecidos.
De Davi. Atribuir o salmo a Davi ajudava o povo a “rezar como Davi rezou, a cantar como Davi cantou”. Tornava mais concreta a recitação do salmo, pois facilitava a identificação do povo com Davi.
A meia voz. Indicava que se tratava de um salmo mais meditativo, pois havia outros salmos em que o povo era convidado a cantar e gritar bem alto (Sl 47,2). Nem sempre as celebrações eram silenciosas. Pelo contrário! (Sl 42,5).
Quando fugia de Saul na caverna. Evoca um fato bem conhecido da vida de Davi (cf. 1Sm 24,1-8) como contexto de origem do salmo. Isto ajudava a dramatizar o salmo, a ligá-lo com a vida, e favorecia a identificação do orante com Davi.
2-Instrumentos musicais
Ao que parece, as celebrações eram bem animadas, acompanhadas com muitos instrumentos musicais. O Salmo 150 enumera vários: trombeta, cítara, harpa, tambor, instrumento de corda, flauta, címbalo (Sl 150,3-4; cf. 81,3-4). Em outros salmos aparecem outros instrumentos como a lira de dez cordas (Sl 33,2), o oboé (Sl 46,1). Havia salmos que deviam ser acompanhados com um determinado instrumento musical. Por exemplo, o Salmo 54, foi feito para ser acompanhado com instrumento de corda (Sl 54,1); O Salmo 46, com oboé (Sl 46,1). O Salmo 33 convida o povo a tocar os instrumentos e fazer grande louvação (Sl 33,2-3). Eles gostavam de música e festa!
3-Participação do povo
Hoje em dia, quando se reza um salmo, todo mundo tem o texto na mão. Isto facilita a participação. Naquele tempo, não havia texto na mão do povo. Cantava-se de memória e o povo participava de muitas maneiras. Às vezes, alguém puxava o canto e o povo respondia em forma de ladainha, dizendo sem parar: “Eterno é seu amor, eterno é seu amor, eterno é seu amor, eterno...” (Sl 136). Outras vezes, o cantor que puxava o canto mandava o povo confirmar a prece com a aclamação “Amém! Amém!” (Sl 106,48). Ou provocava os vários grupos presentes na celebração: “A Casa de Israel, repita: eterno é seu amor! Agora a Casa de Aarão, repita: eterno é seu amor! Agora todo mundo que teme o Senhor, repita: eterno é seu amor! Agora todo mundo que teme o Senhor, repita: eterno é seu amor!” (Sl 118,2-4).
Em outros salmos, o povo participava por meio do canto de um refrão que voltava no começo, no meio e no fim (Sl 80,4.8.20). Outras vezes, participava dançando (Sl 150,4), acompanhando a procissão (Sl 42,5; 24,6-10), fazendo romaria (Sl 122,1-2), tocando seus instrumentos (Sl 33,2-3). As festas eram alegres e barulhentas (Sl 81,3-4; Sl 42,5).
4-Expressão corporal
Corpo e alma formam uma unidade. O corpo acompanha o movimento da mente e dele procura ser uma expressão e uma ajuda. Por isso, a expressão corporal faz parte da prece e lhe dá mais vida. A Bíblia tem muitas informações sobre as várias formas de expressão corporal que acompanhavam a recitação dos salmos e a prece em geral: prostração, genuflexão, inclinação (Sl 95,6; 22,30); levantar as mãos para o alto (Sl 63,5), bater palmas (Sl 47,1), soltar gritos (Sl 47,1), colocar a cabeça entre os joelhos (1Rs 18,42).
Depois do exílio, quando uma grande parte dos judeus vivia fora da Palestina, espalhada pelas costas do Mar Mediterrâneo, criaram o costume de orientar o corpo. Isto é, durante a oração, eles se voltavam na direção do templo de Jerusalém que ficava no Oriente (Sl 138,2). Faziam isto três vezes ao dia, no momento exato em que, lá no templo, se oferecia o sacrifício, de manhã, ao meio dia e no fim da tarde. Assim, unidos entre si no mundo inteiro, faziam subir as preces até Deus junto com a fumaça dos sacrifícios do templo de Jerusalém.
5-Espelho para todo sofredor
Como vimos anteriormente, é difícil saber exatamente em que época, em que lugar e a partir de que fato a maioria dos salmos foi escrita. Ou seja, não é fácil atingir o contexto histórico exato da origem dos salmos. De certo modo, isto era proposital! Era para permitir que os salmos pudessem ser rezados em todo tempo e em todo lugar, sobretudo os salmos de lamento. Nos salmos de lamento, o salmista expressava a sua dor de tal maneira, que a sua prece pudesse ser assumida e rezada também por outros. Por isso, ele não particularizava demais nos detalhes pessoais, pois isto dificultaria ao outro identificar-se com o salmo. Nem generalizava demais, pois isto separaria o salmo da vida e ele já não seria espelho para ninguém. Numa palavra, os salmos são, ao mesmo tempo, universais e concretos. Nisto está a sua arte! Por isso são espelho para todo sofredor. Até hoje, o povo se encontra lá dentro, apesar de todas as dificuldades de linguagem, de interpretações e de distância no tempo.
Para a oração dos salmos é importante lembrar o seguinte. O sentido dos salmos se concretiza não só a partir do contexto da pessoa que fez o salmo, mas também e sobretudo a partir do contexto daquele que reza o salmo. Por exemplo, o Salmo 72 diz: “O Senhor liberta o indigente que clama, e o pobre que não tem protetor” (SI 72,12). Ao rezar este salmo, não se deve pensar no indigente e no pobre do século IV antes de Cristo, mas, sim, nos indigentes e nos pobres que nós mesmos conhecemos no lugar onde moramos, hoje, aqui e agora, no Brasil! O estudo do contexto histórico do salmo pode ajudar muito para que, na oração, o salmo possa ser espelho para todo sofredor.
6-Retrato da vida de cada um
As imagens ou comparações usadas nos salmos para expressar a atitude orante do povo diante de Deus eram as mesmas que se usavam para expressar as coisas mais comuns da vida e da convivência diária: criança dormindo no colo da mãe (SI 131,2), a família em casa ao redor da mesa (SI 128,3), uma roda alegre de gente amiga que grita e canta com violão e pandeiro (SI 33,1-3; 81,3-4), o luar do sertão (SI 8,4), saudades da terra (SI 42,5), o pedreiro que constrói uma casa e o vigia que guarda uma cidade (SI 127,1), etc.
Todas as situações da vida estão presentes nos salmos: alegria, tristeza, solidão, abandono, perseguição, exploração, repressão, opressão, desespero, esperança, doença, morte, amor, ódio, casamento, educação, juventude e velhice, calor, frio, luta, festa ... tudo! Os salmos não distanciavam as pessoas da vida. Pelo contrário. Traziam a vida para dentro da prece, e levavam a prece para dentro da vida. Tudo que dava para rir e para chorar era usado no diálogo com Deus. Os salmos têm a variedade da própria vida.
7-Ambiente organizado da comunidade
O povo que hoje participa da comunidade conhece de cor muitos cânticos: “O Povo de Deus no deserto andava”, “Da cepa brotou a rama”, “Queremos Deus”, "Eu confio em Nosso Senhor", "A Ti, meu Deus", "Me chamaste", etc. Outro dia perguntaram: “Dona Maria, quando foi que a senhora aprendeu Queremos Deus?” Ela respondeu: “Não sei! A gente sabe!” Nas comunidades existe um ambiente de vida que transmite as coisas sem que a gente se dá conta. Assim, no tempo de Jesus, havia um ambiente de vida, sustentado e mantido pela organização comunitária do povo em torno da sinagoga, e pelos costumes familiares. Neste ambiente, o povo aprendia os salmos de cor, quase como a respiração da vida da comunidade.
Os evangelhos ainda deixam transparecer alguns traços deste ambiente de oração da vida comunitária do tempo de Jesus, em que os salmos aparecem como parte integrante do conjunto. No Domingo de Ramos, o povo gritou espontaneamente a frase de um salmo para aclamar Jesus (Mc 21,9 e SI 118,25-26). O cântico de Maria cita mais de quatro salmos diferentes (Lc 1,46-55). Depois da Ceia Pascal, Jesus e os apóstolos saíram da sala e foram para o Horto rezando salmos (Mt 26,30). Três ou quatro das oito bem-aventuranças que Jesus proclamou para o povo são frases tiradas dos salmos (Mt 5,3-10).
Estes e outros fatos mostram que os salmos permeavam a vida do povo como o cimento permeia os tijolos e dá consistência à parede. Eles davam consistência e expressão à piedade e à fé do povo. Os salmos eram ensinados e divulgados entre o povo através das reuniões na sinagoga, através da oração em família, através das procissões e das romarias. Os salmos chamados alfabéticos facilitavam a memorização dos mesmos (SI 25, 34, 37, 111, 112, 119 e 145).
Estes sete pontos revelam o jeito usado pelo povo daquele tempo para rezar e assimilar os salmos na vida. Quem for ler e estudar os salmos com atenção, poderá descobrir muitas outras informações a respeito de cada um destes sete assuntos. Demos apenas algumas dicas.
* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.
CARMO DE BRASÍLIA: Despedida do Frei Vicente.
- Detalhes
No vídeo, imagens da despedida de Frei Vicente de Paula Maciel, O. Carm, da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo de Brasilia/DF. Fonte: Facebook (Eneida Carbonell/ Brasília). NOTA: No Capítulo Provincial deste ano, o confrade foi transferido para Belo Horizonte-MG, onde será formador dos Postulantes Carmelitas. Convento do Carmo da Lapa, Rio de Janeiro. 12 de fevereiro-2017. DIVULGAÇÃO: www.mensagensdofreipetroniodemiranda.blogspot.com
OLHAR CARMELITANO: Colocando no outro poder...
- Detalhes
Frei Fernando Millán Romeral, O. Carm. Prior Geral .
(Tradução livre)
(Fevereiro de 2017). A vida consagrada é encontrado em um momento importante, complexo e de certo modo, controverso. Por um lado, começou o processo para elaborar um novo documento que regulamente e oriente as relações entre religiosos e bispos, ou melhor, entre os religiosos e as igrejas locais. Trata-se de um novo mutuae relationes adaptado às novas realidades eclesiais, canônicas e teológicas do nosso tempo. Por outro lado, Francisco assinava no passado dia 29 de junho de 2016, a Constituição Apostólica Vultum do quaerere, sobre e para as religiosas contemplativas (aquelas "Sentinelas da aurora" como as chama o papa). Na mesma se anuncia um novo documento sobre o assunto que elabora em breve a congregação para os institutos de vida consagrada (civcsva) para a execução de alguns temas específicos. Além disso, em muitos países da Europa se estão a realizar processos (nem sempre fáceis) de união das províncias e de reestruturação das existentes que suscita reações muito variadas e às vezes provoca dificuldades e desafios de vários tipos. São apenas três exemplos do complicado período em que vivemos. Devemos viver esse tempo com espírito de discernimento, sério e responsável, mas isso não quer dizer que não possamos vivê-lo com alegria, com serenidade, com esperança e com bom ânimo.
O caso é que, no meio desses processos complexos, em não poucas ocasiões são chamados (e com paixão) o princípio da "autonomia". certamente, este princípio (autonomia das províncias, dos mosteiros, etc) nasce em certos Momentos da história da vida consagrada com um critério sábio e para evitar intromissões. Se procurava preservar estilos de vida e protegê-los, para evitar que se perderem ou que fossem manipulados e deturpadas. Portanto, era (e é) um meio válido ao serviço dos carismas, ou dos Estados de vida no seio da igreja.
Quando, no entanto, esse princípio se transforma em algo absoluto, quando se defende com unhas e dentes, quando se lhe atribui mais categoria teológica e canônico da que tem... Pois creio humildemente que algo está errado. Ninguém entrou na vida religiosa para ser independente, muito pelo contrário, para deixar que outros (as diversas mediações), com diálogo, discernimento, bom senso, coragem e obediência... sejam os que nos governam. O religioso coloca sua vida em outras mãos para satisfazer uma vontade superior, a de Deus. Se existe um princípio sagrado na vocação religiosa é, sim, o de ser "Heterónomos"...
Há dois anos, aproveitando o quinto centenário do nascimento de Santa Teresa, reli algumas de suas obras (não todas, nem com o detalhe que quisesse) e olhei a sua sabedoria espiritual e humana. Me deleite recordando algumas passagens e surpreendi-me descobrindo outros pelos que certamente passei de forma distraída há anos. E eis que no caminho da perfeição, a santa ela nos dá esta pérola: "e uma vez que as freiras fazemos o mais, que é dar a liberdade pelo amor de Deus, pondo-a num outro poder (...). Torno a dizer que está o tudo ou grande parte em perder cuidado de nós mesmos e o nosso presente; que quem de verdade começa a servir ao Senhor, o mínimo que ele pode oferecer é a vida; pois deu a sua vontade, o que teme?" (Caminho 12,1-2). Quase nada...
E Thomas Merton, outro mestre espiritual de primeira fila, reclamava tanto de uma obediência cega que levasse ao "sacrifício de o interior", ou seja, dos princípios mais sagrados, provocando assim uma espécie de inércia, passividade infantil e doidinha... como de uma autonomia que acabou tornando-se um fetiche. O monge é despachado com esta análise e escreve com um bisturi muito fino: "por outro lado, não devemos transformar a autonomia em um fetiche e ser 'Fiel' apenas a nossa própria vontade, uma vez que esta é mais uma maneira de ser infiel..."
Sei que tudo isso teria que precisa-lo muito e que é um assunto complicado e vítreo. Por onde a mão... te curtas. Mas acho que apelar demasiado à autonomia ou transformá-lo em um totem, é perigoso e até mesmo contra a própria essência da vida consagrada que nos liberta para sempre fazer a sua vontade.
Rezar os Salmos hoje-03
- Detalhes
*Frei Carlos Mesters, Carmelita.
Origem e formação do Livro dos Salmos: Espelho do que acontece hoje
Na superfície do Livro dos Salmos aparecem algumas coisas que chamam a atenção: repetições, interrupções, incertezas quanto ao autor, confusão quanto ao número dos salmos. São como janelas abertas que ajudam a entender como foi o processo de formação do Livro dos Salmos; revelam como se chegou dos salmos ao Livro dos Salmos. Como veremos, foi uma origem muito semelhante à de tantos livros de canto que hoje circulam nas nossas comunidades. Na origem de cada salmo está um salmista, um poeta, um indivíduo. Na origem do Livro dos Salmos está a comunidade, o povo. Se os 150 salmos foram transmitidos e chegaram até nós, isto não se deve à ação do salmista, mas, sim, ao povo. O povo se reconhecia neles. Os salmos eram a expressão da sua fé, esperança e amor, da sua caminhada e luta. Por isso os cantava, selecionava e conservava. Assim se chegou dos salmos ao Livro dos Salmos. Nesse capítulo, vamos ver de perto os pontos mais significativos deste processo de formação do Livro dos Salmos, e apontaremos, ao mesmo tempo, e semelhança com os livros de canto que hoje circulam nas nossas comunidades.
Um processo de formação que durou quase mil anos
Alguns salmos são bem antigos. Vêm desde o tempo de Davi que governou o povo de 1010 até 970 antes de Cristo. Outros já são mais recentes. Os últimos são, provavelmente, da época dos Macabeus, isto é, dos anos 170 a 160 a. C. Isto quer dizer que a formação do Livro dos Salmos durou quase mil anos! Por isso mesmo, é difícil saber em que época, exatamente, foi escrito este ou aquele salmo. Esta incerteza quanto à data exata da composição da maioria dos salmos, como ainda veremos, tem um significado muito importante para o seu uso pelo povo. Não sendo de nenhum tempo certo, dão certo para todo tempo!
Preces vindas de todo canto e lugar
Alguns salmos refletem o ambiente da cidade, por exemplo, o salmo que fala do vigia noturno (Sl 130, 6-7). Outros já são mais do interior, da roça: o salmo onde o sofrimento e a exploração do povo são descritos com a imagem do arado que passa pelas costas do torturado (Sl 129,3). Alguns foram feitos na Palestina (Sl 122), outros na Babilônia durante o exílio (Sl 137). Tem salmos que vêm da região do Norte, outros vêm do Sul. Eles vêm de todo canto e lugar! É como hoje: pela letra e pela melodia, você consegue reconhecer os cânticos que vêm do Nordeste ou do Sul. Na Bíblia, pela maneira de os salmos usarem o nome de Deus, os entendidos no assunto conseguem descobrir se são do Norte ou do Sul. Por exemplo, os Salmos 1 até 41 preferem chamar Deus de Javé ou Yhwh (traduzido em algumas Bíblias por Senhor), enquanto os Salmos 42 até 89 preferem usar o nome Elohim, traduzido por Deus. Mesmo assim, na maioria dos casos, é muito difícil saber em que lugar, exatamente, este ou aquele foi escrito. Aqui vale o mesmo que dissemos a respeito da época. Não sendo de nenhum lugar certo, dão certo para todo lugar!
Oração dos pobres
Antes da reforma de Josias em 620 a.C., havia muitos pequenos santuários espalhados pelo país. Cada um deles lembrava algum fato importante da história do povo de Deus. Nas festas, os romeiros iam lá para fazer as suas preces, oferecer os seus dons e cumprir suas promessas. Os sacerdotes e os levitas os recebiam e com eles rezavam. Nestes pequenos santuários, o povo do interior, os pobres, derramavam a sua alma diante do Senhor.
Numa destas romarias para o santuário de Silo, Ana, a mãe de Samuel, foi rezar no santuário. O sacerdote Eli pensou que ela estivesse embriagada e pediu para ela voltar mais tarde, depois que o efeito do vinho tivesse passado. Ela respondeu: “Não, Senhor! Eu sou uma mulher atribulada. Não bebi vinho nem bebida forte. Mas derramo minha alma na presença do Senhor. Não julgues a tua serva como uma vadia! É que estou muito triste e aflita. Por isso estou rezando até agora!” (1Sm 1,15-16). Este fato nos dá uma idéia de como era o ambiente de oração naqueles santuários. Ora, foi neste ambiente dos santuários, centros de romaria, que surgiram muitos salmos, sobretudo os salmos de lamento, os salmos dos pobres, salmos anônimos.
Cânticos populares
Os salmos foram surgindo, e o povo os cantava. Cantando, foi selecionando e conservando, modificando uns e esquecendo outros. Hoje, por exemplo, certos cânticos das Campanhas da Fraternidade já foram esquecidos. Ninguém mais lembra deles. Mas se perguntar: “Vocês conhecem Prova de Amor?”, todo mundo conhece. Pouca gente, porém, lembra o autor e a data deste canto. Se perguntar: “Quem fez Jesus Cristo, eu estou aqui?”, muita gente vai saber que foi Roberto Carlos. O mesmo acontecia com os salmos. O povo lembrava o autor de alguns; de outros, já não lembrava, ou estava em dúvida.
Na Bíblia Hebraica, dos 150 salmos, uma terça parte, isto é, 49 salmos, é anônima. Não tem autor. No título do Salmo 72, se diz: “De Salomão” (Sl 72,1). No fim do mesmo salmo, se diz: “Fim das orações de Davi” (Sl 72,20). Ficou a dúvida: é de Davi ou de Salomão? Hoje em dia, às vezes, a gente não sabe se a música é do padre Zezinho ou da Irmã Miriam.
Coleções de salmos
O Livro dos Salmos parece uma colcha de retalhos. Os retalhos vêm das coleções de salmos que já deviam existir antes do livro. Um simples levantamento dos títulos dos salmos oferece o seguinte quadro geral:
- Os salmos 3 até 41 são de Davi (menos o salmo 33);
- Os salmos 42 até 49 são dos filhos de Coré;
- Os salmos 51 até 65 são de Davi;
- Os salmos 68 até 70 são igualmente de Davi;
- Os salmos 72 até 83 são de Asaf;
- Os salmos 84 até 88 são dos filhos de Coré (salmo 86 é de Davi);
- Os salmos 105 até 107 começam com Aleluia;
- Os salmos 111 até 118 começam com Aleluia (menos o salmo 115);
- Os salmos 120 até 134 são indicados como Cânticos das Subidas;
- Os salmos 135 e 136 começam novamente com Aleluia
- Os salmos 146 até 150 também começam com Aleluia.
Este quadro mostra que, antes da existência do Livro dos Salmos, havia dois tipos de coleções: 1. Salmos para determinadas ocasiões e solenidades: por exemplo Subidas, isto é, para as romarias; 2. Salmos-Aleluia, isto é, para festas de louvor. Até hoje, é em torno deste mesmo duplo critério que se fazem as coleções de canto.
Canto repetido, canto modificado
Às vezes, um canto do Sul do Brasil reaparece no Nordeste com outra letra e outra melodia. Parece até um canto diferente. Quando o povo gosta de um canto e com ele se identifica, ele o vai adaptando, modificando letra e melodia. O mesmo canto, modificado ou não, aparece em várias coleções. O mesmo acontecia com os salmos. Foram surgindo aquelas coleções, por exemplo, para as romarias ou para as várias festas. Para as romarias surgiu a coleção dos Cânticos das Subidas (salmos 120 a 134). Para a festa de Javé Rei e Juiz surgiram os Salmos 93 até 100. Os mesmos salmos apareciam em várias coleções. Na edição final do Livro dos Salmos, estas coleções foram remanejadas entre si e reunidas numa unidade maior.
Isto explica as repetições que existem dentro do Livro dos Salmos: Por exemplo, o Salmo 14 é igual ao salmo 53. O Salmo 70 é quase igual aos versículos 14 a 18 do Salmo 40. A primeira metade do Salmo 108 está repetida no Salmo 57: Sl 108,2-6 é igual ao Sl 57,8-12; a segunda metade do mesmo salmo está repetida no Salmo 60: Sl 108,7-14 é igual ao Sl 60,7-14. O salmo repetido é, cada vez, de outra coleção. Se o Livro dos Salmos fosse uma única coleção de um único autor, não haveria tais repetições.
Davi, o autor dos salmos
A Bíblia Hebraica atribui 73 salmos a Davi, 12 a Asaf, 11 aos filhos de Coré, 2 a Salomão, 1 a Moisés, a Ernã e a Etã. Os outros salmos são anônimos. Na tradução grega, chamada a Setenta, do século III antes de Cristo, há 82 salmos de Davi, isto é, 9 a mais do que no original hebraico. E no tempo de Jesus, era comum atribuir todos os salmos a Davi (cf. Lc 20,42). Como se explica esta vontade de querer atribuir um número cada vez maior de salmos a Davi? Qual o sentido de dizer que os salmos são de Davi?
Depois do exílio, Davi tornou-se a expressão maior da esperança e do ideal de vida do povo. Eles esperavam um novo rei Davi para restabelecer o direito pisado dos pobres (cf. Sl 72,1-3; 78,70; 89,4.21; 132,1.10.17; 14,10). Para o povo daquele tempo, Davi era o que os Santos são para muitos de nós hoje: um ideal a ser imitado. O Livro das Crônicas, por exemplo, que é daquela época do pós-exílio, omite todos os pecados de Davi e o apresenta como um homem santo e perfeito. Davi era herói que encarnava o ideal do povo. É daí que nascia uma vontade muito grande de identificação com Davi. Eles queriam ter em si os mesmos sentimentos que animaram a Davi na sua luta. Queriam “rezar como Davi rezou, cantar como Davi cantou”. Por isso, para eles era muito importante poder dizer que um salmo era de Davi. Quanto mais salmos de Davi, tanto melhor! Isto ajudava o povo a viver melhor o ideal e a realizar a sua missão. É por isso que a tradução grega tirou vários salmos do anonimato e começou a atribuí-los a Davi. No tempo de Jesus, já era opinião comum do povo: todos os salmos são de Davi. Nisso tudo se reflete a vontade do povo de ser fiel.
Os cinco livros dos salmos: o lado orante da Lei de Deus
Cada livro de canto tem uma certa divisão e subdivisão interna. A maneira de dividir o assunto depende do critério que o editor adota: cantos para a missa, cantos para as grandes festas do ano litúrgico, cantos para reuniões e assembléias, etc. O editor final do Livro dos Salmos também teve o seu critério para dividir em cinco partes os 150 salmos que ele conseguiu reunir. Dentro do Livro dos Salmos, ocorrem quatro interrupções mais ou menos semelhantes. As quatro ocorrem no fim dos Salmos 41, 72, 89 e 106, e tem a forma de um refrão de louvor: “Bendito seja o Senhor, o Deus de Israel, desde agora e para sempre! Amém! Amém!” (Sl 41,14; 72,18-19; 89,53; 106,48). Estas quatro interrupções dividem o Livro dos Salmos em cinco unidades menores: a primeira de 1 até 41; a segunda de 42 até 72; a terceira de 73 até 89; a quarta de 90 até 106; e a quinta de 107 até 150. No fim do Salmo 72, ele até deixou a marca dizendo: “Fim das orações de Davi” (Sl 72,20); fim de uma unidade, começo de uma outra. Dividindo o Livro dos Salmos em cinco partes, o editor imitou o Pentateuco, o Livro da Lei de Deus, que também tem cinco partes. Deste modo, ele nos apresentou o Livro dos Salmos como o lado orante da Lei de Deus.
Enumeração confusa
Quando, nas reuniões, se pede: “Vamos rezar o Salmo 50!”, tem gente que abre a Bíblia no Salmo 49, outros no Salmo 50, outros ainda no Salmo 51. Esta confusão não é de hoje. Ela começou, muito provavelmente, quando, em torno do ano 250 antes de Cristo, foi feita a tradução grega da Bíblia, chamada a Setenta. Ela foi feita quando o Livro dos Salmos ainda estava em fase de formação. Quando o tradutor chegou no Salmo 10, ele pensou que fosse a continuação do Salmo 9, e traduziu os dois como se fossem duas partes do mesmo salmo. Por isso, ele deu o número 10 para o salmo que, na Bíblia Hebraica, tinha o número 11. Outros acham que algum copista, ao transcrever o texto hebraico, chegou na metade do Salmo 9 e pensou que fosse o começo de um novo salmo. Qualquer que tenha sido a causa, o fato é que existe a diferença dos números entre a Bíblia Hebraica e a tradução grega. A Igreja Católica sempre seguiu a enumeração da tradução grega, que foi mantida na Vulgata (tradução latina), no breviário do clero e nas traduções em outras línguas. Os Protestantes seguem a enumeração original da Bíblia Hebraica, que está sendo retomada hoje pela “Bíblia de Jerusalém” e por várias outras traduções católicas. Muitas Bíbia colocam o número da Bíblia hebraica entre parêntesis. Por exemplo: Salmo 50(51). Outros fazem o contrário e colocam o grego entre parêntesis. Por exemplo: Salmo 51(50). Eis o esquema das diferenças na enumeração dos salmos:
Bíblia Hebraica Tradução Grega
1-8 1-8
9-10 9
11-113 10-112
114-115 113
116 114-115
117-146 116-145
147 146-147
148-150 148-150
O conteúdo final do Livro dos Salmos
O título hebraico do Livro dos Salmos é Sefer Tehilim, isto é, Livro dos Hinos. Mas dentro do Livro dos Hinos só tem um único salmo que é apresentado explicitamente como Hino ou Tehilah, também traduzido por Louvor (Sl 145,1). Na tradução grega, o título é Biblos Psalmon, isto é, Livro dos Salmos. A palavra psalmos ou salmo, originalmente, indicava um tipo de canto que devia ser acompanhado com um instrumento de cordas chamado psaltérion. Mas dentro do Livro dos Salmos só tem 57 dos 150 que são apresentados explicitamente como psalmos. Os outros são apresentados como oração (Sl 86,1), como poema (Sl 89,1), como súplica (Sl 90,1), como aleluia (Sl 107,1), como salmo-cântico (Sl 83,1), etc. Esta diversidade mostra como foi difícil para eles identificar o conteúdo do Livro dos Salmos: hino, salmo, cântico, oração, poema, lamento, súplica! Tem de tudo! É difícil classificar a vida debaixo de um denominador comum.
Uma vez pronto, o Livro dos Salmos começou a exercer uma função muito importante na vida do povo de Deus:
* conservava a memória, pois lembrava os fatos mais importantes da história;
* educava o povo, pois trazia os grandes apelos dos profetas e dos sábios;
* ajudava a manter a fé, a esperança e o amor;
* cobrava o compromisso de fidelidade;
* animava a caminhada; possibilitava ao povo o contato direto com Deus.
Numa palavra, o Livro dos Salmos era amostra, modelo e muleta de arrimo. Era o manual de reza, o livro de canto. O Livro dos Salmos era e é a lei orante do povo de Deus!
* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.
CARMELITAS NO BRASIL: Um olhar.
- Detalhes
Rezar os Salmos hoje-02
- Detalhes
(VEJA O PRIMEIRO VÍDEO, COM FREI PETRÔNIO DE MIRANDA, CARMELITA)
*Frei Carlos Mesters, Carmelita.
O lugar que o Livro dos Salmos ocupa dentro da Bíblia
Há três tipos de livros no Antigo Testamento: livros de história, livros de sabedoria, e livros de profecia. O Livro dos Salmos costuma ser colocado entre os Livros de Sabedoria. Mas o curioso é o seguinte: nos salmos não tem só sabedoria, mas também história e profecia. E nos Livros de Profecia, de História e de Sabedoria não tem só Profecia, História e Sabedoria, mas também tem salmos! Só uma pequena parte dos salmos da Bíblia está no Livro dos Salmos; a outra parte, bem maior, está espalhada pelo resto da Bíblia, até no Novo Testamento.
Algo semelhante acontece com o tempo em que os salmos foram escritos. Há salmos que foram feitos antes do começo do Livro dos Salmos: o Cântico de Miriam (Ex 15,21), de Moisés (Ex 15,1-18), de Débora (Jz 5,1-31, de Ana (1Sm 2,1-10). E há salmos que foram feitos depois que o Livro dos Salmos já estava completo e terminado: O Cântico de Maria (Lc 1,46-55), de Zacarias (Lc 1,67-79), de Simeão (Lc 2,29-32) e vários outros, copiados por Paulo nas suas cartas (1Cor 13,1-13; Fl 2,6-11).
Estas observações tão simples e tão evidentes sobre o tempo e o lugar dos salmos dentro da Bíblia permitem tirar quatro conclusões muito importantes?
O Livro dos Salmos não pretende ter o monopólio da oração; pretende ser apenas uma amostra de como o povo de Deus rezava naquele tempo.
- O Livro dos Salmos oferece um modelo de como se pode orar. Quer provocar a criatividade e suscitar novos salmos, como de fato suscitou em muitas pessoas. O próprio Jesus chegou a fazer um salmo (Mt 6,11-13).
- O Livro dos Salmos serve como muleta na hora da precisão. Pois tem momentos na vida em que a pessoa já não sabe como e o que rezar. Mesmo querendo, não encontra palavras. Ele se sente “como a terra seca do sertão à espera da chuva” (Sl 63,2). Numa hora dessas é bom a gente poder recorrer aos salmos e pedir emprestado palavras antigas e seguras para dirigir-se a Deus. Foi o que Jesus fez na hora da sua morte: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Sl 22,2).
- Na vida do povo de Deus, a prece não é um setor separado do resto da história. Pelo contrário! Há um vai-vem constante entre a prece e a vida. O povo rezava e celebrava a sua caminhada.
Duas comparações para resumir o que foi dito:
- a) A Bíblia é como uma casa à beira do rio. Você vê o reflexo da casa na água do rio. O rio é a oração do povo; são os salmos. Neles você vê o reflexo de toda a vida do povo. Os salmos são o lado orante da história, da profecia, da sabedoria; o lado orante da caminhada!
- b) O Livro dos Salmos é como a caixa d’água. Parte da água está dentro da caixa, parte dela está nos muitos canos que percorrem a casa. Canos de dois tipos: os que conduzem a água da fonte até a caixa, e os que levam a água da caixa até as torneiras.
* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters,, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.
CAPÍTULO PROVINCIAL-2017: O desafio da vida religiosa no Brasil- 01.
- Detalhes
No áudio, a irmã Maria Inês Vieira Ribeiro, da Congregação das Mensageiras do Amor Divino- Presidente da Conferência dos Religiosos do Brasil- CRB, fala sobre os desafios da Vida Religiosa no Brasil. (1ª Parte).
NOTA: O Capítulo da Província Carmelitana de Santo Elias- Carmelitas da Ordem do Carmo, aconteceu entre os dias 23-27 de janeiro de 2017 na Casa de Encontros Emaús, em Embu das Artes/ Itapecerica da Serra, São Paulo. Convento do Carmo da Lapa, Rio de Janeiro. 8 de fevereiro-2017. DIVULGAÇÃO: www.mensagensdofreipetroniodemiranda.blogspot.com
Rezar os Salmos hoje-01
- Detalhes
*Frei Carlos Mesters, Carmelita.
Não é tão fácil rezar os salmos hoje. As dificuldades são muitas. Algumas vêm dos próprios salmos, da sua linguagem e do seu conteúdo. Outras vêm das pessoas que rezam, da comunidade. Outras ainda vêm da situação que vivemos, da nossa realidade. Algumas dificuldades têm respostas e se resolvem. Outras só se resolvem na medida em que forem assumidas como desafios da própria caminhada.
Dificuldades que vêm dos próprios salmos
- a) Violência, vingança, agressividade.
Há salmos extremamente violentos e agressivos. Alguns exemplos:
- “Feliz quem agarrar e esmagar teus nenês contra a rocha” (Sl 137,9). Uma coisa assim a gente não deseja nem para o pior inimigo. Como dirigir uma prece assim a Deus?
- “Ele feriu reis poderosos, porque eterno é seu amor! Matou reis famosos, porque eterno é seu amor!” (Sl 136,17.18). Não estamos acostumados a celebrar a morte dos inimigos como expressão do amor de Deus por nós!
- Salmo 109 pede vingança contra o inimigo. Entre outras coisas (Sl 109,6-15), ele pede a Deus “que a mulher dele se torne viúva e os filhos órfãos” (Sl 109,9). E assim há vários outros salmos.
- b) A ira violenta de Deus que provoca medo
2,5.12: A ira de Deus se inflama rápida
6,2: não me castigues com tua ira
7,7: levanta-te com tua ira contra os abusos dos meus opressores
21,10: Deus os engolirá com a sua ira
27,9: não afastes teu servo com ira, pois tu és o meu socorro
30,6: sua ira dura um momento, mas seu favor dura pela vida inteira
38,4: por causa da tua ira nada em meu corpo está intacto
56,8: Ó Deus, derruba com tua ira os povos
59,14: que tua cólera os destrua, os destrua e não existam mais
69,25: Derrama sobre ele o teu furor e o ardor da tua ira os atinja
74,1: por que arder em ira contra as ovelhas do teu rebanho
76,8: Tu és terrível. Quem pode resistir à tua frente quando ficas irado?
78,21: Deus se enfureceu .. a sua ira se ergueu contra Israel.
38: ele é compassivo e reprimia sua ira muitas vezes
79,5-6: Derrama o teu furor sobros que não te conhecem
85,6: Ficará irado conosco para sempre
86,15: Tu és piedade e compaixão: lenta para a cólera e cheio de amor
88,17: tua cólera pesa sobre mim: teus furores passaram sobre mim
90,7: tua ira nos consumiu, teu furor nos transtornou
95,11: jurei na minha ira: jamais entrarão no meu repouso
102,11: por causa da tua ira me elevaste e me jogaste no chão
103,8: Javé é compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor.
O problema é triplo: 1) O contraste com o ensinamento de Jesus que manda amar os inimigos (Mt 5,44) e perdoar 70 vezes sete (Mt 18,22). 2) O contraste com o sentimento humano nosso de hoje que não consegue ser tão agressivo a ponto de pedir que alguém esmague as crianças do inimigo contra a rocha. 3) Até hoje, estas frases estão na Bíblia. Não foram censuradas. São Palavras de Deus para nós. Como entendê-las? Como rezá-las?
Qual a sua mensagem?
- c) Imagens estranhas, linguagem difícil, fatos desconhecidos.
Os salmos usam comparações estranhas. Por exemplo, comparam a fraternidade com óleo derramado sobre a cabeça de Aarão, que desce pela barba até nas roupas (Sl 133,2). Alguns salmos estão cheios de nomes difíceis que se referem a pessoas e lugares desconhecidos para nós (Sl 60,8-11; 83,7-12). Outros salmos celebram fatos que não conhecemos e de que não participamos. Por exemplo, Meriba e Massa (Sl 95,8). É difícil celebrar algo que a gente não viveu nem conheceu.
d) Tradução que não traduz
Nem sempre é possível traduzir de tal modo que as palavras brasileiras evoquem em nós o mesmo que as palavras hebraicas evocavam no povo daquele tempo. Uma Bíblia traduz: “Minha vida está ligada a ti, e tua direita me sustenta” (Sl 63,9). Naquele tempo, esta frase evocava a imagem tão familiar da criança agarrada nas costas do pai que a segura e a sustenta com os braços. Uma tradução mais fiel poderia ser: “Eu me agarro a ti, e tu me seguras com tuas mãos”. Traduzir não é fácil.
* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.
*OLHAR CARMELITANO: A Regra do Carmo- Coração puro e consciência serena”.
- Detalhes
Frei João Marcos Santos Oliveira, O. Carm
RESUMO
Reconhecendo a riqueza dos detalhes da Regra dos Irmãos da Bem Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, este trabalho busca evidenciar o tema do “coração puro e consciência serena”, caminho místico de conversão e união esponsal com o Criador, abordando as características conceituais dos termos em destaque junto à leitura antropológica, contextualização teológica, intertextualidade bíblica e traços da história e tesouro da espiritualidade carmelitana.
O intento é aprofundar o conhecimento sobre este aspecto da espiritualidade carmelitana e abrir horizontes para uma vivência mais autêntica do carisma, à luz da tradição da Ordem e das necessidades atuais da Igreja de Cristo.
Ordem do Carmo – Regra Carmelitana – Coração – Consciência – Espiritualidade...
*Leia na íntegra. Clique aqui:
http://mensagensdofreipetroniodemiranda.blogspot.com.br/2017/02/regra-do-carmo-o-coracao-puro-e.html
OLHAR CARMELITANO: Eremitas no Monte Carmelo
- Detalhes
As informações sobre eremitas ocidentais que vieram à Terra Santa na época das Cruzadas, estabelecendo-se no Monte Carmelo em meados do século XII, são escassas. No entanto, é aí que encontramos as raízes da futura Ordem do Carmo. Há um documento de notável valor histórico proveniente de Jacques de Vitry (1180-1254), bispo de Acre, entre 1216 e 1228. Na sua obra Historia Orientalis (capítulos 51 e 52) descreve o que chama de ‘renascimento da Igreja’ naquelas regiões e faz menção de eremitas que moram no Carmelo ‘perto da fonte de Elias’:
“Desde então iniciou-se o reflorescimento da Igreja Oriental e a expansão da vida religiosa no Oriente. A vinha do Senhor brotou novamente. Parecia realizada a palavra dos Cânticos: o inverno passou e as chuvas pararam; nos campos reapareceram as flores, chegou o tempo da poda.
Pois, das diversas partes do mundo, de todas as línguas e raças, de todas as nações, confluíram à Terra Santa piedosos peregrinos e religiosos, atraídos pela fama dos Lugares Santos. Igrejas antigas foram restauradas. Graças à liberalidade dos príncipes e às esmolas dos fiéis, foram reedificados mosteiros religiosos e, por toda a parte, as igrejas providas suficiente e dignamente de ministros e de alfaias necessárias para o culto divino.
Varões santos, despedindo-se do mundo, impelidos por diferentes sentimentos e desejos e inflamados pelo amor do serviço divino, escolheram lugares, cada um conforme o próprio ideal e piedade. Uns, seduzidos pelo exemplo de Nosso Senhor, preferiram a vida eremítica naquele deserto inesquecível de Quarantena, onde Jesus jejuou quarenta dias depois do batismo, e aí lutavam heroicamente para o Senhor, vivendo em pequenas celas. Outros, imitando o exemplo do homem santo e solitário, que foi o profeta Elias, professavam a vida eremítica no monte Carmelo, sobretudo na parte que se avança sobre a cidade de Porfíria, a atual Haifa, próxima de uma fonte, conhecida como a Fonte de Elias, não longe do mosteiro de Santa Margarida. E ali, como abelhas do Senhor, produziam o mel da doçura espiritual nas colmeias das suas humildes celas”.
Jacques de Vitry — como ele mesmo diz no prefácio de seu livro — visitou pessoalmente os lugares por ele descritos, o que confere ainda maior valor a seu relato. Provavelmente se trata de dois grupos distintos de ‘monges’. Uns são latinos isto é, provenientes do Ocidente, outros gregos, como deparamos de dados contidos num manuscrito do primeiro quartel do século XIII, intitulado: Les chemins et les pelegrinages de la Terre Sainte.
“Perto da Abadia de Santa Margarida, na vertente do mesmo Monte [Carmelo], depara-se um lugar mui pitoresco, onde moram monges latinos que se chamam Irmão do Carmelo. Ali existe ainda uma pequena capela de Nossa Senhora. Há naquele terreno grande abundância de águas saudáveis, que jorram dos penhascos. A Abadia [de Santa Margarida] dos Gregos dista dos eremitas latinos uma légua e meia”.
A nós interessam mais diretamente os eremitas do Monte Carmelo que procedem do Ocidente, liderados por um certo ‘B’. “Eram eremitas leigos que peregrinaram da Europa Ocidental para a Terra Santa, provavelmente com o voto de ficar aí para sempre. Não sabemos como era precisamente o relacionamento deles com ‘B’. Talvez tenham chegado à Terra Santa sob a direção dele. Talvez ‘B’ morasse como eremita no Monte Carmelo e tomasse sob a sua responsabilidade os eremitas que chegaram aí. É certo, porém, que ainda não se tinha, ligado uns aos outros por um voto religioso”. (5)
Tradicionalmente o Monte Carmelo é um ‘lugar santo’, indicado como a residência habitual do grande profeta Elias. Ainda restam traços de grutas naturais de anacoretas que, ao longo dos tempos, viviam naquele local. O Carmelo atrai a muitos que ‘procuram a face de Deus’, pois é o lugar onde Deus ‘se faz conhecer’ e onde se experimenta ‘quem Ele é’ (cf. 1Rs 18,20-40). Devida à sua rica vegetação — Carmelo significa também ‘jardim’ — tornou-se em Israel um símbolo de graça e prosperidade.
Os eremitas procuraram esse lugar como espaço privilegiado de libertação interior e purificação de coração. É igualmente lá que podiam contemplar e saborear o poder e a doçura da presença divina. Além disso, a solidão e o despojamento proporcionavam uma transformação da pessoa, obra de Deus nele, resultando numa profunda unificação interior. Trata-se, na verdade, de uma crescente identificação com Cristo.
A categoria espiritual de deserto possui, inegavelmente, uma dimensão profética. Denuncia a fixação em ‘valores que passam’ e aquele que nele se adentra percebe mais claramente a transitoriedade da vida com a experiência de que ‘só Deus é absoluto’.
O deserto também é visto como ‘lugar de luta’ contra tudo que obstaculiza a ação de Deus, dentro e fora do cristão. Deste modo torna-se um espaço privilegiado de militância contra as forças do mal e isso em nome da própria coerência evangélica.
Sobre a vida dos peregrinos eremitas que se estabeleceram no Monte Carmelo, na época das Cruzadas, pouco sabemos com certeza. Tudo indica que moravam isoladamente, sem nenhuma organização específica. O que os unia era o espírito de Elias e seu ideal de vida, realizado “num ambiente de simplicidade de estruturas, que favorecia a solidão e a oração. Mas o grupo, de fato, não limitava sua experiência unicamente ao aspecto eremítico (o deserto, a solidão), mas o ampliava pelo obsequium Iesu Christi, vivido na Terra Santa, ao serviço (solatium) da própria Terra Santa. A escolha do lugar para a própria moradia pelos eremitas latinos no Wadi ain es-Siah (= vale do peregrino ou vale dos ermitães), que, além de oferecer grutas e ambiente para a vida solitária, era também o caminho principal dos peregrinos entre Accon e Cesareia, parece falar deste serviço porque é fácil supô-lo pensando nos costumes e exigências dos peregrinos que, a cada ano, chegavam mais numerosos. Neste caso se poderia pensar que os primeiros carmelitas tinham apostolado que poderia ser incluído em justas ocasiões, nas quais fala a Regra, com dispensa da permanência contínua nas celas”.
OLHAR CARMELITANO: Hábito e escudo do Carmo
- Detalhes
Em geral podemos dizer que a veste religiosa (‘o hábito’) é sinal de consagração a Deus. Ao mesmo tempo, significa a pertença a uma determinada Família Religiosa na Igreja. Manifesta externamente uma realidade interior de alguém que em Deus encontrou sua riqueza principal e, por isso, deixou de lado a ostentação de um vestuário pessoal. Neste sentido o hábito é também expressão de pobreza e simplicidade evangélicas.
Nos textos constitucionais do século XIII aparecem os diversos elementos do hábito carmelitano: uma túnica de lã crua, isto é, não tingida; o escapulário que, originalmente, formava uma só peça com o capuz. Sobre a túnica — ajustada por um cinto de couro — e o escapulário, vestia-se a capa, também de lá crua (‘barrada’ ou listrada inicialmente, sendo inteiramente branca a partir do Capítulo de Montpellier, 1287), interpretada como sinal de ‘humildade, honestidade e pobreza’. Revestido com a veste branca do batismo, os religiosos do Carmo deveriam seguir o Cordeiro imaculado com reta consciência e coração puro. No século XIV, João Baconthorp (+1348) começa dar à capa branca um sentido mariano, sendo, na sua opinião, um símbolo externo da pureza e virgindade da Mãe de Deus.
O escudo do Carmo — impresso, pela primeira vez, em 1499 — traz três estrelas cada uma com seis pontas. Tradicionalmente a estrela inferior representa a Virgem Maria, enquanto as duas superiores fazem referência ao profeta Elias e seu discípulo Eliseu. Nesta interpretação as estrelas indicariam a índole Mariana da Ordem e sua inspiração Eliana.
OLHAR CARMELITANO: A fundação do Carmo no Brasil
- Detalhes
Em 1557, faleceu o 15º rei de Portugal, Dom João III, sendo herdeiro do trono seu neto, Dom Sebastião, com apenas três anos de idade. Durante sua menoridade governaram, na qualidade de regente, a avó, Dona Catarina da Áustria, e o tio-avô, Cardeal Dom Henrique, até que atingisse os 14 anos. De fato, em 1517? Dom Sebastião assumiu pessoalmente o governo, mas desapareceu misteriosamente, em 1578, na Batalha de Alcácer-Quibir, na luta contra os Mouros, em Marrocos, Norte da África. Com 66 anos, o Cardeal Dom Henrique teve de assumir, de novo, o trono real. Logo se apresentou o problema da sucessão. Efetivamente, tendo falecido em 1580, sem deixar herdeiros, os direitos da monarquia portuguesa foram reclamados pelo rei da Espanha, Filipe II, que, facilmente, venceu pretendentes politicamente mais frágeis. Iniciou-se, então, a chamada ‘União Ibérica’. Embora, a rigor, não se trate de uma anexação, a união de coroas favoreceu muito a Espanha, em detrimento de Portugal. Sofreram sobretudo as relações exteriores de ordem comercial.
Foi durante o breve governo de Dom Henrique que os primeiros Carmelitas desembarcaram no Brasil. Recorremos a uma fonte obrigatória, na qual o fato é relatado com detalhes. Referimo-nos a Manuel de Sá (1694-1735), cronista da Província portuguesa, que deixou duas obras impressas de grande valor para o conhecimento do Carmo lusitano. Como observou o historiador frei Balbino Velasco Bayón, O.Carm., na sua obra História da Ordem do Carmo em Portugal (2001), Manuel de Sá utilizou documentos que, talvez, hoje tenhamos que dar por desaparecidos. Segundo sua Crônica, Dom Henrique “resolveu que se fundasse a Paraíba, para o que mandou preparar uma poderosa armada, nomeando por cabo dela a Frutuoso Barbosa, fidalgo da sua Casa”. E ainda — segundo a mesma fonte — teria sido o próprio monarca que ordenou ao comandante que lavasse consigo alguns religiosos carmelitas, para trabalhar na ‘conversão dos infiéis’. Por explícita solicitação do rei, Frutuoso teria se dirigido, então, aos superiores do Carmo em Lisboa. Era provincial recém-eleito, frei Damião da Costa, mas pelo fato de ainda não ter sido confirmado no cargo, a província estava, naquele momento, nas mãos do primeiro definidor (conselheiro), frei João Caiado, na qualidade de vigário provincial. Este deu pleno apoio ao pedido formulado. Na ‘carta obediencial’, expedida em 26 de janeiro de 1580, lemos:
“Mandamos aos religiosíssimos Padres Frei Domingos Freire, Frei Alberto de Santa Maria, Frei Bernardo Pimentel e Frei Antônio Pinheiro, todos varões de provada religião, sacerdotes professos da nossa Ordem, que acompanhem ao sobredito Capitão, na viagem que se há de fazer para edificar a cidade de Paraíba, onde poderão fundar mosteiro desta Ordem, a que intitularão Nossa Senhora da Vitória. E não só nesta terra, mas também em Pernambuco e em todos aqueles lugares que lhes oferecerem, sendo convenientes ao serviço de Deus e das almas dos próximos e bem da religião.
E nas tais regiões o Padre Domingos Freire pregará o Evangelho de Cristo e ouvirá de confissão, e os demais padres seus companheiros, se parecer assim ao Reverendíssimo Ordinário do lugar. E exercitarão os demais ofícios, assim de sacerdotes como de religiosos.
E constituímos para seu Vigário ao padre frei Domingos Freire, ao qual terão obediência e respeito como devem a seu prelado. E lhe cometemos as nossas vezes e poderes, e lhe damos o cuidado dos ditos religiosos, assim no temporal como no espiritual. E poderá, por comissão do nosso Reverendíssimo Padre Geral, Mestre Frei João Batista Rúbeo de Ravena, receber à nossa Irmandade todos aqueles que, com piedade e devoção, o pedirem. E dar aos Irmãos as letras concedidas pelo papa Clemente VII, e confirmadas pelo Papa Gregório XIII. E não só fará isto, mas tudo o mais que nós fizéramos se presentes estivéssemos, seguindo sempre as ordens do Reverendo Padre Prior do nosso convento de Lisboa, ao qual determinadamente obedecerão enquanto no Capítulo Provincial se não determinar o contrário.
E pedimos com toda aquela submissão e caridade ao Reverendíssimo Bispo do Brasil e a seus Curas e Vigários, que aos sobreditos Padres recebam com benignidade e caridade e usem de seu ministério e indústria para saúde das almas. Dada neste nosso Convento de Lisboa, sob nosso sinal e selo do nosso Ofício, em vinte e seis de Janeiro de 1580. — Frei João Caiado”. (30)
É bem possível que, por ocasião do envio ao Brasil dos primeiros missionários portugueses, a Província do Carmo em Portugal contava com aproximadamente 200 religiosos. Ainda de acordo com o relato de Manuel de Sá, os Carmelitas foram recebidos em Pernambuco — para onde se desviou a expedição por causa de forte temporal — “com sinais de grande afeto”, tanto do Bispo da Bahia, Dom Frei Antônio Barreiros (1576-1596), como do Clero local e da população em geral. Começaram imediatamente seu trabalho apostólico entre os gentios ’para sua conversão’, e entre os convertidos ‘para a reforma de seus costumes’. (31) Não demorou — conta frei Tarcísio Meinen (32) — “que os oficiais da Câmara de Olinda lhes oferecessem vasto terreno com uma capelinha de Santo Antônio, para que pudessem fundar aí o seu primeiro convento e igreja”.
O Capítulo Provincial de Beja, realizado em Portugal no ano de 1583, confirmou oficialmente a fundação. Com a licença do Capitão de Pernambuco, Jerônimo de Albuquerque Coelho, os Carmelitas começaram imediatamente a construção do primitivo convento onde entraram em 1584.
Com a chegada de novos frades de Portugal, quatro religiosos partiram para Salvador (1585-1586). Receberam em doação de Antônio Dias Calafate e sua mulher um terreno nos arrebaldes da cidade, conhecido por ‘Monte Calvário’, uma colina onde — segundo o historiador jesuíto Serafim Leite — havia, no tempo de Tomé de Sousa, uma aldeia indígena. Nova doação, incluindo um terreno e uma capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade, foi realizada, em 1592, por Cristóvão de Aguiar Daltro e sua esposa.
Chefiados por frei Pedro Viana — eleito Comissário dos Conventos no Brasil, durante o Capítulo Provincial de 1587, em Lisboa — outros Carmelitas seguiram para o sul, desembarcando na Vila de Santos, antiga Capitania de São Vicente. Em 24 de abril de 1589, José de Adorno e sua mulher, Catarina Monteiro, doaram a Ermida de Nossa Senhora da Graça, com seus ornamentos. Brás Cubas doou as terras vizinhas, em agosto daquele ano, com ato de posse registrado em 1o de setembro de 1589.
“No ano seguinte (1590), os Carmelitas chegaram ao Rio de Janeiro. Após alguma hesitação entre o Morro de Santo Antônio (já chamado Morro do Carmo, quando correram notícias sobre uma possível fundação) e outra oferta, Frei Pedro Viana resolveu aceitar esta, a Ermida de Nossa Senhora do Ó, juntamente com o terreno necessário para a construção do convento, oferecido pelos Oficiais da Câmara, por ser um sítio bem mais conveniente. Por escritura de 28 de abril de 1590, receberam os carmelitas mais uma légua de terras, de Jorge Ferreira, para ‘a casa de Nossa Senhora do Carmo que se há de fazer nesta cidade, para ajuda e sustentamento’.” (33)
Por fim, em 1594, os frades do Carmo subiram o Planalto de Piratininga, onde foi feita outra fundação, primeira presença da Ordem na futura cidade de São Paulo. Assim, em 1595, já eram cinco os conventos do Carmo no Brasil.
No dia 15 de janeiro de 1595, no Capítulo Provincial presidido por Frei João Estevão Chizzolla, Prior-geral da Ordem, em Lisboa, foram confirmados os priores dos conventos brasileiros e estabelecidas as seguintes medidas: Os conventos da Ordem no Brasil formam uma vigararia (vice-província), governada por um Vigário Provincial, eleito nos Capítulos pelo Definitório (Conselho) da Província de Portugal. O Vigário Provincial do Brasil tem voto e lugar nos Capítulos Provinciais. Caso venha a falecer, será imediatamente substituído pelo prior do convento de Olinda, até que o Definitório preencha a vaga. No mesmo Capítulo elegeu-se Frei João Seixas como primeiro Vigário Provincial do Brasil.
A direção da recém-erguida Vigararia logo deu continuidade às fundações. Foi confirmada a de São Paulo (1595). Seguiram: São Cristóvão de Sergipe (1600), Angra dos Reis (1608), Paraíba (1608), São Luiz do Maranhão (1616), Belém do Pará (1624), Mogi das Cruzes (1629), Recife (1631), Goiana, em Pernambuco (1636).
Pelo relatório do prior-geral, Frei Henrique Silvio (1598-1612), ficamos sabendo que, em 1606, havia no Brasil 99 Carmelitas: 30 em Olinda, 30 na Bahia, 14 no Rio de Janeiro, 10 em Santos, 8 em São Paulo, 7 no Paraíba. Em correspondência de 1635 este número dobrou: fala-se de 200 frades, espalhados pelos diversos conventos carmelitanos na Terra da Santa Cruz.
O término da União Ibérica (1640) fez acender o sentimento nativista na Colônia portuguesa das Américas. Também na Ordem do Carmo houve tentativas de maior independência de Portugal. Já em 1635, o procurador do Carmo brasileiro na Metrópole, Frei Sebastião dos Anjos, sugerira a constituição de uma província autônoma. Seu pedido encontrou acolhida favorável junto à Cúria geral da Ordem, em Roma. De fato, o Prior-geral, Frei Teodoro Straccio chegou a instituir, em 1640, uma nova província com o título de Nossa Senhora do Rosário, inclusive com a nomeação de seu titular. A reação da Província-mãe de Portugal foi radicalmente contrária, o que fez que o projeto não saísse do papel. O que se conseguiu, no entanto, foi a ereção de dois vicariatos (vice-províncias): o da Bahia, com nove conventos, e o do Maranhão, com três casas.
Nova tentativa teve lugar em 1648, com o decreto que unia os vicariatos numa única província sob o patrocínio de Santo Elias. Também agora o projeto fracassou. “Talvez se deva procurar a razão na atitude da Coroa de Portugal, que manifestou grande repugnância que os Carmelitas brasileiros se separassem da obediência dos de Portugal. Assim o manifestou o Provincial português, João Coelho, que escreveu, em 29 de Outubro de 1648, ao Geral da Ordem, fazendo-lhe ver a necessidade de se dobrar à vontade do Rei e de que se suspendesse a decisão do capítulo geral. Voltou a escrever, em Janeiro de 1649, fazendo ver os graves inconvenientes de levar adiante a decisão: pobreza e escassez de conventos, falta de religiosos preparados, invasão das tropas holandesas, que tinham feito estragos em alguns conventos, como Pernambuco, Paraíba e Sergipe. A isto acrescentava-se que se tinha nomeado um prófugo para comissário. O Provincial português oculta que o rei se opunha abertamente a esta ereção.” (34)
Diante das crescentes desejos de autonomia, o Prior-geral Ângelo Monsignani (1682-1686) procurou e encontrou uma ‘solução salomônica’ que, na realidade, deu praticamente plena autonomia aos brasileiros dos dois Vicariatos, embora formalmente ainda unidos à Província portuguesa.
Finalmente, em 1685, o imenso território brasileiro, exceto o Maranhão, foi dividido em outras vice-províncias: a Província Fluminense, com seis conventos: Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Angra dos Reis, Mogi das Cruzes e Vitória do Espírito Santo; e a Província da Bahia-Pernambuco, com sete conventos: Olinda, São Cristóvão, Paraíba, Recife, Goiana, Salvador e Rio Real. A nova divisão veio ao encontro de reais aspirações, baseadas em diferenças regionais, além do fato da difícil comunicação entre as partes norte e sul da Colônia.
“Não se desistiu, porém, do desejo de uma vida completamente independente. Uma nova petição conjunta das duas vice-províncias foi entregue, já com a licença do próprio Rei, à Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares, de Roma. Nela lemos que, em 1715, a vice-província da Bahia contava 218 e a do Rio de janeiro 163 religiosos. E nestes números não estavam incluídos os Noviços, nem os 25 religiosos que, naquele tempo, estavam fora de seus conventos, nas fazendas ou em Portugal. Desta vez, Roma atendeu aos desejos dos Carmelitas e, em 1720, o Papa Clemente XII instituiu as duas Províncias do Rio de Janeiro e da Bahia, sancionando a separação completa de Portugal”. (35)
Por decreto do Prior-geral, Frei Carlos Cornaccioli, de 21-11-1720, foi nomeado Prior-provincial da recém-criada Província Fluminense, o Frei Francisco Paes da Purificação.
Na época da independência das províncias havia ainda o caso específico do Maranhão, em certo sentido independente do resto da Colônia. Ficou a parte tipicamente ‘portuguesa’ da Terra da Santa Cruz pelo fato de ter mais fácil comunicação com Lisboa do que com Bahia ou Rio de Janeiro. Também no interior da Ordem, o Maranhão, junto com as terras no extremo norte do Brasil, seguiu um caminho próprio. Até a criação dos dois Vicariatos, em 1639, tinha o status de Comissariado, diretamente subordinado à Província portuguesa. Em 1674, existiam no Maranhão quatro conventos: São Luís (1616), Belém do Pará (1624), Gurupá (1639-1674, quando foi abandonado), Alcântara (1647), com um total de 60 religiosos.
A vice-província do Maranhão seria o berço do grande movimento missionário dos Carmelitas na Amazônia. Até o Maranhão aderir à Independência do Brasil, em 1823, continuou pertencendo à Província carmelitana de Portugal.
Em páginas anteriores falamos da reforma na Ordem promovida pela Província de Touraine (França), em princípio do século XVIII. A ‘reforma turonense’, como ficou conhecida, entrou na Vice-Província de Bahia-Pernambuco. Em 1679, o Vigário provincial autorizou sua introdução no convento de Goiana. A reforma teve amplo apoio do Geral, Frei Monsignani que, em 1683, baixou várias medidas para favorecê-la no Brasil. Assim, decretou que os conventos de Recife e de Vila Real (depois substituído pelo da Paraíba) fossem entregues aos ‘reformados’. Teriam por superior um Comissário, diretamente nomeado, de três em três anos, pelo Prior-geral e assistido por dois sócios. O titular da Vice-província apenas recebia autorização para fazer a visita canônica em cada triênio, acompanhado por um religioso pertencente aos ‘reformados’. Essa medida deu origem a muitas controvérsias, frequentes vezes relacionadas com a extensão da jurisdição e questões de propriedades.
“Há quem duvide da sinceridade desta Reforma no Brasil. Seria antes um movimento separatista dos religiosos do Norte, que desejavam afastar-se do resto do Carmo brasileiro, formando uma província própria. Certo é, que a Reforma se confinou ao Norte do país, expandindo-se já por fundações próprias. Em 1714 foi dado o decreto de elevação a vice-província, logo a seguir anulado, para ser renovado só em 1724 e confirmado por Bento XIII no ano seguinte. Quando contava três conventos e seis hospícios, com mais de cem religiosos, a Reforma foi elevada a Província autônoma, em 1744”. (36)
O OLHAR DO POVO PÓS- CAPÍTULO DOS CARMELITAS: Frei Marcelo de Jesus...
- Detalhes
Ilza Uehara, Angra dos Reis, Rio de Janeiro.
A mudança de párocos sempre aconteceu, e, nem por isso a Santa Igreja deixou de funcionar. Acho sim, que nós paroquianos devemos nos empenhar mais nos trabalhos a que nos propormos e ajudar! Os freis passam por nossa vida, Jesus continua, e é nisso que devemos focar. Se vai dar certo "depende de nós". Vamos ajudar ao Frei Reinaldo e aceitar a mudança, que decerto pode ser muito boa para o Frei Marcelo, ele pode adquirir mais experiência e ficar mais perto dos familiares..#ProntoFalei!
Maria Costa, Angra dos Reis, Rio de Janeiro.
Fico muito triste com a saída repentina do Frei Marcelo De Jesus Maciel ele tinha muito planos para 2017 estava começando sua missão aqui!! Será que o seu provincial está preocupada em fazer a Igreja crescer em fazer uma Igreja de saída como pede o nosso querido Papa Francisco? Só Jesus!!! Vai entender essa Igreja!!!! Apesar de tudo isso desejo que todos os novos párocos possam ser guiados pelo Espírito Santo em suas paróquias!!! (Via Face book)
UM OLHAR PÓS-CAPÍTULO PROVINCIAL DOS CARMELITAS: Mensagens dos internautas
- Detalhes
Sanndro Yuri, Angra dos Reis, Rio de Janeiro.
Frei Reinaldo, Deus abençoe em sua nova função e como sempre fiz com todos que por Angra passam: Conte com minhas orações e vamos trabalhar juntos.
Frei Marcelo, fico muito triste com sua partida, muito triste mesmo, pois nem finalizamos nossos trabalhos. Agora eu só acredito que isso é de extrema falta de caridade com os paroquianos. A província deveria pensar em nós, que ficamos nas Paróquias, que muitas das vezes lutamos juntos com os párocos pelo melhor de nossa casa e aí sem mais e nem menos somos a cada tempo surpreendidos com essas mudanças.
Espero que um dia sejamos mais respeitados: Fraternidade também deveria ser feita com os paroquianos. Seria muito bom que o Senhor Provincial viesse com mais frequência em nossas paroquias e nos ouvisse antes dessas mudanças todas. "Que nos mostrem a alegria de ser Carmelita."
Abraços Fraternos... E Deus abençoe cada pároco em sua nova missão. (Via Facebook)
CAPÍTULO PROVINCIAL-2017: Composição das Comunidades Carmelitanas.
- Detalhes
Salvador-BA
Frei Raimundo Brito, O. Carm.
Frei Victor, O. Carm. (Está em Jaboticabal cuidando da saúde)
Frei Alberto Fernandes, O. Carm.
Unaí-MG.
Frei Carlos Mesters, O. Carm.
Frei Marcelo Frezarini, O. Carm.
Frei Martinho Cortez, O. Carm.
Frei Geraldo D`Abadia, O. Carm.
Carmo Sion (Belo Horizonte-MG).
Frei Evaldo, O. Carm. (Prior Provincial)
Frei Cláudio, O. Carm.
Frei Tinus, O. Carm.
Frei Miguel, O. Carm.
E estudantes Carmelitas
Casa de formação/Planalto (Belo Horizonte-MG)
Frei Gilvander Moreira, O. Carm.
Frei Fernando Bezerra, O. Carm.
E estudantes Carmelitas.
Comunidade do Postulantado em Belo Horizonte-MG
Frei Vicente Maciel, O. Carm, Formador.
E Postulantes Carmelitas.
São Paulo-Itaim Bibi
Frei Paulo, O. Carm.
Frei Rothmans, O. Carm
Frei Márcio, O. Carm.
São Paulo- Conventão.
Frei Tadeu, O.Carm.
Frei Jerry, O. Carm.
Frei Alonso, O. Carm.
E estudantes Carmelitas.
Mogi das Cruzes/SP (Convento)
Frei Gabriel, O. Carm.
Frei Marcelo de Jesus, O. Carm
Mogi das Cruzes/SP (Noviciado)
Frei Antanael, O. Carm.
Frei Marcelo Aquino, O. Carm
E Noviços Carmelitass
Itu/SP.
Frei Clóvis Nascimento, O. Carm.
Frei Antônio Bento, O. Carm.
Frei Aparecido, O. Carm
Angra dos Reis-RJ
Frei Reinaldo Rodrigues, O. Carm.
Frei Donizete Barbosa, O. Carm.
Frei Valter Rubens, O. Carm.
Rio de Janeiro (Vicente de Carvalho)
Frei Silvio Ferrari, O. Carm.
Frei Reinaldo Paraíso, O. Carm.
E estudantes Carmelitas.
Santos/SP.
Frei Lino Oliveira, O. Carm.
Palmas/TO.
Frei Alan Fábio, O. Carm.
Frei Felisberto, O. Carm.
Frei Tiago Oliveira da Cruz, O. Carm.
Brasília /DF
Frei Eduardo, O. Carm.
Frei João Carlos, O. Carm.
Lapa/ RJ
Frei Petrônio, O. Carm.
Frei Adailson, O. Carm.
OLHAR CARMELITANO: Surgimento e evolução da Segunda e Terceira Ordem
- Detalhes
Quando falamos aqui de ‘Terceira Ordem’ referimo-nos a pessoas que vivem o carisma carmelitano exatamente na sua condição de leigo ou leiga. Globalmente podemos distinguir três fases evolutivas. Antes de descrevê-las convém dizer que o assunto é um tanto complexo, pelo fato de serem as datas às vezes confusas, imprecisas e localmente situadas. Corremos, assim, o risco de introduzir generalizações que, na realidade, se referem a fatos de um determinado tempo ou área geográfica específica.
Já nos inícios da história carmelitana, encontramos os chamados oblatos, leigos que, de uma ou outra forma, fazem parte da família do Carmo. Em certos casos chegam a fazer uma verdadeira profissão religiosa, ‘doando-se’ — se et sua (a si mesmo com seus bens) — à Ordem, representada pelo seu legítimo superior. Em tese podem ser tanto homens quanto mulheres, mas, na realidade, predominam largamente as leigas. Normalmente vivem em casas separadas e vestem um hábito semelhante a dos frades, daí a denominação manteladas. Outros nomes dizem respeito a casos mais ou menos idênticos: oblatas, conversas, beatas, pinzocheras, beguínas, terciárias. Todas dependiam de um determinado convento e não formam grupos homogêneas.
Em maio de 1452, reuniu-se, na cidade de Colônia, o Capítulo Provincial da Alemanha Inferior, sob a presidência do Geral da Ordem, Frei João Soreth (1451-1471). Poucos meses antes, o Legado do Papa para a Alemanha e regiões vizinhas, Nicolau Krebs ou Nicolau de Cusa (1401-1564), apaixonado defensor da unidade da Igreja, exatamente numa época de muitas divisões, decorrentes do Cisma Ocidental (1378-1417), decretara que comunidades de mulheres consagradas, não dotadas de uma Regra aprovada pela Santa Sé, deveriam obtê-la ou unir-se a alguma Ordem Religiosa já existente. Caso não obedecessem seriam extintas!
Nesse contexto devemos situar o pedido das beguínas de Geldre, na Diocese de Colônia, apresentado no mencionado Capítulo Provincial. Na realidade, essas mulheres piedosas já mantinham contatos com os Freis Carmelitas desde que chegaram à freguesia onde se localizava a sua casa, em princípios do século XIV. Certo é que estavam sob a direção dos Carmelitas a partir de 1360, sem que seguissem uma Regra específica.
A solicitação das beguínas foi acolhida favoravelmente pelo Prior geral (10-5-1452), que encarregou o superior do convento de Geldre para efetuar a incorporação do grupo com a profissão religiosa, a fim de que vivessem regulariter como verdadeiras Carmelitas.
Na realidade, o ato de Soreth precedeu a Bula Cum Nulla (7-10-1452), de Nicolau V, com cinco meses! Numa carta às ex-beguínas de Geldre (14-10-1453), agora ‘monjas carmelitas’, o Geral ratificou sua decisão de maio do ano anterior, apoiando-se na Bula mencionada, transcrevendo, inclusive, o próprio texto daquele documento pontifício.
Foi o mesmo Prior geral que, após ter aceito as beguínas de Geldre, providenciou a incorporação de outras comunidades de ‘mulheres devotas’, como as de Nieukerk (Holanda), Dinant (Bélgica) e, provavelmente, ainda outras.
Nessa mesma época houve na Itália também aproximações de algumas comunidades de pinzocheras à Ordem do Carmo. O caso de Florença é típico e daria origem ao célebre mosteiro de Santa Maria dos Anjos, onde viveu Santa Madalena de Pazzi (1566-1607), dotada com extraordinárias experiências místicas.
Os estudiosos não estão concordes quanto à origem da Bula Cum Nulla. A final de contas quem é que a pediu ao Papa? Há os que defendem a tese que a iniciativa partiu das ‘agregadas’ italianas, particularmente as de Florença. Muitas delas viviam nas suas próprias residências ‘como se fossem carmelitas’! Por volta de 1450 surgiu em Florença a ideia de acolher essas mulheres piedosas numa casa ‘de vida em comum’. O projeto da construção desse convento ficou pronto em 1452. É nessas alturas que teriam enviado a Roma uma representação para ‘garantir’ seus direitos como religiosas, o que resultaria na Bula Cum Nulla.
A questão continua em aberto. Frei Vital Wilderink, na sua tese de doutorado, aborda essa temática e chega às conclusões que resumimos em seguida.
Deixando de lado aspetos mais diretamente jurídicas e organizativas, é indiscutível que os conventos femininos fundados por Soreth se distinguem notoriamente dos cenóbios encontrados na Itália e na Espanha. Efetivamente, as fundações localizadas na Alemanha, nos Países Baixos (Holanda e Bélgica de hoje) e na França, constituíam uma unidade, formando uma verdadeira Família com uma mesma orientação e idêntico programa de vida.
Sabemos que, desde que sua eleição como Geral, João Soreth se empenhara na obra de reforma da sua Ordem, toda ela centrada na ‘observância regular’. A criação de conventos femininos está nesta mesma linha de ação. É bem possível que o caso das beguínas de Geldre ofereceu a Soreth a oportunidade para ampliar sua visão no sentido de dar início a um verdadeiro ‘ramo feminino’ da Ordem do Carmo. É fato comprovado que o Geral colocou essas iniciativas sob sua direta jurisdição ou as confiou a Carmelitas ‘já reformados’. Os mosteiros de ‘monjas carmelitas’ tornaram-se logo centros de irradiação espiritual e laboratórios da reforma desejada por Soreth. A vida em comum, o Ofício coral, a estrita observância com a clausura rígida dão prova disso. Podemos até dizer que as ‘carmelitas de Soreth’ anteciparam em um século as reformas introduzidas pelo Concílio de Trento (1545-1563) e suas aplicações concretas no pontificado de São Pio V (1566-1572).
Frei João Soreth — afirma Dom Vital Wilderink (23) — pode ser reconhecido como o ‘fundador’ das Carmelitas na medida em que tenha sido o ‘reformador’ da Ordem do Carmo. O fato de sua obra reformadora ter tido pouca penetração nas regiões ao sul dos Alpes d e dos Pireneus, fez com que se dedicasse inteiramente às fundações nórdicas. Graças a seu empenho e santa teimosia, o ramo feminino do Carmo — a ‘Segunda Ordem’ — pode nascer e consolidar-se, pois foi ele que o concebeu, inspirou e organizou, inclusive com o indispensável embasamento jurídico que, mais tarde, seria adotado também em outras regiões antes avessas à sua reforma.
O Prior-geral Soreth gostava de dizer que a primeira preocupação das monjas carmelitas é honrar fielmente a Mãe de Deus, considerando-se como verdadeiras ‘Filhas de Nossa Senhora’ a quem têm por Prioresa de seus mosteiros. Maria é vista como guia de perfeição mística e modelo de pureza. Na vida espiritual é ela que conduz a monja ao seu divino Filho e à própria Santíssima Trindade (ver os ensinamentos de Santa Maria Madalena de Pazzi).
Enquanto lentamente se vai afirmando o que constituirá a “Segunda Ordem” ou Sancti Moniales (monjas de estrita clausura), as pinzocheras ‘de profissão solene’ continuaram a ser bastante numerosas na Itália e na Espanha sem, no entanto, levarem uma vida comum. Ocupam, de fato, o terceiro lugar na hierarquia da Ordem, após os religiosos e as monjas. Por este motivo foram chamadas, em alguns lugares, de terciárias mas, na realidade, eram ‘verdadeiras religiosas’, agregadas — pelos seus ‘votos solenes’ — a um convento masculino ou mosteiro feminino da Ordem. Pio V, querendo clarificar certas confusões reinantes, declarou que a Igreja doravante negaria o ‘caráter solene’ aos votos de pinzocheras que não vivessem em clausura. Acontece que, segundo as leis em vigor naquele tempo, só as terciárias ‘continentes’, portanto com voto de virgindade — o que excluía expressamente os laços matrimoniais — possuíam plenamente os privilégios da Ordem terceira. As não-continentes (as casadas) foram relegadas a um plano inferior, semelhante a das coirmãs da Ordem, ou seja aquelas que não tinham feita profissão religiosa e, por isso, consideradas ‘seculares’, não obstante certos compromissos espirituais as ligassem à Ordem. Essas últimas tornaram-se a variante feminina dos confrades ‘de capa branca’ com regras próprias que, na Espanha, ao que tudo indica, eram conhecidos também por “terceiros’.
Em suma, “quanto à origem da Ordem Terceira, podemos aceitar como um fato histórico, que a Ordem Terceira do Carmo. No seu sentido geral como é conhecida hoje, não existia antes de 1476. Os Carmelitas, embora tivessem a direção espiritual de numerosos grupos de pessoas desejosas de uma vida mais perfeita, não possuíam o direto de agregar tais grupos à Ordem.
A Bula Cum Nulla, de 1452, conferiu apenas a licença de unir à Ordem mulheres que vivessem em castidade. Não se tratava, pois, de uma permissão de fundar Ordens Terceiras em geral, que incluíssem homens e mulheres casados. Essa faculdade só veio na Bula Dum Attenta (1476), quando a licença de agregação foi estendida a quaisquer grupos de pessoas, casadas ou não, homens ou mulheres. Esta Bula significa verdadeiramente o início da Ordem Terceira Carmelita, ao menos em teoria. Pois, há em tudo isto a considerar uma circunstância particular: as outras Ordens Terceiras foram confirmadas depois de já existirem. A Ordem Terceira do Carmo, porém, teve a sua licença jurídica antes de ser organizada! Na prática, ela continuou durante mais de cem anos restrita a mulheres com o voto expresso de castidade perfeita.” (24)
Em fins do século XVI, constatamos na Ordem a existência de quatro grupos distintos: os frades, as monjas, mulheres continentes com voto explícito de castidade (impropriamente chamadas de ‘terceiras’), coirmãs e confrades da Ordem, a quem pode ser conferida, com razão, a qualificação de ‘terceiros’. Além desses grupos havia, desde o século XIV, um outro tipo de agregação: as ‘Confrarias da Madonna’. Algumas se limitam a viver na sombra das igrejas dos Carmelitas, outras assumem o escapulário como distintivo da Ordem, particularmente após as supostas visões de São Simão Stock de que falaremos em seguida.
No decorrer do tempo esvaem-se características específicas entre os vários grupos, gerando não poucas confusões. O Prior-geral Teodoro Straccio (1632-1642) procurou resolver a questão com uma dupla intervenção: agregou, em 1637, à Ordem terceira todos os confrades e coirmãs com votos de obediência e de castidade ‘segundo o próprio estado’, colocando, em 1540, todos os outros na Confraria do Escapulário.
Finalmente, no decurso do século XVIII, surge uma nova modalidade de agregação: Irmãs Terceiras, reunidas em verdadeiras Congregações de Terceiras Regulares de vida apostólica e missionária. Estas famílias religiosas tiveram grande florescimento, unindo formas específicas de serviço eclesial ao carisma e à espiritualidade do Carmo.
Pág. 589 de 664